segunda-feira, 15 de julho de 2019

Condição Pós-Moderna - Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural



  • Sobre o autor: David Harvey é um geógrafo britânico de orientação marxista. Formado pela Universidade de Cambridge, atualmente é professor da Universidade da Cidade de Nova York. Sua área de pesquisa perpassa por debates envolta da Geografia Urbana. Entre as principais obras de Harvey, podemos citar: a) Os Limites do Capital; b) O Novo Imperialismo; c) Para Entender O Capital: livros I, II e III; d) Cidades Rebeldes. 


Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança social - David Harvey - Editora Loyola


Tese - O livro é dividido em quatro partes, são elas: 01) Passagem da Modernidade à Pós-Modernidade na Cultura; 02) A Transformação Político-Econômica do Capitalismo do Final do Século XX; 03) A Experiência do Espaço e do Tempo; 04) A Condição Pós-Moderna. Antes do inicio dessas partes, Harvey resume de forma singela e enxuta a tese do livro nos capítulos precedentes. Sua principal tese nessa obra é analisar as transformações de ordem política e econômica a partir dos anos de 1970. Essas transformações vieram a acarretar mudanças significativas no que tange ao tempo e o espaço. Ascensão de formas culturais pós-modernas, surgimento de modos mais flexíveis de acumulação do capital e uma nova forma de compreensão do tempo-espaço são pontos debatidos pelo autor durante a obra. Apesar dessas mudanças, Harvey atesta que se analisadas mais profundamente, elas representam mais uma gama de transformações superficiais do sistema capitalista do que a formação de uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial. 

Parte 02 - A Transformação Político-Econômica do Capitalismo do Final do Século XX - Essa segunda parte do livro é dividida em cinco partes, são elas: 07) Introdução; 08) O Fordismo; 09) Do Fordismo à Acumulação Flexível; 10) Teorizando a Transição; 11) Acumulação Flexível - Transformação sólida ou reparo temporário? 

Se na primeira parte Harvey debateu questões pertinentes a cultura a partir dos anos de 1970, agora ele traz reflexões sobre o campo da economia política. O autor observa na introdução que as mudanças a partir dos anos de 1970 modificaram a economia política em duas facetas: a) o seu Regime de Acumulação; b) o seu Modo de Regulamentação Social e Política. Mas o que seria cada uma dessas facetas?

Um regime de acumulação, seria "a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de produção como das condições de reprodução de assalariados" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 117). O desafio de um sistema de acumulação é conciliar interesses de diversas classes sociais, mantendo a acumulação sob funcionamento. Para que esse regime de acumulação funcione, ele precisa de um modo de regulamentação social e política que significaria "uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regulamentação etc. que garantem a unidade do processo, isto é, a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 117).

Tanto um regime de acumulação quanto o de regulamentação social/política, visam a manutenção do sistema capitalista. E para que esse sistema permaneça de pé, faz-se necessário a atuação em duas esferas: a) O mercado de fixação de preços, permitindo aos produtores que organizem as decisões de produção de acordo com as necessidades e vontades dos consumidores. Tudo isso não seria possível sem uma presença do Estado que regule o processo e combata as possíveis falhas de mercado, tais como: danos ao ambiente natural/social, excesso de concentração de poder de mercado, fornecimento de bens coletivos como educação, defesa e saúde etc; b) O controle sobre a força de trabalho, sendo necessária "alguma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que têm de ser organizados não somente no local de trabalho como na sociedade como um todo. A socialização do trabalhador nas condições de produção capitalista envolve o controle social bem amplo das capacidades físicas e mentais" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 119). Em suma, trabalha-se então com a formação de ideologias dominantes, produzidas e reproduzidas por uma gama de instituições sociais como os meios de comunicação de massa, Igrejas, escolas etc.

Dito isso, Harvey encerra a introdução afirmando que entre os anos do pós-guerra (1945-1973) o regime de acumulação e regulamentação social/política foi o chamado fordista-keynesiano. O colapso desse tipo específico de acumulação, fez surgir um novo: a acumulação flexível, marcado pela fluidez. Não se sabe ainda se essas mudanças após 1973 representam um novo regime de acumulação ou simplesmente reflete uma mudança superficial e efêmera do capitalismo. "Mas os contrastes entre as práticas político-econômicas da atualidade e as do período de expansão do pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipótese de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado regime de acumulação 'flexível' uma relevadora maneira de caracterizar a história recente" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 119).

Feita essas observações gerais, Harvey parte para o aprofundamento da discussão, traçando o desenvolvimento do modelo fordista-keynesiano. A data inicial de fundação do fordismo é o ano de 1914, quando Henry Ford implanta em sua fábrica uma jornada de trabalho de 8h. Mas David observa que as inovações fordistas já vinham sendo introduzidas na Europa antes de Ford. A organização corporativa apareceu durante o século XIX, além disso a obra de Frederick Taylor, "Os Princípios da Administração Científica", remonta de 1911. Nessa obra, Taylor faz "um influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho podia ser radicalmente aumentada através da decomposição de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 122). Outro fator que já existia antes de Ford era a separação organizacional que dividia a indústria em gerência, concepção, controle e execução.

Tendo em vista essa afirmação de que o fordismo apenas reproduziu mudanças que não tiveram seu pioneirismo, o que teria de especial nesse conceito? Harvey responde da seguinte forma:
O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que a produção de massas significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 122).
Segundo o comunista italiano Antonio Gramsci, o fordismo criou um novo homem. Um novo tipo de trabalhador que passava a reproduzir formas de viver, sentir e pensar específicos. O fordismo passava a criar o consumidor, aquele trabalhador que teria tempo de lazer para consumir a produção em massa. Em 1916, Ford chegou a contratar assistentes sociais para irem traçar o perfil das famílias de seus empregados. O objetivo com essa análise era ver, in loco, se o "novo homem racional" estava pondo em prática essa nova ética consumista que se desenvolvia no período. Apesar de idas e vindas, o fordismo conseguiu se consolidar como regime de acumulação a partir da Crise de 1929, ganhando seu impulso a partir dos esforços de guerra. No contexto da Segunda Guerra Mundial, a produção baseada na lógica fordista acabou ganhando simpatia por conta da sua eficiência e racionalização.

O boom do fordismo só foi possível graças a Segunda Guerra Mundial, mas então por quê esse modelo não vingou no período entre-guerras? Harvey destaca duas razões: a) A resistência dos trabalhadores a lógica fordista que contestou "um sistema de produção que se apoiava tanto na familiarização do trabalhador com longas horas de trabalho puramente rotinizado, exigindo pouco das habilidades manuais tradicionais e concedendo um controle quase que inexistente ao trabalhador sobre o projeto, o ritmo e a organização do processo produtivo" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 123). No período entre-guerras, apenas nos EUA o modelo fordista ganhou certa relevância. Na Europa a produção de automóveis permanecia voltada para o consumo de elites; b) A segunda barreira encontrada pelo modelo fordista diz respeito ao papel designado ao Estado. A pequena presença do Estado dificultava o desenvolvimento desse modelo que só começou a ganhar impulso após a Crise de 1929 que infligiu sobre o capitalismo uma dura depressão. A depressão trouxe a visão de que o capitalismo só iria voltar aos rumos com uma certa pitada de intervenção estatal, evitando as consequentes crises desse sistema e visando sua estabilidade.

Mas foi apenas após a Segunda Guerra Mundial (1945) que o fordismo ganhou maturidade. Nesse período pós-guerra as economias capitalistas tiveram um salto, mantendo uma estabilidade que vacinava a economia de crises. O resultado dessa expansão foram, "Os padrões de vida se elevaram, as tendências intercapitalistas, tornada remota. O fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo, e o capitalismo se dedicou a um surto de expansões internacionalistas de alcance mundial que atraiu para a sua rede inúmeras nações descolonizadas" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 125). Para que esse sucesso fosse possível, tivemos a conciliação entre três esferas da sociedade: 01) O Estado; 02) os capitalistas; 03) os trabalhadores.

No que tange ao movimento sindical, sua entrada no pacto só foi possível graças a derrota de correntes mais radicais. Quais as implicações disso? Harvey afirma que "Não obstante, as organizações sindicais burocratizadas foram sendo cada vez mais acuadas (às vezes através do exercício do poder estatal repressivo) para trocar ganhos reais de salário pela cooperação na disciplinação dos trabalhadores de acordo com o sistema fordista de produção" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 129).

Os capitalistas (ou burgueses) entravam no pacto destinados a gerar investimentos que preservassem seus lucros, mas mantendo uma estabilidade social. E "Isso implicava um compromisso corporativo com processos estáveis, mas vigorosos de mudança tecnológica, com um grande investimento de capital fixo, melhoria da capacidade administrativa na produção e no marketing e mobilização de economias de escala mediante a padronização do produto" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 129). Mas tudo isso era realizado controlando os sindicatos, oferecendo um aumento salarial real aos trabalhadores, ao mesmo tempo que cobravam deles uma maior produtividade.

E o Estado? Essa instituição ficava responsável por impedir as possíveis depressões e crises que porventura viessem a se desenvolver com base em políticas fiscais e monetárias de natureza controladora. Com isso, "Essas políticas eram dirigidas para as áreas de investimento público - em setores como o transporte, os equipamentos públicos etc. - vitais para o crescimento da produção e do consumo de massa e que também garantiam um emprego relativamente pleno" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 129). Além dessas ações o Estado, "também buscava fornecer um forte complemento ao salário social com gastos de seguridade social, assistência médica, educação, habitação etc." (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 129).

No plano político, o fordismo gerou o florescimento de democracias liberais estáveis. No plano internacional, ele se expandiu para além dos EUA e a Europa. Chegou em países como o Japão, sendo responsável pela expansão do comércio norte-americano que conseguiu garantir o uso de sua capacidade produtiva excedente. O predomínio dos EUA é representado com o acordo de Bretton Woods, de 1944, quando o dólar virou moeda-reserva mundial. Os ianques eram os banqueiros do mundo e o modelo fordista foi um resultado de suas ações.

Em suma, "a expansão internacional do fordismo ocorreu numa conjuntura particular de regulamentação político-econômica mundial e uma configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio de um sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 132). Mas mesmo no seu apogeu o modelo fordista encontrou contestações. Primeiro porque sua lógica beneficiava apenas alguns setores da economia e alguns Estados-nações. Além disso, setores historicamente marginalizados como negros, mulheres e imigrantes começaram a organizar movimentos que reivindicavam direitos civis como a garantia ao emprego.

Em meio a essas tensões, os sindicatos pouco participavam. A esmagadora maioria de seus dirigentes e membros eram homens brancos, principal mão-de-obra beneficiada com o fordismo. Resume Harvey a situação dos sindicatos nessa conjuntura:
As lutas trabalhistas não desapareceram, pois os sindicatos muitas vezes eram forçados a responder a insatisfações das bases. Mas os sindicatos também se viram cada vez mais atacados a partir de fora, pelas minorias excluídas, pelas mulheres e pelos desprivilegiados. Na medida que serviam aos interesses estreitos de seus membros e abandonavam preocupações socialistas mais radicais, os sindicatos corriam o risco de ser reduzidos, diante da opinião pública, a grupos de interesse fragmentados que buscavam servir a si mesmos, e não a objetivos gerais (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 133)
No âmbito cultural, surgiram os chamados movimentos de contracultura que vieram contestar um modelo de vida racionalizado, despersonalizado e por assim dizer "quadrado" que professava o modelo fordista. Além de todas as questões de âmbito interno, o modelo fordista ainda encontrava contestações externas, tendo em vista o não cumprimento de melhorias nos países do Terceiro Mundo. Em troca do sonhado "desenvolvimento", esses povos encontravam queda da qualidade de vida, elite nacional despreocupada com problemáticas nacionais, opressão e destruição de suas culturais locais. Apesar de todas essas contestações, o modelo fordista permaneceu de pé até o ano de 1973.

A partir de 1973, surge um novo contexto em que Harvey aponta em "Do Fordismo à Acumulação Flexível". Essa passagem passou pelo enfraquecimento do poder norte-americano na economia mundial. A formação do mercado do eurodólar (dólares depositados fora dos EUA) e a queda do crédito no período de 1966-1967, já eram sinais, segundo o autor, dos problemas que os norte-americanos enfrentariam a partir dos anos de 1970. Junto a isso tínhamos uma forte política de substituição de importações em países do Terceiro Mundo, gerando uma onda de industrialização em países novos.

Com isso, "Daí por diante, a competição internacional se intensificou à medida que a Europa Ocidental e o Japão, seguidos por toda a gama de países recém-industrializados, desafiaram a hegemonia estadunidense no âmbito do fordismo a ponto de fazer cair por terra o acordo de Bretton Woods e de produzir a desvalorização do dólar" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 134).

A década de 1970 escancarou a incapacidade do modelo fordista/keynesiano de contornar as crises intrínsecas ao capitalismo, sendo necessária a criação de uma nova roupagem para a manutenção desse sistema. Essa incapacidade, segundo Harvey, passava por um problema que ele resumiu em uma palavra: rigidez. O modelo fordista/keynesiano foi marcado por sua rigidez em "capital fixo de larga escala e de longo prazo", impedindo certa flexibilidade. Outro fator foi que esse modelo previa um crescimento econômico estável em um mercado de consumo instável. A solução mais fácil, de reduzir os níveis de vida dos trabalhadores, encontravam forte resistência da classe trabalhadora organizada. As ondas de greve entre 1968-1972 são um exemplo disso. Podemos elencar alguns fatores que, juntos, contribuíram para a crise do modelo fordista/keynesiano:
  • Surgimento de novas necessidades no mercado de consumo; 
  • Fusões e incorporações de empresas; 
  • Aparecimento da concorrência japonesa e europeia frente aos EUA; 
  • Mudanças tecnológicas; 
  • Substituição de importação por parte de países subdesenvolvidos; 
  • Impactos da Crise do Petróleo em 1973.   
Essa crise fez o capitalismo adentrar numa nova fase, onde a racionalização e controle da produção e do trabalho passaram por transformações. Essa reestruturação do sistema dará como resultado o surgimento do que Harvey chama de: Acumulação Flexível. Mas o que seria essa Acumulação Flexível? Segundo o próprio Harvey:
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 140).
Essa nova acumulação capitalista gerou mudanças no que Harvey chama de "padrões de desenvolvimento desigual", típico do capitalismo, gerando desenvolvimento diferenciado tanto em setores da produção quanto em regiões geográficas. Nos setores fica o exemplo do chamado "setor de serviços" que ganha maior corpo com essa reestruturação do capitalismo, assim como regiões antes subdesenvolvidas como Flandres e a "terceira Itália", que passam por um processo de desenvolvimento. Essa nova forma do capitalismo também vai gerar uma mudança no que ele chama de "compreensão do espaço-tempo", principalmente por causa da comunicação via satélite e dos baixos custos de transportes, proporcionando um estreitamento das decisões privadas e públicas.

A acumulação flexível proporcionará aos empregadores (capitalistas) um maior controle sobre a força de trabalho que "parece implicar níveis relativamente altos de desemprego 'estrutural' (em oposição a 'friccional'), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical - uma das colunas políticas do regime fordista" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 141).

Não foi só a produção e o controle da força de trabalho que passaram por transformações, mas também o mercado de trabalho. Por conta da flexibilidade reinante e aumento da competição, os empregadores aproveitaram o enfraquecimento dos sindicatos (e também o aumento de mão de obra excedente, ou seja, desempregados ou subempregados) para impor contratos de trabalho mais flexíveis. A acumulação flexível dará prioridade a empregos parciais e temporários em detrimento dos regulares. Harvey ainda afirma que até mesmo os regulares sofrem transformações, muito porque apesar de uma certa estabilidade, a jornada de trabalho é pressionada para que esse trabalhador produza mais em períodos de pico de demanda.



Como mostra a imagem acima, Harvey ilustra e divide o mercado de trabalho na acumulação flexível em basicamente três grupos. O grupo central, intitulado "Grupo Central - Mercado de Trabalho Primário Flexibilidade Funcional", são empregados em tempo integral, permanentes e essenciais para o futuro da organização e/ou empresa. Esse é o grupo menos precarizado da acumulação flexível, "Gozando de maior segurança no emprego, boas perspectivas de promoção e de reciclagem, e de uma pensão, um seguro e outras vantagens indiretas relativamente generosas, esse grupo deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 144). Apesar disso, podem ser afetados em épocas de potenciais crises. De qualquer forma, é um grupo pequeno e que segundo Harvey se encontra em declínio em termos quantitativos.

Do grupo considerado por Harvey como periférico, existem dois subgrupos. O primeiro, intitulado "Primeiro Grupo Periférico - Mercado de Trabalho Secundário e Flexibilidade Numérica", tem como representantes "empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos especializado" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 144). Esse primeiro grupo periférico tem uma carreira menos estável que o grupo central, sendo marcado por uma alta taxa de rotatividade.

O segundo subgrupo periférico, chamado "Segundo Grupo Periférico", tem como marca "uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo determinado, temporários, subcontratação e treinandos com subsídio público, tendo ainda menos seguranças de emprego do que o primeiro grupo periférico" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 144). Segundo o autor, além de ser o conjunto de trabalhadores mais vulneráveis as contradições do capitalismo, são os que numericamente mais tem aumentado nos últimos anos. Esse grupo personifica o que representa o advento dessa nova estrutura do sistema, então chamada por acumulação flexível.

A marca da acumulação flexível seria o aumento quantitativo do trabalho temporário e da subcontratação. Para fundamentar essa afirmação, David traz números do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico que, segundo pesquisa, comprovou o aumento de 70% da subcontratação em empresas britânicas entre os anos de 1982 e 1985. Em suma, "A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores 'centrais' e empregar cada vez mais força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam ruins" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 144). É o advento da subcontratação e do trabalho temporário em detrimento do trabalho estável que outrora marcaram os tempos do fordismo/keynesianismo.

Essa nova conjuntura não modificou a situação de vulnerabilidade daqueles setores que insurgiram contra o fordismo como mulheres, negros e minorias étnicas de todo tipo. Pelo contrário, fizeram esses grupos precarizados ganharem a companhia de homens brancos que, durante o fordismo, dominavam os sindicatos e conseguiam com isso manter um alto padrão de vida.

Tudo isso gerou uma vitória da economia de escopo sobre a economia de massa que marcou o fordismo. Nessa economia de escopo, se objetivava um alvo e a produção era em pequena escala, reduzindo crises de superprodução. A produção flexível gerou: aceleração na inovação dos produtos e a exploração de mercados de consumo mais especializados. Tudo isso, como já dissemos, sob uma pequena escala de produção. Fazendo um apanhado mais geral do que acabamos de dizer, atesta o autor:
A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 148).
Vamos agora enumerar algumas consequências da acumulação flexível. A primeira delas: houve um aumento de empregos ofertados pelo setor de serviços que conseguiu ultrapassar o setor industrial em vários países e aumentar sua importância em outros. A criação de novas empresas especializadas em serviços (antes faziam parte das industrias) pode ser um motivo desse aumento. Outro é a importância dada a flexibilidade, a rapidez, gerando uma necessidade de aceleração do tempo de giro no consumo. A consequência direta disso é o investimento em eventos e espetáculos que tem o giro no consumo quase imediato.

Outra consequência apontada foi o aumento da monopolização. Se agora o momento pedia rapidez e competitividade, fica claro que o poder corporativo organizado levaria vantagem sobre os pequenos negócios. A chamada "desregulamentação" foi um fator primordial para esse processo de monopolização, gerando também um aumento de fusões entre as empresas e a consequente diversificação corporativa onde "Muitos dos empregadores das 500 maiores companhias norte-americanas segundo Fortune hoje trabalham em linhas de atividade sem relação alguma com a linha primária de negócios com que sua empresa está identificada" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 150).

Para que essas grandes corporações conseguissem levar vantagem nessa conjuntura marcada pela flexibilidade, fez-se necessário uma atenção ao acesso à informação. Resume Harvey: "A capacidade de resposta instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das modas e dos gostos e iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a sobrevivência corporativa do que teve sobre o fordismo", logo, "A ênfase na informação também gerou um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente especializados capazes de fornecer informações quase minuto a minuto sobre tendências de mercado e o tipo de análise instantânea de dados útil para as decisões corporativas" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 151). O acesso privilegiado dessas informações era uma espécie de corrida pelo ouro que decidia os rumos dessas corporações.

Além da informação, a produção de conhecimento ganha uma nova faceta nessa nova estrutura do capitalismo. Conhecimento vira sinônimo de mercadoria, uma espécie de negócio a ser alcançado com vista a produzir a última técnica, o mais novo produto, a mais recente descoberta científica etc. Era a necessidade de mudanças abruptas que passou a servir de base para as transformações na nova forma de pensar, tornando o conhecimento "uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob condições que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas". E qual a consequência disso para as instituições de ensino? Simples, "Universidades e institutos de pesquisa competem ferozmente por pessoal, bem como pela honra de patentear primeiro novas descobertas científicas" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 151).

Harvey também observa que ocorreram mudanças na cultura. Essas corporações, controladoras dos fluxos de informação e patrocinadoras da formação de conhecimento, passam a investir também em produções culturais que passam a receber patrocínio. O intuito era claro: manter o nome da empresa em público, sendo a cultura um mero instrumento de sua divulgação.

Em suma, a acumulação flexível gerava um protagonismo ao sistema financeiro que se integram cada vez mais a outros tipos de capitais como o industrial e o mercantil. A disputa histórica do capitalismo entre poder financeiro e poder do Estado, acabou pendendo para o primeiro após 1973. Essas transformações no âmbito econômico era capitaneada pelo que Harvey alcunha de "ascensão de um agressivo neoconservadorismo", representado nas vitórias eleitorais de Margaret Tchatcher (1979, Inglaterra) e Ronald Reagan (1980, EUA).

Esses governos foram os responsáveis por aniquilar as ervas daninhas deixadas pelo regime fordista-keynesiano que jogou seus países numa onda inflacionária, gerando aumento das despesas públicas e estagnação da capacidade fiscal. Não havia o desenvolvimento procurado pelos keynesianos em suas políticas e o Estado de bem-estar social entrava em crise, sendo necessário a formulação de um novo tipo de Estado. Sobre as ações desses governos conservadores, diz Harvey:
A gradual retirada de apoio ao Estado do bem-estar e o ataque ao salário real e ao poder sindical organizado, que começaram como necessidade econômica na crise de 1973-1975, foram simplesmente transformados pelos neoconservadores em virtude governamental. Disseminou-se a imagem de governos fortes administrando fortes doses de remédios não palatáveis para restaurar a saúde de economias moribundas (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 158).
Esses Estados, agora menos intervencionistas, receberiam orientações de como agir de organizações de alcance mundial como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Essas organizações estariam preocupadas em reduzir os gastos públicos, além de ações complementares como cortes nos salários e austeridade fiscal e monetária. Eram, pois, representações reguladoras. Já os Estados se encontram numa situação problemática, pois ao mesmo tempo que são chamados para regularem certas ações do capital corporativa, é ao mesmo tempo responsável pela criação de um "bom clima" para que esse mesmo capital atue no seu território.

Buscando aqui resumir a parte final do que Harvey alcunha de "Do Fordismo à Acumulação Flexível", temos "o movimento mais flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo. Na medida em que a ação coletiva se tornou, em consequência disso, mais difícil - tendo essa dificuldade constituído, com efeito, a meta central do impulso de incremento do controle do trabalho -, o individualismo exacerbado se encaixa no quadro geral como condição necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a acumulação flexível" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 161).

Chegamos a penúltima parte do capítulo, intitulada "Teorizando a Transição". A pergunta-chave que Harvey faz e que permeará as reflexões futuras é a seguinte: Até que ponto as formulações teóricas passadas e presentes da dinâmica do capitalismo têm de ser modificadas à luz das radicais reorganizações que ocorrem nas forças produtivas e relações sociais? Aqui ele busca fazer um fio teórico entre passado, presente e futuro fazendo que novas reflexões sobre essa transição sejam florescidas. Para isso, ele traz três visões diferentes sobre essa transição fordista para pós-fordista (ou acumulação flexível), são elas:
  1. A primeira visão aponta os aspectos positivos dessa transição. Entre as mudanças positivas, essa visão traz as seguintes: na fronteira de progresso se passou de um crescimento difícil para um crescimento esperto; na organização se passou de uma estrutura mecânica para redes de mercado; no processo de decisão se transferiu de um comando autoritário para um tipo de liderança participativa; e no sistema mundial se ultrapassou a bipolaridade capitalismo versus socialismo, dando lugar ao hibridismo entre aspectos desses dois sistemas; 
  2. A segunda visão aponta uma série de aspectos negativos dessa transição. No capitalismo organizado (típico do fordismo), temos uma concentração de vários tipos de capitais (industriais, bancário, comercial etc) em mercados nacionais enquanto que no capitalismo desorganizado (típico da acumulação flexível) encontramos a uma crescente internacionalização do capital. Além disso o capitalismo desorganizado gera outros problemas como fragmentação cultural que solapa identidades tradicionais, declínio do poder de organização dos trabalhadores, desindustrialização dos países centrais etc;
  3. A terceira visão é a mais central e que Harvey diz nutrir simpatia. Dividindo o fordismo e a acumulação flexível em economia de escala e economia de escopo, essa visão afirma que ocorreram uma série de mudanças no processo de produção, trabalho, espaço, Estado e ideologia. Aqui citaremos apenas algumas dessas mudanças em cada um desses aspectos. No processo de produção, tivemos a passagem de uma produção em massa para uma produção em pequenos lotes; No trabalho, tivemos a passagem de um trabalhador com funções específicas para um que realiza diversas funções; No espaço, tivemos a passagem de uma divisão espacial do trabalho para uma integração espacial; No Estado, tivemos a passagem da regulamentação para a desregulamentação; Já na Ideologia, tivemos a passagem do modernismo baseado no consumo em massa para o pós-modernismo baseado no consumo individualizado. 
Elencada essas visões sobre a transição, Harvey busca mostrar três princípios imutáveis do sistema capitalista, segundo o conhecimento da obra de Karl Marx. Ou seja, aqui ele está debatendo a atualidade do pensamento marxiano e o que ainda dele permanece na análise do sistema capitalista. Dentro desses princípios, temos: 1) O capitalismo é um sistema em busca de crescimento, pois só através dele que se tem a obtenção de lucros e uma consequente garantia da acumulação do capital; 2) O capitalismo é um sistema que busca controlar o trabalho, pois seu crescimento se baseia na exploração do trabalho vivo; 3) O capitalismo é, por necessidade, dinâmico que acaba sendo a forma dos capitalistas superarem as leis coercitivas que exigem deles inovações dos seus produtos. Não basta controlar o trabalho, é preciso inovar tecnologicamente.

Dito esses princípios imutáveis na análise do capitalismo, Harvey elenca mais três pontos no texto, agora em relação as escolhas que esse sistema deve fazer para manter a ordem social estável. Se o capitalismo é um sistema fadada a crises, quais os caminhos para reduzi-las? Vamos as escolhas: 1) O capitalismo deve estar atento as desvalorizações de mercadorias, de capacidade produtiva e do valor do dinheiro visando lidar com o excedente de capital; 2) O capitalismo deve estar atento ao controle macroeconômico que crie formas de regulamentação que amenize o problema da superacumulação; 3) O capitalismo deve absorver a superacumulação por meio de seu deslocamento temporal e espacial. Sobre esse último ponto:
Foi principalmente com o deslocamento espacial e temporal que o regime fordista de acumulação resolveu o problema da superacumulação no decorrer do longo período de expansão do pós-guerra. Por conseguinte, a crise do fordismo pode ser interpretada até certo ponto como o esgotamento das opções para lidar com o problema da superacumulação (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 173).
Por fim, chegamos a última parte do capítulo 02 chamada de "Acumulação Flexível - Transformação sólida ou reparo temporário?". Dentro dessa pergunta, Harvey elenca algumas análises.

A primeira afirma que as novas tecnologias trazidas pela acumulação flexível trazem consigo uma transformação sólida no sistema capitalista, onde estaríamos vivenciando uma "segunda divisão industrial" que levam novas formas de organização do trabalho. A segunda afirma que o termo "flexibilidade" como algo novo no capitalismo não tem fundamento empírico, tendo em vista que esse sistema sempre foi marcado por sua flexibilidade e procura de vantagens geográficas. Sobre essa segunda perspectiva, Harvey se posiciona. Ele afirma que concorda com alguns posicionamentos como não enxergar novidade na flexibilidade do capitalismo, mas ao mesmo tempo chama a atenção de que algo mudou nesse sistema a partir dos anos de 1970 e que simplesmente ignorar isso é um erro teórico grave. A terceira visão, defendida pelo autor, pode ser assim descrita:
A terceira posição, que define o sentido no qual o uso a ideia de uma transição do fordismo para a acumulação flexível, situa-se em algum ponto entre esses dois extremos. As tecnologias e formas organizacionais flexíveis não se tornaram hegemônicas em toda parte - mas o fordismo que as precedeu também não. A atual conjuntura se caracteriza por uma combinação de produção fordista altamente eficiente (com frequência nuançada pela tecnologia e pelo produto flexível) em alguns setores e regiões (como os carros nos EUA, no Japão ou na Coreia do Sul) e de sistemas de produção mais tradicionais (como os de Singapura, Taiwan ou Hong Kong) que se apoiam em relações de trabalho 'artesanais', paternalistas ou patriarcais (familiares) que implicam mecanismos bem distintos de controle do trabalho (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 179)
Isso gerou mudanças na natureza da classe trabalhadora, assim como na ação política. Ao mesmo tempo se teve um aumento de ideologias ligadas ao que Harvey chama por "empreendimentistas" e "privatistas". Dentre as consequências disso temos um aumento da desigualdade de renda, criando no mercado de trabalho uma "aristocracia do trabalho" de um lado e uma "subclasse mal-remunerada" de outro. Isso pode acarretar, evidentemente, problemas em relação a demanda efetiva de sustentação do consumo ao se formar uma parcela tão precarizada como a desenvolvida pela acumulação flexível.
A acumulação flexível representou o protagonismo do capital financeiro que para Harvey "alcançou um grau de autonomia diante da produção real sem precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos financeiros igualmente inéditos" (HARVEY, David. São Paulo: 1992, p. 181)










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