segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Invenção das Tradições


  • Sobre o autor: Eric John Ernest Hobsbawm foi um historiador britânico, nascido em Alexandrina (cidade situada no Egito, na época, dominado pelo Império Britânico), com grande reconhecimento intelectual no Século XX. Teve várias obras, sobre várias temáticas e que até hoje servem como referências nas Ciências Humanas. Entre as principais obras de Hobsbawm, podemos citar: a) A Era das Revoluções; b) A Era do Capital; c) A Era dos Impérios; d) A Era dos Extremos; e) História do Marxismo (12 volumes); f) Bandidos etc. Junto com autores como Edward Thompson, ajudou a desenvolver na Inglaterra uma análise baseada na História Social. Para além de um brilhante intelectual, Hobsbawm foi um militante político e por toda sua vida atuou no Partido Comunista da Grã-Bretanha. Faleceu em 2012 de pneumonia, causada originalmente pela leucemia. Já Terence Osborn Ranger nasceu em South Norwood, Londres. Seus estudos tem ligação com a história do Zimbábue, pós e pré colonização. Professor de Relações Raciais da Universidade de Oxford foi o primeiro teórico africanista a entrar na Academia Britânica. Entre suas principais obras, podemos citar: a) Soldados na Guerra de Libertação do Zimbábue; b) Consciência Camponesa e Guerra de Guerrilha no Zimbábue: um estudo comparativo. Faleceu em janeiro de 2015 na cidade de Oxford, Inglaterra, aos 85 anos.


A Invenção das Tradições - Eric J. Hobsbawm e Terence Ranger - Editora Paz e Terra


1. Introdução: A Invenção das Tradições - Eric Hobsbawm - O livro conta com um total de 06 artigos de diversos autores, tendo eles um único elo: o debate do ponto de vista histórico da invenção das tradições. Os dois organizadores, os historiadores Hobsbawm e Ranger, escreveram dois desses 06 artigos sendo os demais desenvolvidos por convidados como Hugh Trevor-Roper, Prys Morgan, Bernard Cohn e David Cannadine. A introdução foi escrita por Hobsbawm e nela o autor trás reflexões teóricas importantíssimas para o entendimento do objetivo da obra. Ele inicia essa rica introdução trazendo o conceito de Tradição Inventada. Tendo em vista o pressuposto de que as tradições são um conjunto de ideias criadas socialmente e não são produtos de um determinismo biológico dos povos, elas aparecem tanto formalmente institucionalizadas quanto indefinidas no tempo/espaço se desenvolvendo rapidamente e sem um controle. Sobre o primeiro tipo, Hobsbawm cita a cobertura radiofônica do natal da família real inglesa, instituído a partir de 1932. Já sobre o segundo tipo, ele cita o desenvolvimento do campeonato britânico de futebol que sem um começo determinado no tempo e no espaço foi ganhando espaço considerável no país. Dito e exemplificado essa ideia inicial sobre as tradições, Hobsbawm já delimita o objetivo da obra: analisar o surgimento e o estabelecimento das tradição e não debater sobre sua duração ou sobrevivência na vida social. Definindo conceitualmente a ideia de Tradição Inventada, afirma o autor: 
Por "tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9).
Exemplificando esse conceito, ele trás a escolha do estilo arquitetônico gótico na reconstrução da sede do Parlamento Britânico no Século XIX, assim como a repetição dessa escolha após a Segunda Guerra Mundial. O uso das tradições, afirma o autor, está até presente em movimentos revolucionários e progressistas que apesar de objetivarem a construção do novo não deixam de estabelecer um diálogo com o velho. A invenção de tradições está totalmente ligada a situações novas no seio social e seu principal objetivo é dentro dessas mudanças "estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social" (HOBSBAWM Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 10).

Definido o conceito de Tradição Inventada, tão cara a obra, Hobsbawm busca diferenciar o conceito de tradição de costume. Para ele a tradição mostra-se invariável as mudanças, baseando-se em repetições fixas de determinados símbolos e práticas. Já o costume é marcado pela flexibilidade, dando sempre espaço para que se legitime o novo a partir do velho. O exemplo citado pelo autor é o do Direito. O Direito comum praticado por juízes estaria no campo dos costumes, combinando passado com mudanças engendradas pelo presente. Enquanto que determinados símbolos em volta da prática do Direito como a toga e as perucas usadas pelos juízes são fortes exemplificações do que seria a tradição. Diferenciada do conceito de costume, agora Hobsbawm busca diferenciá-la do conceito de rotina. Essa última não tem um conteúdo ideológico e simbólico definido, sendo puramente do campo prático e pragmático. A rotina tem como função a facilitação da vida social e sua constante transmissão de costumes. Sendo assim, "tais redes de convenção e rotina não são "tradições inventadas", pois suas funções e, portanto, suas justificativas são técnicas, não ideológicas (em termos marxistas, dizem respeito à infra-estrutura, não à superestrutura). As redes são criadas para facilitar operações práticas imediatamente definíveis e podem ser prontamente modificadas ou abandonadas de acordo com as transformações das necessidades práticas" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 11). O exemplo do boné é utilizado para exemplificar a diferença entre tradição e rotina. O uso de capacetes no exército é comum e tem como objetivo a proteção do soldado, porém, esse capacete pode ser modificado a partir do instante que um novo formato criado garantisse maior proteção. Isso estaria no campo técnico da rotina. Já o uso de um determinado boné com um determinado casaco vermelho de caça move um conjunto de símbolos que fazem o exemplo cair no campo da tradição.

E quais as condições sócio-históricas que facilitam o aparecimento de novas tradições? Para o autor, é frutífero para a criação de novas tradições quando mudanças sociais profundas e rápidas destroem antigos padrões sociais então vigentes e dominantes. "Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 12). Esse processo ocorre tanto as sociedades ditas "tradicionais" quanto nas "modernas". E as velhas instituições dentro desse processo de mudanças? Elas se recriam e se adaptam as novas condições sem abandonar por completo suas ideias passadas. O exemplo da Igreja Católica é dado pelo autor.

Dentro dessa relação novo/velho, Hobsbawm afirma que seu objetivo com a obra é analisar o uso de elementos do passado na criação de novas tradições. Aqui ele cita outro exemplo que é das canções folclóricas antigas da Suíça que serão adaptadas a nova realidade por qual o país passava com a formação do seu Estado nacional em meados do século XIX. As canções seriam de impulso no desenvolvimento do nacionalismo suíço, então necessário na formação do Estado nacional. Sendo assim, não é objetivo da obra focar suas análises na criação de novos símbolos a partir da invenção dessas novas tradições. É fato que novos acessórios, símbolos e linguagens são criadas no desenvolvimento dessas novas tradições mas não fica o debate sendo palco de foco da obra. A busca é entender a relação com o passado, sendo uma empreitada a priori e não a posteriori.

Essas novas tradições, apesar do diálogo constante com o passado, apresentam como consequência a ruptura da continuidade. Isso porque a própria existência de movimentos restauradores já indicam que mudanças sociais estão ocorrendo no seio social, não sendo possível uma reconstituição completa do passado. Resta apenas a constituições de "tradições inventadas", aquelas que dialogam com o passado, mas não conseguem romper totalmente com o presente e suas mudanças. Por isso são tradições sempre inventadas e nunca reais. O rompimento brusco e radical da ideologia liberal do século XIX, então influenciada pelo iluminismo, com as tradições presentes na sociedade européia ocasionou vácuos e desvinculações sociais que foram propícias para a formação de novas tradições.

Sendo assim, Hobsbawm divide 03 tipos de "Tradições Inventadas". São elas: a) aquela que busca a coesão social de um grupo ou comunidade; b) aquela que busca a legitimação de instituições sociais que sustente determinadas relações de autoridade; c) aquelas que busca a introdução de novos padrões comportamentais. Para o autor, o primeiro tipo não só prevaleceu como é possível encontrar implicitamente a presença dos outros nele imbricados. Das "Tradições Inventadas" nas sociedades "tradicionais" e "modernas", existe uma diferença substancial. Nas primeiras as práticas são bastante específicas e coercitivas. Enquanto que nas segundas as tradições inventadas contém valores múltiplos como a ideia de "patriotismo", "lealdade", "dever" etc.

Já na parte final da introdução, Hobsbawm destaca as limitações das "Tradições Inventadas" que para ele ocupa um espaço pequeno deixado pelas antigas práticas e não conseguem ter a mesma generalidade das anteriores. Pois, "mesmo as tradições inventadas dos séculos XIX e XX ocupavam ou ocupam um espaço muito menor nas vidas particulares da maioria das pessoas e nas vidas autônomas de pequenos grupos sub-culturais do que as velhas tradições ocupam na vida das sociedades agrárias" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 20). Entretanto, essas tradições mantém forte influência sobre a chamada vida pública dos cidadãos sendo "a maioria das ocasiões em que as pessoas tomam consciência da cidadania como tal permanecem associadas a símbolos e práticas semi-rituais (por exemplo, as eleições), que em sua maior parte são historicamente originais e livremente inventadas: bandeiras, imagens, cerimônias e músicas" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 20).

Por fim, se questiona Hobsbawm: por que os historiadores devem se preocupar com a invenção das tradições? Para ele, basicamente por conta de duas razões. A primeira é que essas tradições podem ser indícios de problemas ou de natureza das transformações. Por exemplo, "pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana e operária que não conseguiram através de fontes mais convencionais" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 21). A segunda razão diz respeito ao exercício específico dos historiadores, pois é estudando o surgimento das tradições que se pode entender o diálogo que as pessoas mantém com o passado. Para aqueles que buscam estudar os meandros do fenômeno nacional, ou seja, construção de identidades nacionais e a própria ideia de nação torna-se primordial o estudo sobre as tradições. A ideia de naturalidade e antiguidade de um povo remonta justamente da ideia de "Tradição Inventada" conceituada nesta introdução, por exemplo. A obra presente, encerra o autor, está fincada no campo da História porém a temática em torno das tradições é considerada por Hobsbawm como interdisciplinar.

Capítulo 07 - A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 a 1914 - Eric Hobsbawm

Parte I: nessa primeira parte do capítulo, Hobsbawm trata da produção em massa de tradições entre os anos de 1870 a 1914. É o período de grandes transformações no continente, como a unificação da Alemanha e da Itália, assim como o advento da Terceira República Francesa (1870-1940). De imediato, Hobsbawm afirma existir dois tipos de manifestações das tradições:
Foi realizada oficialmente e não-oficialmente, sendo as invenções oficiais - que podem ser chamadas de "políticas" - surgidas acima de tudo em estados ou movimentos sociais e políticos organizados, ou criadas por eles; e as não-oficiais - que podem ser denominadas "sociais" - principalmente geradas por grupos sociais sem organização formal, ou por aqueles cujos objetivos não eram específica ou conscientemente políticos, como os clubes e grêmios, tivessem eles ou não também funções políticas. Esta distinção é mais uma questão de conveniência do que de princípio (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 271).
O período analisado foi palco de transformações, como já foi dito acima. Transformações que impunham grupos sociais, ambientes e contextos sociais novos e que exigiam novas ferramentas que assegurassem estabilidade, coesão social e identidade. As antigas formas de governo não correspondiam a nova conjuntura. Em suma, fazia-se necessário uma verdadeira reestruturação das relações sociais e com isso uma variedade de tradições surgiram. Novos feriados, cerimônias, heróis nacionais e símbolos oficiais apareceram por todo continente europeu. E uma instituição teve destaque: o Estado. Segundo o autor:
Não obstante, o Estado ligou as invenções de tradição formais e informais, oficiais ou não, políticas e sociais, pelo menos nos países onde houve necessidade disso. Visto de baixo, o Estado definiria cada vez mais um palco maior em que se representavam as atividades fundamentais determinantes das vidas dos súditos e cidadãos (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 272).
Começava a surgir a ideia de uma "economia nacional", contrária da lógica liberal pura. Existiu uma sistemática padronização das leis e administração pública, além do desenvolvimento da educação oficial e gerenciada pelo Estado. A política tornava-se cada vez mais nacional e a sociedade civil confundia-se com o Estado. Porém, esse mesmo Estado encontrava dificuldades no estabelecimento de uma ordem ou obediência de seus súditos. Isso por conta do seguinte processo: "Os problemas dos estados e dos governantes eram sem dúvida muito mais graves onde os súditos se haviam tornado cidadãos, ou seja, pessoas cujas atividades políticas eram institucionalmente reconhecidas como algo que devia ser considerado - mesmo que fosse apenas sob a forma de eleições (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 273).

Só quem conseguia superar desse desafio, eram Estados que mantinham estruturas sociais fortemente estratificadas e hierarquizadas com base numa justificativa que evocava fatores divinos inescrutáveis. A modernização para esses Estados representava a assinatura do seu enfraquecimento e, tirando o Japão, Hobsbawm afirma ser difícil encontrar um caso em que essa modernização foi feita mantendo as velhas estruturas sociais. Isso porque, "Possivelmente, tais tentativas de atualizar os laços sociais de uma ordem tradicional implicavam o rebaixamento da hierarquia social, um fortalecimento das ligações diretas entre o súdito e o governante central que, intencionalmente ou não, passou a representar cada vez mais um novo tipo de estado" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 274).

Além desses Estados arcaicos, outros que encontravam dificuldades diante da nova conjuntura eram os "Estados Novos", isso porque eles necessitam criar uma variedade de símbolos e laços que culminassem numa segura obediência e lealdade política. Porém, tirando o caso da Itália que realmente teve que criar do zero a ideia do que seria ser italiano, os demais Estados europeus já continham bandeiras, hinos, capitais e toda variedade de símbolos. No caso francês (Terceira República Francesa) e alemão (Império Alemão) , foco dessa primeira parte, os novos Estados foram construídos mas com base em símbolos passados.

As tradições criadas no períodos são resultado de um período em que a democracia e a política de massas ganhava impulso e o povo mais humilde começava a lutar por espaço, encarnado na busca pelo sufrágio universal e consequentemente ao voto. A política popular foi uma constante ameaça encontrada pelos Estados europeus do século XIX. Por esse motivo que, "Não obstante, mesmo onde as constituições não eram democráticas, a própria existência de um eleitorado de massas já evidenciava o problema de manter sua lealdade" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 275).

Repetindo o que foi dito acima com as palavras do Hobsbawm: "A ampliação do progresso da democracia eleitoral e a consequente aparição da política de massas, portanto, dominaram a invenção das tradições oficiais no período de 1870-1914. O que tornava isso particularmente urgente era a predominância tanto do modelo das instituições constitucionais liberais quanto da ideologia liberal" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 275-276). E por que essa menção das instituições e ideologia liberais como empecilhos? Eram empecilhos porque se baseavam numa ideia de sociedade que supervalorizava o indivíduo e relegava ou secundarizava a coletividade. Sobre a ideologia liberal, atesta o autor:
Deixou, assim, sistematicamente, de cultivar os vínculos sociais e de autoridade aceitos pelas sociedades do passado, tendo aliás pretendido e conseguido enfraquecê-los. Contanto que as massas permanecessem alheias à política, ou fossem preparadas para apoiar a burguesia liberal, não haveria grandes dificuldades políticas em consequência disso. Todavia, da década de 1870 em diante tornou-se cada vez mais evidente que as massas estavam começando a envolver-se na política, e não se poderia ter certeza de que apoiariam seus senhores (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 276).
As tradições então serviriam para estabilizar uma sociedade que se encontrava prestes a desenvolver convulsões. Elas surgiram num momento em que, tanto as elites intelectuais, quanto os governantes, perceberam que a dominação política também depende de fatores "irracionais" e não simplesmente do uso da violência (usada sempre que possível). Entre os pensadores dessa elite intelectual que começaram a identificar uma tendência irracional na psique humana, temos: William James, Sigmund Freud, Émile Durkheim e entre outros nomes citados por Hobsbawm. Enfraquecido o Utilitarismo liberal, "O estudo intelectual da política e da sociedade foi transformado pelo reconhecimento de que o que mantinha unida as coletividades humanas não eram os cálculos racionais de seus componentes" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 276-277). Havia a necessidade de desenvolver uma espécie de "religião cívica" que estabilizasse a sociedade. Essa foi a preocupação central da sociologia de Durkheim, por exemplo.

Feita essa explanação geral, Hobsbawm adentra nos exemplos históricos específicos e concretos. E o primeiro exemplo é a Terceira República Francesa, instituída no país em 1870 e que duraria até a invasão nazista ao país em 1940. Os principais inimigos da Terceira República era a direita e o proletariado urbano revolucionário, porém, se a primeira era eleitoralmente minoria; a segunda seria facilmente derrotada com o apoio das pequenas cidades e aldeias francesas. Nesse contexto, as tradições inventadas no período serviram para fortalecer a Terceira República por conta do seguinte:
Entretanto, a invenção da tradição desempenhou um papel fundamental na manutenção da República, pelo menos salvaguardando-a contra o socialismo e a direita. Pela anexação deliberada da tradição revolucionária, a Terceira República apaziguou os social-democratas (como a maioria dos socialistas) ou isolou-os (como os anarco-sindicalistas). Em consequência disso, era agora capaz de mobilizar até mesmo a maioria de seus adversários potenciais da esquerda para defender uma república e uma revolução do passado, constituindo uma frente única com as classes que reduziu a direita e uma permanente minoria no país (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 278).
Quem dominava a cena política da Terceira República eram os republicanos moderados e de centro. Apesar das tradições inventadas, eles permaneceram enfrentando a oposição dos republicanos jacobinos radicais e também do movimento socialista francês. Esse último cria suas próprias tradições como a comemoração anual da Comuna de Paris, a "Internacional" em vez da "Marselhesa" e se opondo a participação socialista a governos burgueses. Mas tais oposições foram insignificantes, mantendo os homens de centro o controle sobre a Terceira República sem maiores transtornos. Esses homens agiram e trataram de criar as seguintes novidades:

  1. Educação Cívica, imbuída de conteúdo revolucionário e republicano;
  2. Cerimônias Públicas, sendo o Dia da Bastilha o mais importante e criado em 1880;
  3. Monumentos Públicos, focando menos na construção de edifícios públicos e mais em estátuas que representassem sua devoção a democracia e a Revolução Francesa de 1789. A imagem de Marianne foi nacionalmente conhecida, sendo a principal marca da Terceira República.  
A principal característica das tradições inventadas pela Terceira República envolveram a Revolução Francesa de 1789, sem lembrar do antes e nem do depois. Isso porque a história francesa pré-1789, era marcada pela hegemonia da igreja e da monarquia; já a história pós-1789 foi marcada por forte instabilidade política e heterogeneidade de lideranças. Fazia-se mais eficiente utilizar de símbolos da Revolução Francesa em si do que reivindicar líderes jacobinos, girondinos ou napoleônicos. A ideia era justamente agradar a gregos e a troianos, não incitando divisões na arena política. A consequência disso foi a seguinte:
Eram poucos os símbolos: a tricolor (democratizada e universalizada na faixa do prefeito, presente em todo casamento civil ou outra cerimônia), o monograma da República (RF) e o lema (liberdade, igualdade, fraternidade), a "Marselhesa", e o símbolo da República e da própria liberdade, que parece ter tomado forma nos últimos anos do Segundo Império, Marianne (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 281). 
Agora Hobsbawm chega no caso do Segundo Império Alemão, erguido em 1871. Existiam dois desafios: 01) dar legitimidade e coesão a versão histórica dada por Bismark; 02) lidar com o eleitorado democrático que preferia outra solução para o país em vez da construção de um império, como os social-democratas. Mas Bismark, principal político do período, não se preocupou muito com as tradições a não ser a criação de uma nova bandeira (então inédita) de cores preta, branca e vermelha. Isso porque, "A receita de Bismark para a estabilidade política era ainda mais simples: conquistar o apoio da burguesia (predominantemente liberal), cumprindo seu programa até um ponto que não comprometesse a predominância da monarquia, exército e aristocracia prussiana, utilizar as divisões potenciais entre os vários tipos de oposição e evitar tanto quanto possível que a democracia política influenciasse as decisões do governo" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 282). Apesar da pouca atenção bismarkiana as tradições, elas existiram e para Hobsbawm tinham a seguinte natureza:
A invenção das tradições do Império Alemão associa-se, portanto, antes de mais nada, à era de Guilherme II. Seus objetivos eram primordialmente duplos: estabelecer a continuidade entre o Primeiro e o Segundo Império Alemão, ou, de modo mais geral, estabelecer o novo Império como realização das aspirações nacionais seculares do povo alemão; e enfatizar as experiências históricas específicas que ligavam a Prússia ao restante da Alemanha na construção do novo Império, em 1871. Ambas as metas, por sua vez, exigiam a convergência da história prussiana e alemã, coisa a que se dedicaram por algum tempo os historiadores imperiais patriotas (especialmente Treitsche) (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 282).
Diferente dos franceses, os alemães focaram seus esforços na construção de edifícios (além dos monumentos) para consolidar sua narrativa histórica. Hobsbawm cita uma variedade de obras feitas no período, vamos aqui reproduzir algumas como o monumento a Armínio, o chamado Querusco, localizado na floresta Teutoburga; e o monumento Niederwald, construído às margens do rio Reno e que representa uma comemoração a unificação alemã em 1871. Mas Hobsbawm continua, destacando o aumento quantitativo de obras no período como a reforma do Reichstag (parlamento alemão), porém, o destaque fica para a quantidade considerável de monumentos em homenagem a Guilherme I, Bismarck e a Batalha de Sedan.

Sobre a Batalha de Sedan, existiu no período uma significativa valorização a Guerra Franco-Prussiana, vencida pelas forças alemãs. "Assim, os anais de um ginásio registram nada menos que dez cerimônias entre agosto de 1895 e março de 1896 para comemorar o vigésimo quinto aniversário da guerra franco-prussiana, incluindo amplas comemorações das batalhas da guerra, celebrações do aniversário do imperador, a entrega oficial do retrato de um príncipe imperial, iluminação especial e discurso sobre a guerra de 1870-1, sobre o desenvolvimento da ideia imperial (Kaiseridee) durante a guerra, sobre o caráter da dinastia Hohenzollern, e daí por diante" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 285).

As experiências francesas e alemãs se igualam ao buscar um ato de fundação para o novo regime. No caso francês, a Revolução Francesa de 1789; já no caso alemão a Guerra Franco-prussiana. Entretanto, a Terceira República tratou de focar nos símbolos e significados específicos de 1789, sem fazer qualquer retrospectiva da história francesa. Já na Alemanha, indefinido antes de 1871, se viu a utilização de fontes e períodos históricos diversos em busca de justificativa para a narrativa que buscava aproximar alemães e prussianos. Mas o fato é que as tradições inventadas pelos alemães buscavam se firmar mais na negação do que na afirmação. A identidade era construída com base na negação daquilo que eles não eram. E o Segundo Império Alemão se sustentou com base no seguinte posicionamento:
Mesmo assim, numa nação que para sua autodefinição dependia tanto de seus inimigos, externos e internos, isso não de todo inesperado; mais ainda porque, a elite militar, por definição antidemocrática constituía um instrumento tão poderoso para elevar a classe média ao status de classe dominante. Ainda assim, a escolha dos social-democratas e, menos formalmente, dos judeus como inimigos internos tinha uma vantagem a mais, embora o nacionalismo do Império fosse incapaz de explorá-lo a fundo. Oferecia um apelo demagógico tanto contra o liberalismo capitalista quanto contra o socialismo proletário, apelo esse capaz de mobilizar as grandes massas da classe média baixa, artesãos e camponeses que se sentiam ameaçados por ambos, sob a bandeira da "da nação" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 287).
Outro caso analisado por Hobsbawm foi o dos EUA. O principal desafio dos EUA era lidar com a massa heterogênea de pessoas que não eram norte-americanas de nascimento, mas fruto da imigração. As tradições inventadas nos EUA foram no sentido de criar o norte-americano e algumas comemorações foram desenvolvidas com esse intuito como o 4 de julho, em lembrança dos fundadores do país e da Revolução Americana de 1776, e o Dia de Ação de Graças em alusão a uma tradição protestante. Além dessas comemorações, foi instituído nas escolas a adoração a bandeira nacional. O Americanismo tinha como oposto o Anti-americanismo, sendo os operários urbanos considerados membros do último grupo graças a sua origem, resultado da imigração. Por fim, Hobsbawm afirma que também existiram tradições inventadas em outros países da épocas. Entre os monarquistas, a receita passava pela utilização da coroa, visando aproximar o monarca do povo. A relação direta com o súbito era resultado do receio dos monarcas a sombra do que foi a Revolução Francesa, desenvolvendo a ideia de um "rei dos franceses" e não meramente um "rei da França", por exemplo.

Parte II: Nessa segunda parte do capítulo, Hobsbawm analisa as tradições inventadas por movimentos de massa extra-Estado, como as organizações proletárias. Essas organizações, independentes e alternativas ao Estado, são chamados pelo autor de "movimentos socialistas operários". O principal ritual criado por esses movimentos foi o 1º de Maio, festejado a partir de 1890. Sobre esse ritual:
O principal ritual internacional destes movimentos, o 1º de Maio (1890) desenvolveu-se espontaneamente dentro de um período surpreendentemente curto. No princípio, compunha-se de uma greve geral de um dia e uma manifestação reivindicando uma jornada de trabalho de oito horas, marcadas numa data já associada durante alguns anos com esta exigência nos Estados Unidos (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 291).
Apesar da recusa inicial da Internacional Operária e Socialista, as comemorações do 1º de Maio acabaram vingando. Foi um ritual institucionalizado não pelas lideranças do movimento, mas pela iniciativa dos seguidores. Entre os símbolos utilizados durante as festividades estavam as bandeiras vermelhas e as flores (como o cravo vermelho na Áustria, rosa vermelha na Alemanha e a papoula na França). Para além da luta política, "o 1º de Maio desempenhou papel capital do desenvolvimento da nova iconografia socialista da década de 1890 em que, apesar da esperada ênfase na luta, o toque de esperança, confiança e a aproximação de um futuro melhor - muitas vezes expressa pelas metáforas do crescimento das plantas - prevaleceram" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 293). E esse toque de esperança não poderia surgir num momento melhor, pois o fim do século XIX representou um período de crescimento e expansão do movimento socialista em diversos países europeus.
Assim, a data transformou-se rapidamente numa festividade e rito anual altamente carregado. A repetição anual foi adotada para atender à demanda das camadas. Com ela, o conteúdo político original do dia - a exigência de uma jornada de trabalho de oito horas - fatalmente foi posto de lado, dando lugar a qualquer tipo de slogans que atraíssem os movimentos operários nacionais num dado ano, ou, com mais frequência, a uma afirmação não específica da presença da classe operária e, em muitos países latinos, a comemoração dos "Mártires de Chicago". O único elemento original mantido foi o internacionalismo da manifestação, de preferência simultâneo: no caso extremo da Rússia de 1917, os revolucionários chegaram a mudar seu próprio calendário, para poder comemorar o Dia do Trabalho na mesma data que o resto do mundo. E, de fato, o desfile público dos trabalhadores como uma classe constituía o núcleo do ritual. (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 293).
O entusiasmo público representava a lealdade ao movimento, elemento primordial da consciência de classe dos operários. Os longos discursos (naquela época, quanto mais longos os discursos, melhor) se aliavam a abstenção do trabalho, afirmando o poder do proletariado. O evento tornou-se tão representativo que foi adotado até pelos históricos inimigos do movimento socialista, como os nazistas que em 1933 adotava o 1º de Maio como o "dia oficial nacional do trabalho". Assim sendo,
O 1º de Maio e os rituais trabalhistas semelhantes situam-se entre as tradições "políticas" e "sociais", pertencendo ao grupo das primeiras através de sua associação com as organizações de massas e partidos que podiam - e de fato visavam - tornar-se regimes e estados; e ao grupo das segundas porque manifestavam de forma autêntica a consciência que os trabalhadores tinham de serem uma classe à parte, visto que esta consciência era inseparável das organizações correspondentes (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 294).
Feita essa análise da existência, surgimento e desenvolvimento do 1º de Maio enquanto fruto do movimento operário socialista; Hobsbawm afirma que a classe trabalhadora acabou criando tradições inventadas independentes das chanceladas pelo movimento socialista. E é daí que ele distingue os líderes e militantes do movimento socialista dos simples adeptos e eleitores. Foram esses últimos que criaram tradições independentes dos movimentos organizados, inclusive tradições criticadas abertamente por essas organizações. O autor foca em duas: a primeira se relacionando a roupas como expressão de classe e a segunda aos esportes de massa.

Sobre o primeiro caso, Hobsbawm cita o personagem em quadrinhos Andy Capp (ou Zé do Boné) que é usado ironicamente para retratar a cultura operária masculina da Grã-Bretanha. O boné não é por acaso: acessório inicialmente presente entre as classes alta e média, passou a ser consumida pelas classes subalternas a partir da década de 1890. Seu consumo por parte dos operários urbanos tem forte ligação com o desenvolvimento dos esportes de massa, mas "De alguma forma não muito clara, os proletários adquiriram o hábito de usar o boné bem rápido, nas últimas décadas do século XIX e na primeira década do século XX, como parte da síndrome característica da 'cultura operária' que se delineava então" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 295-296). Já o segundo caso envolve os esportes de massa e sobre eles:
Entre meados da década de 1870, no mínimo, e meados ou fins da década de 1880, o futebol adquiriu todas as características institucionais e rituais com as quais estamos familiarizados: o profissionalismo, a Confederação, a Taça, que leva anualmente em peregrinação os fiéis à capital para fazerem manifestações proletárias triunfantes, o público nos estádios todos os sábados para a partida do costume, os "torcedores" e sua cultura, a rivalidade ritual, normalmente entre facções de uma cidade ou conurbação industrial (Manchester City e United, Notts County e Forest, Liverpool e Everton)  (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 296).
Em princípio criado como um esporte amador e vinculado a classe média, o futebol foi rapidamente popularizado e proletarizado, sendo a profissionalização o grande motor para essa mudança.  Mas qual a visão do movimento socialista organizado a esportes de massa como o futebol? Era de completo rechaço, como afirma Hobsbawm:
Por outro lado, sabe-se que, embora, como indicam as últimas palavras apócrifas de um militante operário, para muitos membros do proletariado a devoção a Jesus Cristo, Keir Hardie e ao Huddersfield United era indivisível, o movimento organizado mostrou uma falta geral de interesse por isso, assim como por vários outros aspectos não políticos da consciência de classe operária (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 298).
Parte III: Nesta terceira parte do capítulo, Hobsbawm debate as distinções entre a classe média. Apesar da dificuldade dessa distinção, vide sua heterogeneidade, se fazia necessária numa época em que várias profissões reivindicavam o status de classe média e um número cada vez maior de indivíduos aspiravam a esse patamar por conta do processo de industrialização em curso. Porém, não era uma tarefa fácil e Hobsbawm explica as razões no seguinte trecho:
O critério para pertencer a estas classes não podia ser tão simples quanto o nascimento, a propriedade, o trabalho braçal ou o recebimento de salários, e embora sem dúvida fosse uma condição necessária ter um mínimo socialmente reconhecido de bens imóveis e renda, isso ainda não era o bastante. Além do mais, normalmente tal classe incluía pessoas (ou antes, famílias) com uma ampla esfera de fortuna e influência, cada camada inclinada a desprezar seus inferiores. A fluidez das fronteiras tornava difícil distinguir com clareza os critérios de distinção social (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 299).
Essa distinção, encarava dois problemas: 01) como definir e separar a elite autêntica de uma classe média alta se os antigos critérios de parentesco e descendência encontravam-se em desuso?; 02) como estabelecer uma identidade para a grande massa que não pertenciam a elite, nem às massas (nem mesmo as chamadas "classes médias baixas", vistos ao lado dos trabalhadores braçais)?. Além desses dois problemas, Hobsbawm identifica um terceiro: o surgimento da emancipada mulher oriunda da classe média que entre 1897 e 1907 aumentou em 170% sua presença nos liceus franceses.

Para as classes médias altas o ideal seria uma junção com a elite autêntica, ou aristocracia, mas isso não foi possível sequer na Grã-Bretanha onde era comum que uma família de banqueiros acabasse se unindo à realeza por intermédio de casamentos. Apesar disso, "A rápida aquisição de fortunas fabulosas poderia também capacitar os plutocratas de primeira geração a pagarem para entrar num contexto aristocrático que nos países burgueses baseava-se não só no título e na descendência como também em dinheiro suficiente para levar-se um estilo de vida adequadamente dissoluto. Na Grã-Bretanha eduardiana, os plutocratas aproveitavam avidamente essas oportunidades. Contudo, a assimilação individual só se aplicava a uma reduzida minoria" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 300).

Por conta do fracasso que era a simples compra de títulos nobres, transformou-se a educação num critério fundamental para distinguir as classes sociais. A educação escolar, acrescida pelos esportes amadores nela presentes, estabelecia uma comparação entre indivíduos e famílias para além das relações pessoais iniciais. Era também uma forma de estabelecer padrões de comportamento e valores em comum através de uma rede interligada de relações. Ainda sobre o papel da educação:
Além disso, permitia, dentro de certos limites, a possibilidade de expansão para uma elite da classe média alta, socializada de alguma maneira devidamente aceitável. Aliás, a educação no século XIX tornou-se o mais conveniente e universal critério para determinar a estratificação social, embora não se possa definir com precisão quando isto aconteceu. A simples educação primária fatalmente classificava uma pessoa como membro das classes inferiores. O critério mínimo para que alguém pudesse ter status de classe média reconhecido era educação secundária a partir de, aproximadamente, 14 a 16 anos. A educação superior, exceto por certas formas de instrução estritamente vocacional, era sem dúvida um passaporte para a alta classe média e outras elites (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 301).
Nessa conjuntura, as universidades se expandiram ao ponto da Alemanha enfrentar uma superprodução de graduados e a educação secundária era um critério amplo demais para quem desejava se diferenciar das classes mais baixas, era preciso ir além dela para galgar posições sociais mais elevadas e prestigiadas.

Para se formar uma elite nacional ampla, fazia-se necessária formar redes de comunicação e de interação. E para saciar essa necessidade, foram erguidas as chamadas "redes de alunos antigos", onde "Nos Estados Unidos e na Alemanha o papel destas redes entre gerações era desempenhado conscientemente, talvez porque em ambos os países ficasse muito nítido sua função primeira de fornecer homens para o serviço público" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 304).

São das universidades e dessas redes de interação que começaram o desenvolvimento dos esportes, vistos como disputas contra aqueles considerados à altura em termos sociais. Sobre o advento dos esportes como prática social criada pelas classes médias e altas, Hobsbawm destaca três aspectos:

  1. O fim do século XIX foi palco da criação de novos esportes e difusão de antigos, institucionalizando a maioria deles a nível nacional e internacional; 
  2. A institucionalização proporcionou uma expansão dos esportes, antes praticado exclusivamente pela aristocracia e burgueses, e agora também consumido pelas classes médias; 
  3. A institucionalização dos esportes proporcionou não só a reunião de indivíduos com o status social semelhante como também foi capaz de atribuir um protagonismo às mulheres burguesas. 
Um exemplo do que foi traçado acima foi o tênis, esporte novo e inventando na Grã-Bretanha em 1873, sendo institucionalizado no país em 1877 através do torneio nacional (Wimbledon) e em 1900 a nível internacional com a Taça Davis. O tênis era praticado por ambos os sexos, passando as mulheres a integrar Wimbledon sete anos após a introdução do masculino, no caso britânico. E, como destaca o autor: "Quase pela primeira vez, portanto, o esporte proporcionou às mulheres respeitáveis das classes altas e médias um papel público reconhecido de seres humanos individuais, à parte de sua função como esposas, filhas, mães, companheiras ou outros apêndices dos homens dentro e fora da família" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308).

Assim sendo, os esportes cumpriam um papel duplo no que tange a invenção da tradição: ele era tanto político quanto social. No âmbito político, ele "representava uma tentativa consciente, embora nem sempre oficial, de formar uma elite dominante baseada no modelo britânico que suplementasse, competisse com os modelos continentais aristocrático-militares mais velhos, ou procurasse suplantá-los" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308); já do ponto de vista social, "representava uma tentativa mais espontânea de traçar linhas de classe que isolassem as massas, principalmente pela ênfase sistemática no amadorismo como critério do esporte de classe média e alta" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308). Em suma, sua função era estabelecer um padrão específico e burguês estilo de vida e de lazer, bissexual e urbano, sendo um critério flexível e ampliável de admissão num grupo social específico. 

Segundo Hobsbawm, "Tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a invenção de tradições sociais e políticas de uma forma: constituindo um meio de identificação nacional e comunidade artificial" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308). Se encaminhando para o final da terceira parte, Hobsbawm aponta dois fenômenos desenvolvidos pelos esportes. Um de nível nacional e outro internacional. Sobre o primeiro: 
O primeiro era a demonstração concreta dos laços que uniam todos os habitantes do Estado nacional, independente de diferenças locais e regionais, como na cultura futebolística puramente inglesa ou, mais literalmente, em instituições desportivas como o Tour de France dos ciclistas (1903), seguido do Giro d'Itália (1909) (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 309).
Já sobre o segundo fenômeno:
O segundo fenômeno consistiu nos campeonatos esportivos internacionais que logo complementaram os nacionais, e alcançaram sua expressão típica quando da restauração das Olimpíadas em 1896 (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 309-310).
Esses campeonatos internacionais serviam para reforçar a unidade das nações, da mesma forma que os campeonatos inter-regionais. O fato é que durante muito tempo o esporte internacional, incluindo a FIFA, ficou nas mãos do amadorismo e da classe média. Em tom final, Hobsbawm assim atesta sobre a fórmula classe média, nacionalismo e esportes em sua dimensão internacional:
Conforme observamos, as classes médias no sentido lato consideravam a identificação grupal subjetiva algo extremamente difícil, uma vez que não eram, de fato, uma minoria suficientemente pequena para estabelecer a espécie de associação prática de um clube de dimensões nacionais que reunisse, por exemplo, a maioria daqueles que houvessem passado por Oxford e Cambridge, não suficientemente unidos por um destino e uma solidariedade potencial comum, como os operários. As classes médias preferiram tomar a atitude negativa de se segregarem de seus inferiores através de mecanismos como a insistência rígida no amadorismo no esporte, assim como através do estilo de vida e valores de "respeitabilidade", sem contar a segregação residencial. Porém, pode-se dizer que foi positiva a atitude de estabelecer um sentido de união através de símbolos externos, entre os quais os do nacionalismo (patriotismo, imperialismo) eram talvez os mais importantes. Foi, segundo penso, como a classe essencialmente patriótica que a nova ou aspirante classe média achou mais fácil reconhecer-se coletivamente (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 310-311).
Para a classe média, o nacionalismo tornou um garantidor da coesão social, transformando-se numa espécie de igreja nacional ou religião secular que viria a oferecer para si uma ideia de coletividade.

Parte IV: 













 


















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