terça-feira, 16 de julho de 2019

A Identidade Cultural na Pós-Modernidade


  • Sobre o autor: Stuart Hall foi um sociólogo jamaicano, radicado na Inglaterra, que nasceu em 1932 e faleceu aos 82 anos em 2014. É um dos representantes da escola de pensamento conhecida como Estudos Culturais Britânicos, junto com pensadores como Raymond Williams. Hall também foi presidente da Associação Britânica de Sociologia entre os anos de 1995 a 1997. A maioria da sua obra ainda não se encontra traduzida para a Língua Portuguesa. Entre as traduzidas, podemos destacar: a) Da Diáspora - Identidades e Mediações Culturais; b) Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Sua vasta obra perpassa temas como gênero, raça, identidade e cultura.  
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A Identidade Cultural na Pós-Modernidade - Stuart Hall - Editora DP&A



A obra não contém uma introdução, iniciando já com a discussão do capítulo 01. São 06 capítulos em menos de 100 páginas, são eles: 01) A Identidade em Questão; 02) Nascimento e Morte do Sujeito Moderno; 03) As Culturas Nacionais como Comunidade Imaginada; 04) Globalização; 05) O Global, o Local e o Retorno da Etnia; 06) Fundamentalismo, Diáspora e Hibridismo. 

Capítulo 01 - A Identidade em Questão

Stuart Hall inicia o capítulo com uma constatação: as velhas identidades que formaram o unificado indivíduo moderno, estão sendo substituídas por novas identidades. Logo, estaríamos passando por uma "crise de identidade" que vem deslocando o velho e formando um novo tipo de identificação social. Diante dessa afirmação, a obra busca perpassar por três pontos-chaves: a) Existe crise de identidade?; b) Qual a natureza desse processo?; c) Quais suas consequências? 

A primeira parte do livro (Hall coloca como os capítulos 1 e 2) debatem o conceito de identidade e sujeito. Já a segunda parte (do capítulo 3 ao 6), ele estende o debate em busca de uma compreensão mais detalhada dessas novas identidades culturais. O debate sobre identidade perpassa várias esferas da vida social como identidades étnicas, raciais, religiosas, nacionais etc. De antemão, Hall afirma que enxerga com bons olhos a ideia de que as identidades modernas estão sendo descentralizadas e enfraquecidas, dando lugar a novas formas. A argumentação geral do livro, passa, enfim, por essa afirmação: 
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 9).
O autor distingue três diferentes concepções de identidade que encontramos durante à História, são eles: a) Sujeito do Iluminismo; b) Sujeito Sociológico; c) Sujeito Pós-Moderno. 

O Sujeito do Iluminismo tinha como característica a formação de um indivíduo centrado, unificado e dotado de razão. Essa razão, típica dos seres humanos, está integrada em um núcleo interior que é desenvolvido durante a existência do indivíduo. O Sujeito Iluminista está baseado numa concepção individualista, em suma, "O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 11)

O Sujeito Sociológico não rejeita a autonomia individual que o Iluminismo cria, porém, enxergava que esse indivíduo "era formado na relação com 'outras pessoas importantes para ele', que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 11). Logo, o Sujeito Sociológico é aquele formado pela cultura, sendo sua identidade formada a partir de uma interação entre o eu e a sociedade. Sua principal sacada é afirmar que a identidade é o cimento que liga o interior (o eu racional) com o exterior (a cultura e sua gama de relações sociais). Para essa concepção de sujeito, "O fato de que projetamos a 'nós próprios' nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os 'parte de nós', contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, 'sutura') o sujeito à estrutura" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 12)

E o Sujeito Pós-Moderno? Bom, esse começa a se formar justamente pela fragmentação da relação sujeito/estrutura dito acima. Essa identidade una que liga interior/exterior está se fragmentando, criando uma variedade de identidades, algumas vezes contraditórias. O Sujeito na Pós-Modernidade assume várias identidades e em diferentes momentos, que não se ligam a uma unidade coerente e fixa. Sendo assim, 
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 13)
Essas mudanças descritas acima fazem parte da própria dinâmica do que Hall chama de "modernidade tardia". A ideia de mudança e seu alcance a nível global tem inicio a partir do desenvolvimento da modernidade, acarretando uma "globalização". Já no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels falavam numa nova conjuntura política, social e econômica onde "tudo que é sólido se desmancha no ar". O desenvolvimento do capitalismo, visto por esses autores, trás consigo um constante "movimento eterno" que vem abalar as "relações fixas e congeladas". 

Anthony Giddens é outro autor mencionado por Hall. É ele que vem traçar as diferenças das sociedades tradicionais, veneradoras do passado e da tradição, em contraponto as sociedades modernas que detém em sua natureza uma constante reformulação de suas práticas sociais. Giddens afirma que a modernidade muda o ritmo e o alcance das mudanças. Isso gera um "desalojamento do sistema social", acarretando uma constante descontinuidade. Descontinuidades, rupturas e fragmentações também observadas pelo geógrafo britânico David Harvey. 

Outro teórico mencionado por Hall foi o sociólogo argentino Ernest Laclau, que utiliza o conceito de "deslocamento" para descrever o processo em debate. Sendo assim, "Uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma pluralidade de centros de poder" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 16). A principal característica das sociedades modernas é que nelas não encontramos nenhum centro organizador, nenhuma lei ou causa articuladora que venha dar unidade as práticas sociais. E mais, 
As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela "diferença"; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes "posições de sujeito" - isto é, identidades - para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 17).
Laclau, assim como o autor do livro, acaba enxergando pontos positivos nessa nova ordenação social, pois ela ao mesmo tempo que desarticula identidades passadas acaba criando novas possibilidades de identidades que criam novos sujeitos com novas práticas sociais. Hall conclui afirmando que, apesar de suas diferenças, Giddens, Harvey e Laclau se igualam ao enxergar na modernidade um processo de constante ruptura e fragmentação. 

Após essas reflexões conceituais, onde tratamos das várias concepções de sujeito e suas ligações com as construções de identidades, Hall encerra o capítulo fazendo o seguinte questionamento: quais as consequências políticas dessa identidade social fragmentada e pluralizada? Para isso ele vai em 1991, EUA, exemplificando uma indicação do então presidente norte-americano George W. Bush para a Suprema Corte Americana. Buscando hegemonia conservadora na Suprema Corte, Bush indicou Clarence Thomas: juiz negro de orientação política conservadora. 

Hall afirma que Bush buscava "jogar o jogo das identidades" com essa indicação, usando o seguinte raciocínio: os eleitores brancos (que porventura tivessem preconceito em relação a um juiz negro) poderiam apoiar Clarence, porque em matéria de política ele era um representante do conservadorismo; já os eleitores negros (progressistas no debate sobre raça) poderiam escolher Clarence porque ele era negro. 

Em meio ao processo da indicação, Clarence Thomas foi acusado de assédio sexual por Anita Hill, então uma funcionária subalterna ao juiz. A partir desse incidente, novas configurações foram tomadas. Alguns negros permaneceram apoiando Clarence pela questão da raça, mas outros se viram contra sua indicação com base na questão sexual. Além das questões de raça e gênero, também foram incluídas questões pertinentes a classe social, tendo em vista que Hill era sua subordinada. Como podemos observar, encontramos uma gama de identidades que se chocam e não necessariamente formam uma unidade. Dentre as consequências disso, Stuart Hall pontua as seguintes: 

  1. As identidades em questão eram contraditórias;
  2. Inexistia uma identidade singular e unificadora; 
  3. As identidades mudam de acordo com a forma como o sujeito é interpelado, em suma, torna-se politizada. 
Capítulo 02 - Nascimento e morte do sujeito moderno

Qual a centralidade desse capítulo? Responde Hall, "O foco principal deste capítulo é conceitual, centrando-se em concepções mutantes do sujeito humano, visto como uma figura discursiva" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 23). Em suma, o capítulo busca trazer uma breve história conceitual do sujeito moderno, indo de seu nascimento a sua morte. 

O processo que deu origem ao sujeito moderno, cunhado por Hall de "indivíduo soberano", tem origem no século XVI com o desenvolvimento do Humanismo Renascentista e ganha maior envergadura a partir do século XVIII, através do Iluminismo. Esse processo longo, teve como principal marca a ruptura com o passado e a construção de um "novo" que se confunde com uma ideia de "progresso". O sujeito moderno tem em sua natureza duas características centrais, sendo então: a) indivisível; b) singular. Quatro foram os acontecimentos históricos elencados por Hall para descrever o desenvolvimento desse sujeito moderno: 

  1. Reforma Protestante, quebrando o monopólio da fé centrada na Igreja Católica, libertando as consciências individuais do jugo da principal instituição social da época; 
  2. Humanismo Renascentista, responsável pela valorização da ideia de homem, agora visto como o centro do universo; 
  3. Revoluções Científicas, dando ao homem a capacidade de investigar, inferir e decifrar os fenômenos da natureza; 
  4. Iluminismo, que criou a imagem de um homem centrado, racional, científico e liberto de dogmas. 
Grande parte da Filosofia Ocidental se baseia em reflexões em torno da concepção desse sujeito, qual sua natureza e capacidades. O que Hall faz é um breve passeio sobre essas reflexões. René Descartes é o primeiro pensador citado. Visto como o "pai da Filosofia Moderna", Descartes imaginava que existiam duas substâncias distintas no mundo: a substância espacial, vista como a matéria; e a substância pensante, vista como a mente. Para facilitar o entendimento da matéria, propunha que as coisas para serem devidamente explicadas, deveriam ser reduzidas a uma quantidade mínima de elementos, em suma, a elementos irredutíveis. Já no centro da mente estaria o sujeito individual, caracterizado pela capacidade de pensar e racionar ("Penso, logo existo"). Esse tipo de sujeito racional, pensante e situado no centro do conhecimento é o que conhecemos como "sujeito cartesiano". Para esclarecer melhor esse processo, Hall cita Raymond Williams (sociólogo galês), que afirma o seguinte sobre esse homem iniciado no Renascimento e concluído no Iluminismo: 
O argumento começava com os indivíduos, que tinham uma existência primária e inicial. As leis e as formas de sociedade eram deles derivadas: por submissão, como em Hobbes; por contrato ou consentimento, ou pela nova versão da lei natural, no pensamento liberal. Na economia clássica, o comércio era descrito através de um modelo que supunha indivíduos separados que [possuíam propriedade e] decidiam, em algum ponto de partida, entrar em relações econômicas ou comerciais. Na ética utilitária, indivíduos separados calculavam as consequências desta ou daquela ação que eles poderiam empreender (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 29).
Entretanto, esse "sujeito-da-razão" concluído no século XVIII, logo menos começaria a ser questionado e novas teorias surgiram. A partir do instante em que o Estado-nação começou a se desenvolver, e com ele toda a burocracia, foi se formando uma concepção de sujeito mais social. O principal processo que impulsionou essa nova concepção de sujeito, foram o surgimento das Ciências Sociais que: 

  • Permaneceram valorizando a ideia de "indivíduo soberano" do Iluminismo, mas em diálogo com os outros ao seu redor; 
  • Resolveu o dualismo do pensamento cartesiano ao institucionalizar a Psicologia como o estudo dos processos mentais do indivíduo; 
  • Criticou o excesso de individualismo do Sujeito Iluminista ao institucionalizar a Sociologia que passou a localizar esse indivíduo a processos sociais que envolvem grupos e valores coletivos, tendo como consequência direta a teoria da socialização. 
A dualidade cartesiana foi resolvida, porém, outra foi criada. Agora o debate estava em volta da oposição entre "indivíduo e sociedade", buscando um fio que ligasse esses dois agentes. Outro processo dual que esse tipo de sujeito acarreta é o "interior e exterior", onde o sujeito externa a estrutura social, ao mesmo tempo que internaliza valores dessa mesma estrutura. No mesmo período que esse Sujeito Sociológico se desenvolve, em meados do século XX, para ser mais exato, alguns pensadores já davam inicio a uma gama de reflexões que teria como consequência a formação do Sujeito Pós-Moderno. 

Pensadores como Walter Benjamin na Filosofia, Alfred Schutz e George Simmel na Sociologia e Franz Kafka na Literatura iniciaram uma reflexão de um homem isolado, alienado e preso a multidão representada por uma metrópole impessoal e anônima. Essa visão pessimista que cerca o indivíduo nesses autores, será de extrema relevância na construção do Sujeito Pós-Moderno. 

O Sujeito Pós-Moderno é marcado pela descentralização. Para melhor situar a formação desse tipo de sujeito, Hall elenca cinco modificações ocorridas nas Ciências Sociais durante o século XX e que vieram a contribuir com esse processo. São elas: 

  1. Descentração do pensamento marxista. A partir de reflexões de autores como Louis Althusser, se inicia dentro do marxismo uma visão chamada de "anti-humanista" que levando à fundo a frase de Marx ("os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas"), afirmam que os sujeitos não podem ser protagonistas da história pois se encontram limitados pelas condições históricas sob os quais eles nasceram; 
  2. Descoberta do inconsciente por Sigmund Freud. A teoria Psicanalítica, desenvolvida por Freud e continuada por discípulos como Jacques Lacan, postula que nossos desejos e sentimentos estão no processo psíquico do inconsciente, que por sua vez tem uma funcionalidade diferente da razão. Nossa imagem do eu é construída socialmente e tem inicio na infância quando, não tendo uma auto-imagem definida, as crianças formam seu "eu" sob parâmetro do outro. Os conflitos não resolvidos nessa fase acabam acarretando divisões no sujeito. Logo, o sujeito unificado que vemos no exterior é apenas uma fantasia da fragmentação existente no inconsciente. Sendo assim, "a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre sendo formada" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 38)
  3. Virada Linguística. Essa descentração da língua foi obra do linguista e filosófico suíço Ferdinand de Saussure. Para ele, a língua é um sistema social e não individual. Logo, não podemos ser autores das próprias afirmações que fazemos, pois essas mesmas afirmações estão em consonância com o sistema cultural que fazemos parte e que nos preexiste. Aqui existe a quebra do sujeito que sequer tem propriedade sobre a língua que utiliza para se comunicar; 
  4. Descentramento da noção de poder. Esse descentramento é desenvolvido na obra do filósofo francês Michel Foucault que busca traçar uma "genealogia do sujeito moderno". Essa genealogia mostra o advento de um novo tipo de poder sobre os indivíduos: o poder disciplinar. Esse tipo de poder visa disciplinar, regular e vigiar os sujeitos modernos com o intuito de criar indivíduos dóceis. A prática desse poder disciplinar ficaria à cabo de instituições coletivas que se desenvolveram a partir do século XIX como os quartéis, prisões, hospitais, manicômios etc;
  5. O desenvolvimento do Feminismo como crítica teórica e movimento social. O Feminismo encontra-se num contexto de desenvolvimento dos chamados "Novos Movimentos Sociais" ao lado de revoltas estudantis, contraculturais além dos movimentos Negro e LGBT. Do ponto de vista conjuntural, o feminismo como parte desses Novos Movimentos Sociais, tinha como marca: a) crítica tanto ao liberalismo ocidental quanto ao socialismo oriental; b) ligações entre as dimensões "objetivas" com as "subjetivas"; c) contestação de organizações burocráticas e valorização da espontaneidade na formas de se fazer política; d) fragmentação da identidade dos movimentos sociais que passaram a defender pautas específicas como as mulheres no caso do Feminismo, os gays/lésbicas no caso do Movimento LGBT e os negros no caso do Movimento Negro. "Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política da identidade - uma identidade para cada movimento" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 45). Além desses aspectos conjunturais mais gerais, o feminismo contribuiu teoricamente para a descentralização do sujeito moderno ao: a) questionar a bipolaridade "dentro" e "fora", sendo a frase "o pessoal é político" como seu slogan"; b) contestação do funcionamento de instituições como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, o cuidado com as crianças etc; c) questionamento da forma como somos formados socialmente, ou seja, o Feminismo passou a problematizar a formação do sujeito, do indivíduo e da sua própria identificação como homens/mulheres, pais/mães etc; d) sua análise sobre o papel das mulheres na sociedade, expandiu-se para um debate de gênero mais amplo; e) por fim, o Feminismo com seus instrumentos teóricos passou a contestar o próprio conceito de humanidade, colocando no seu lugar a questão da diferença sexual em que contesta a visão de que homens e mulheres fazem parte da mesma identidade e posição na realidade concreta. 
Capítulo 03 - As Culturas Nacionais como Comunidades Imaginadas

O principal questionamento desse terceiro capítulo é: como as identidades culturais nacionais estão sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de globalização? Partindo dessa indagação inicial, Stuart Hall aceita a ideia de que as culturas nacionais são importantes elos de identidade cultural do homem moderno. Essas identidades não estão em nosso gene, são construções sociais, produto de um sistema cultural.

Hall cita dois autores que, apesar de partirem de perspectivas teóricas e ideológicas diferentes, chegam a conclusões semelhantes no que tange a importância das culturas nacionais: trata-se do filósofo conservador Roger Scruton e do filósofo liberal Ernest Gellner. Scruton atesta para a necessidade do homem reconhecer a si mesmo como parte de algo maior. Esse algo maior seria a sociedade e os grupos sociais, classes e nações que dela fazem parte. Já Gellner aponta para a necessidade do homem moderno em estar vinculado a uma cultura nacional, sendo tratado como um atributo inerente da humanidade. Sendo a nação uma construção coletiva que liga o homem moderno a algo maior, ou seja, a sociedade, Hall afirma:
Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 49).
Não é à toa que essa representação cultural - chamada nação - busca formar uma unidade socio-política que passa pela padronização da língua, cultura, moeda, instituições, símbolos, sistema educacional etc. Temos, então, o surgimento do que chamamos de Estado-nação que terá importância central na identidade do sujeito moderno.

O restante do capítulo busca debater as seguintes questões: 01) entender o processo que levam as culturas nacionais a serem vistas como sistemas de representação; 02) discutir se essas identidades nacionais indivisíveis, sólidas e homogêneas são tão verdadeiras como pronunciam ser; 03) concluir com a tese de que essas identidades, um dia homogêneas, estão se tornando heterogêneas graças ao processo de globalização em curso. Mas, afinal, qual seria a natureza das culturas nacionais? Para o autor,
As culturais nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 50).
Esse discurso que constrói sentidos, acaba criando identidades. Daí surgem as identidades nacionais, fazendo da nação o que Benedict Anderson chama de "comunidade imaginada". Mas quais as estratégias utilizadas na formação e reprodução desses discursos identitários? Stuart Hall aponta cinco aspectos, são eles:

  1. Construções de narrativas. Uma gama de histórias são criadas e contadas na mídia, na literatura, na cultura popular etc. Qual o papel dessas histórias? Segundo Hall, "Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 52)
  2. Ideia de imutabilidade. Aqui se faz necessário que a narrativa dê ênfase na criação de tradições que deem uma ideia de continuidade ininterrupta aquela nação e povo; 
  3. Invenção de tradições. Hall utiliza o conceito de "invenção das tradições" dos historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger que são "um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 54)
  4. Mito fundador. As narrativas que baseiam essas culturas nacionais necessitam da criação de um mito fundador que seja uma espécie de localizador da origem daquele determinado povo; 
  5. Ideia de povo. Por fim, faz-se necessário a construção de uma ideia de um povo puro que simbolicamente formam um folclore. 
Em forma de resumo, podemos definir que o conjunto desses aspectos "constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 56). Busca-se, enfim, um particularismo (nação) em meio ao universalismo (humanidade).

Sendo as culturas nacionais um unificador social, tornando classes sociais, gênero e raças como parte de uma mesma família, Hall questiona: mas seriam essas culturas realmente unificadoras e puras? Na sua visão, não. Isso porque na própria formação dos Estado-nação encontramos traços que refutam essa ideia, porque: 01) as nações são resultado de um processo social violento que suprime as diferenças em troca de uma imaginada homogeneidade cultural; 02) toda nação moderna tem em seu seio uma variedade de diferenças que abrange classe social, gênero e etnia. Sendo assim,
Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões internas, sendo "unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto - como nas fantasias do eu "inteiro" que fala a psicanálise lacaniana - as identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 61/62).
Capítulo 04 - Globalização 

A pergunta que norteia esse capítulo é a seguinte: o processo de globalização, visto como uma interconexão em escala global que rompe as antigas fronteiras nacionais, está descentralizando e/ou deslocando as identidades culturais nacionais? Buscando solucionar esse questionamento, Hall elenca três possíveis consequências que serão debatidas no decorrer do capítulo. São elas: 01) A ideia de que a globalização está desintegrando as culturas nacionais; 02) A ideia de que as identidades culturais nacionais estão sendo reforçadas em resistência à globalização; 03) A ideia de que as identidades culturais nacionais estão de fato em declínio, porém, novas identidades - de natureza híbrida - estão sendo formadas.

O debate levantado trás à tona uma antiga rivalidade: a do global versus local. As culturas nacionais, obviamente, se vinculam ao "local" ao buscar criar uma identidade homogênea. Já do lado "global" estão aquelas ideias normalmente vinculadas a identificações mais universais como "humanidade", por exemplo. O problematizado processo de globalização vem desafiando as culturas nacionais ao dar força ao "global", expondo-as a influências externas que dificilmente as mantém como intactas e puras. Logo,
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas - desalojadas - de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem 'flutuar livremente'" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 75)
O consumismo global, base da globalização, busca tornar as identidades nacionais fragmentadas alimentando um supermercado mundial que tem como consequência o desenvolvimento de uma homogeneização cultural, enfraquecendo a ideia de nação.

Capítulo 05 - O Global, o Local e o Retorno da Etnia

Procurando debater questões levantadas no capítulo anterior, Hall afirma que é muito simplista afirmar que a globalização vem homogeneizando as diferentes culturas nacionais. Ele acha essa afirmação simplista porque enxerga que o "local" não vem sendo apagado, mas sim vem estabelecendo um novo contato com o "global". Esse global, ao mesmo tempo que investe numa direção universalista, também busca mercantilizar a diferença e a alteridade. Logo, a fascinação do mercado (que agora busca criar nichos) pela diferença, reflete um novo interesse pelo local que então passa a formar novas identificações.

Outro argumento de Hall contra essa tese é que o processo de globalização é desigual geograficamente, logo, não existe uma "homogeneização". A homogeneidade pressupõe uma situação de igualdade. Dito isso, Hall afirma que a globalização é um processo ocidental sobre não ocidentais "exóticos". Isso fica quando claro quando "A proliferação das escolhas individuais de identidade é mais ampla no 'centro' do sistema global que nas suas periferias" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 79). Cidades como Paris e Londres apresentariam, exemplifica o autor, uma possibilidade maior de contato com culinárias exóticas do que Nova Delhi. Apesar disso, Hall observa que as regiões periféricas vem absolvendo as influências ocidentais, principalmente, com o desenvolvimento da globalização em fins do século XX. Mas ainda enxerga que num ritmo lento e desigual.

Da mesma forma que as regiões periféricas vem sendo afetadas pela globalização, o mesmo ocorre nas regiões centrais. O fenômeno da migração é um exemplo claro disso, trazido pelo autor. Agora um montante de pessoas da periferia, vão ao centro procurando fugir da pobreza que assola seu lugar de origem. O resultado disso é a pluralidade cultural que começa a se desenhar nos países centrais. Uma das reações a esse fato é a formação de grupos defensivos a cultura nacional como o "inglesismo", citado por Hall que carrega consigo um forte teor autoritário e racista. Além disso, também ocorre a formação de novas identidades como é o caso do grupo black, termo usado para abarcar um conjunto de grupos sociais ligados a populações asiáticas e afro-caribenhas que passaram a habitar a Inglaterra. São grupos diversificados em sua essência, mas que se unem por partilharem da mesma situação de vulnerabilidade, criando um "eixo comum de equivalência". O black no contexto britânico é um claro exemplo das novas identidades forjadas pela globalização. Diante disso, afirma Hall:
Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e "fechadas" de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de "Tradição", tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou 'puras'; e essas, consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de 'Tradução'" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 87).
Mas o que seria essa tradução? Este conceito se liga a identidades que perpassem as fronteiras nacionais. Ou seja, representam aqueles indivíduos que saíram de sua terra natal por algum motivo e, inseridos numa nova cultura mas sem abandonar por completo suas tradições, acabam negociando com o sistema cultural em que passaram a viver com dois objetivos de natureza dialética: não serem abocanhados por completo por essa nova cultura, mas aceitando ideias dessa cultura em que está inserido. Esse processo de negociação ocorre porque esse indivíduo não nutre mais esperanças em retornar à sua terra natal e precisa se habituar a nova sociedade em que está inserido, sem necessariamente abandonar seus antigos costumes.

Essas pessoas formam o que Hall alcunha de "culturas híbridas", perdendo a esperança de serem reprodutoras de uma cultura pura e homogênea. São, de fato, indivíduos traduzidos. A palavra "tradução" vem de "transferir"; "transportar fronteiras". Sendo assim, "Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidades distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia" (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 89).

Capítulo 06 - Fundamentalismo, Diáspora e Hibridismo

Por fim, Stuart Hall encerra seu livro trazendo reações contraditórias frente ao desenvolvimento dessa cultura híbrida. Se de um lado ela desenvolve formas de identificação simpáticas e/ou apropriadas a modernidade tardia (e o processo de globalização que o baseia), ela também trouxe consigo reações contrárias. Dessas reações, Hall cita duas: 01) a formação de Estados-nações na Europa Oriental, onde vários países tentam o status de "nação", buscando formar uma homogeneidade numa região marcada por uma variedade de culturas; 02) o fundamentalismo religioso, encarnado no Islamismo apesar de ter expressões fora do Oriente Médio, sendo a Revolução Iraniana um exemplo clássico desse tipo de reação. Como podemos observar, a relação conflituosa entre global versus local permanece vivo com reações contrárias a globalização e seu projeto. Ao mesmo tempo, novas identidades vem sendo criadas. Dito isso, encerramos esse resumo com as palavras do próprio Hall que assim conclui suas reflexões:
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego - a espécie de coisa que seria "dissolvida" pela força revolucionadora da modernidade. De acordo com essas "metanarrativas" da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao particular, à tradição e às raízes, aos mitos nacionais e às "comunidades imaginadas", seriam gradualmente substituídos por identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do "global" nem a persistência, do "local". Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente (HALL, Stuart. Rio de Janeiro: 2006, p. 97)




 











     
     

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