segunda-feira, 22 de julho de 2019

Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol


  • Sobre os autores: Ronaldo George Helal nasceu em 1956 na cidade do Rio de Janeiro. É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Fez mestrado e doutorado na New York University. Já seu pós-doutorado foi pela Universidade de Buenos Aires. Entre suas principais obras, podemos mencionar: a) O que é sociologia do esporte; b) Passes e Impasses: futebol e cultura de massa no Brasil; c) Futebol, Jornalismo e Ciências Sociais: interações. Alvaro Vicente Graça Truppel Pereira do Cabo é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez mestrado em Comunicação e doutorado em História. Entre suas produções acadêmicas, podemos citar: a) Copas do Mundo de futebol - 1930 (Uruguai) e 1950 (Brasil). O olhar vitorioso - uma análise do discurso da imprensa uruguaia; b) Imagens Nacionais. Representações do campeonato mundial de 1978 em veículos do Brasil e Argentina. 





Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol - Ronaldo Helal e Alvaro do Cabo - Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Copas do Mundo: o que elas nos ensinam sobre o Brasil - Nessa breve introdução, os autores começam destacando o alto teor simbólico que contém a equação "seleção brasileira-pátria". Essa equação é popularmente conhecida como pátria de chuteiras, termo cunhado pelo jornalista Nelson Rodrigues e que significa a soma da Seleção Brasileira de Futebol com a nação brasileira. Essa junção, apesar de hoje ter se enfraquecido, ainda contém forte teor simbólico que a cada quatro anos é acionado durante a disputa da Copa do Mundo. Essa ideia do "país do futebol" teria um sentido positivo e negativo. No primeiro caso seria positivo pois retrata que em nenhum lugar se joga ou se ama mais futebol que no Brasil; enquanto seu lado negativo estaria em enxergar uma falta de seriedade num país onde as leis não funcionam mas o futebol é adorado e visto como sinônimo de sucesso nacional.

Para os autores, "Tanto a 'pátria de chuteiras' como o 'país do futebol' não são realidades naturais, mas 'construções' exitosas com forte carga simbólica no país. E mais: são 'construções' que reforçam a equação 'futebol-pátria'" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 07). A pergunta principal que guia o livro é: por que essas ideias foram construídas e tiveram repercussão no país? Sabemos que a Seleção Brasileira não é a pátria, mas fingimos que ela representa. Principalmente em períodos de Copa do Mundo, onde enxergamos ser um duelo entre nações. O objetivo da obra é buscar entender como o futebol ajudou na construção de uma identidade nacional brasileira, sendo a cobertura da Seleção Brasileira em Copas do Mundo um recorte.

Das 19 edições da Copa do Mundo, o livro analisa 09 e 01 Copa das Confederações. O critério para a escolha foi a classificação da Seleção Brasileira no torneio e a dimensão simbólica que a edição exerceu na sociedade brasileira. Das 09 Copas do Mundo trazidas, o Brasil foi campeão em 05, em 02 foi vice-campeão e nas 02 restantes tem-se a ideia de que uma representou a criação do futebol brasileiro como diferenciado dos demais e a outra buscou questionar essa ideia. Com isso, "Se a cultura pode ser entendida como um 'conjunto de textos', conforme sentenciou o antropólogo Clifford Geertz ao estudar a briga de galos em Bali, o futebol, em tempos de Copa do Mundo, é um texto privilegiado para se entender o Brasil, suas questões e dilemas" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 09).

Da Copa de 1938 é retirada a ideia de quem com ela se fundou a ideia de futebol-arte brasileiro, tendo o artigo do sociólogo Gilberto Freyre no Diario de Pernambuco o ponto de partida dessa ideia. Da Copa de 1950 se buscou comparar os discursos dos jornais uruguaios e brasileiros sobre o torneio. Da Copa de 1958 a ideia de "complexo de vira-latas" é superada e da Copa de 1962 se analisa o reforço ufanista dessa superação. Da Copa de 1970 é estudado de como uma seleção pintada como representante mor do futebol-arte brasileiro, deteve uma forte preparação física e técnica para as condições da época. Da Copa de 1982 é lembrada a dura derrota para os italianos e como a partir dela foi questionada a ideia alicerçada de futebol-arte. Da Copa de 1994 temos uma reflexão sobre como a imprensa esportiva tratou a seleção menos talentosa do ponto de vista técnico. Já da Copa de 1998, apesar da derrota acachapante para os franceses, buscou-se manter a tradição do futebol brasileiro intacta. Da Copa de 2002 se analisa a última seleção com certos traços tidos como nacionais, apesar da já nova era globalizada que se encontrava o futebol. Por fim, os autores encerram analisando o conflito discursivo presente na cobertura da Copa das Confederações de 2013, realizadas no Brasil.

No fundo de todos os capítulos, foi mostrada uma visão diferenciada tanto do futebol quanto da Copa do Mundo que "Não se trata apenas de uma competição futebolística. As Copas funcionam como metalinguagem. Ao falarmos da seleção, de suas conquistas e derrotas, estamos falando também do Brasil e de seus dilemas" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 12).

01) Copas do Mundo e identidade nacional: um panorama teórico - Alvaro do Cabo e Ronaldo Helal - A base conceitual dos autores é buscar analisar as narrativas da imprensa nas Copas do Mundo, tendo como foco as produções jornalísticas do Brasil, Argentina e Uruguai. Logo,
"Partimos do pressuposto de que as investigações sobre o discurso da imprensa esportiva em períodos de Copas do Mundo nos ajudam a entender melhor a relação entre imprensa e formação de identidades nacionais por meio do esporte. As investigações acerca do processo de construção da memória nos torneios mundiais de futebol, bem como das múltiplas representações geradas pela imprensa esportiva, a partir de supostos 'estilos de jogo' de seleções mais tradicionais, podem nos ajudar nas reflexões propostas" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 13).
Segundo o historiador Jacques Le Goff, a memória na contemporaneidade está diretamente ligada com a identidade contendo um nítido objetivo de instrumentalização do poder. Existe então uma disputa entre diversos atores sociais, objetivando tornar-se instrumentalizadores da memória. Assim, "As lembranças regularmente acionadas e os fatos "esquecidos" fazem parte de um embate dialético travado para a construção de uma memória coletiva em que os meios de comunicação têm papel crucial" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 14).

Outro conceito trazido pelos autores para esclarecer melhor a ideia proposta é o de "enquadramento da memória", proposto pelo sociólogo Michael Pollack. Esse enquadramento mostra a íntima relação entre construção da memória e manutenção de identidades. Nesse jogo entre construção da memória e preservação identitária "o fio condutor acaba sendo pautado pelas necessidades de uma memória coletiva que reproduza os valores necessários ao fenômeno de identificação comum" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 18). O exemplo dado é a Seleção Brasileira de 1970 que, apesar do seu suporte técnico, é lembrada tanto no Brasil quanto no mundo (e aqui os autores trazem exemplos da cobertura jornalística da Argentina e do Uruguai sobre o selecionado brasileiro) como a exímia representante do futebol-arte e diferenciado existente na América Latina.

Essa ideia de imaginar um suposto estilo nacional de jogar futebol, baseado na localização geográfica e em características supostamente nacionais, não se viu apenas no Brasil. No caso argentino, Eduardo Archetti descreve o desenvolvimento do chamado futebol criollo que diferente da forma inglesa de jogar se apresenta como lúdico, técnico e individual. Essa construção teve papel fundamental dos meios de comunicação do país que nos anos de 1920, através da revista El Gráfico, conseguiu forjar essa criação que teve nos jornalistas Borocotó e Chantecler como principais propagadores. A imprensa uruguaia vai desenvolver essa ideia e criar uma espécie de uma escola rio-platense onde os uruguaios se diferenciavam dos vizinhos por sua suposta garra charrúa que tinha na mística camisa celeste sua representação simbólica. Os títulos olímpicos e as conquistas das Copas de 1930 e 1950 (principalmente) foram fundamentais na construção dessas ideias no cenário jornalístico. Por aqui essa construção de um futebol tipicamente nacional teve início com as ideias de Gilberto Freyre, reproduzidas por Mario Filho na obra "O Negro no Futebol Brasileiro".

Toda essa ideia de construção de identidades, ganha luz quando entra em cena conceitos como "invenção das tradições" (Eric Hobsbawm e Terence Ranger) e "comunidades imaginadas" (Benedict Anderson). Sendo as invenções das tradições "um conceito que se distingue do 'costume' nas sociedades 'tradicionais' e que se caracteriza pela repetição e invariabilidade de um passado real ou forjado" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 29), podemos afirmar que eventos como as Copas do Mundo são espaços frutíferos para a geração de tradições que fortalecem a nação enquanto uma comunidade imaginada. O desenvolvimento dos meios de comunicação ajudou nesse processo que tinha:
"Na primeira metade do século XX, a formação recente dos Estados nacionais latino-americanos e a necessidade de instrumentos de identificação nacional podem ter influenciado de maneira forte a construção de estereótipos relativos ao jogo que transcendiam o domínio esportivo e marcavam a realização de grandiosos eventos" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 31)
Por fim, os autores concluem que as Copas do Mundo são megaeventos ritualísticos que mobilizam recursos financeiros e políticos, gerando uma construção identitária apesar dos tempos de padronização cultural imposto pela Globalização. Tudo isso gera:
"A construção, pela mídia, de representações coletivas que se ocupam, sobretudo, com os propagados 'estilos de jogo' de cada nação cria mitos que transcendem as gerações e se afirmam como verdades filosóficas absolutas que necessitam, cada vez mais, ser questionadas e refletidas, pois, no máximo, são simulacros de um discurso específico de uma época distante, mas que, como catequese dominical, são doutrinas que se espalham ao longo das Copas e pela memória coletiva, indiscriminadamente, por diversos órgãos da imprensa" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 32/33)
02) 1938: o nascimento mítico do futebol-arte brasileiro - Camila Augusta Pereira e Hugo Lovisolo - 2.1) Origens e expansão do futebol; 2.2) A Copa de 1938; 2.3) O rádio; 2.4) Foot-ball mulato de 1938: o mítico estilo futebol-arte; 2.5) Formação e negócios do futebol no Brasil.

O futebol para os autores tem uma origem a ser em pensada de duas dimensões sociais, são elas: a nação e as classes sociais. Surge no Século XIX na desenvolvida e industrial Inglaterra e logo se dissemina para países subdesenvolvidos como o Brasil. Foi marcado no seu início como uma prática voltada para as elites, mas logo se expandiu para as classes mais baixas. Logo, dois processos acompanham a história do futebol: a internacionalização e a popularização.

E por falar em internacionalização e popularização, a Copa do Mundo de 1938 realizada na França foi o divisor de águas para o Brasil nesse quesito. Foi nessa edição que o futebol brasileiro ganhou contornos internacionais e a Seleção Brasileira começava sua inserção entre o povo brasileiro. A última Copa antes da Segunda Guerra Mundial, só contou com três países não europeus de quinze participantes. Além do Brasil, jogaram Cuba e Índias Orientais Holandesas (futura Indonésia). As confusões envolvendo paulistas e cariocas nas Copas de 1930 e 1934, foram apaziguadas em 1938, levando o Brasil o que tinha de melhor para o torneio. Por fim, a popularização da Seleção Brasileira já poderia ser vista no período pré-copa, pois
"Parte da despesa dos jogadores foi bancada pela 'Campanha do Selo', forma criada pela CBD para fazer a população contribuir com a viagem da seleção. O método copiado da Itália, que fez campanha similar em 1934. Com o slogan "Ajudar o scratch é dever de todo brasileiro", a entidade colocou selos à venda para o torcedor comprar ao preço de 500 réis. A arrecadação final da campanha foi de 50 contos de réis, valor que hoje equivaleria a aproximadamente 100 mil reais" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 41).
A Seleção Brasileira, então desacreditada, chegou ao surpreendente terceiro lugar da competição. Essa surpreendente campanha começou com uma vitória sobre a Polônia na prorrogação (6x5), empate contra a Tchecoslováquia (1x1) e vitória sobre a mesma Tchecoslováquia (2x1) no jogo de desempate. A eliminação só viria nas semifinais para a Itália (2x1) e num jogo envolvendo polêmica da arbitragem. O encerramento da campanha brasileira foi na disputa pelo terceiro lugar, vencendo os suecos (4x2). Os campeões da edição foram os italianos, então vivendo sob o auge do regime fascistas de Benito Mussolini. No Brasil, a repercussão da surpreendente campanha tupiniquim gerou forte emoção popular. Na volta para o país, os atletas foram recebidos como heróis e um deles ganhou projeção nacional: Leônidas da Silva, atacante do Flamengo. Leônidas, negro e oriundo do subúrbio carioca, encantou os europeus com seus dribles. Saiu da Copa de 1938 como artilheiro com 07 gols.

O grande difusor das jornadas da Seleção Brasileira pelos gramados franceses foi o rádio, então veículo de comunicação em constante expansão no país. Com isso, "Na Copa de 1938, a proeza foi a participação de uma emissora brasileira no evento que ocorria na Europa. O locutor Gagliano Neto era o único radialista da América do Sul atuando durante o Mundial diretamente dos estádios, por meio de emissoras de ondas curtas que chegavam no Brasil com algumas interferências e chiados" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 46). Foi nessa edição que a tradição de sair as ruas para acompanhar a Seleção Brasileira durante a Copa do Mundo começou, sendo comum alto-falantes em lugares públicos como no Largo do Paissandu (São Paulo) ou Galeria Cruzeiro (Rio de Janeiro), gerando aglomeração e envolvimento popular em torno da competição.

No Brasil dos anos de 1930 se buscava ainda a resposta de perguntas como: o que é o Brasil? O que significa ser brasileiro? Qual a nossa singularidade e identidade enquanto povo? Eventos como a Semana de Arte Moderna em 1922 e o nacionalismo no plano político engendrado pela figura de Getúlio Vargas (no poder desde 1930) começaram a responder essas e outras perguntas. No plano intelectual, o principal embate ficava entre as ideias professadas por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda das defendidas por Oliveira Vianna e Nina Rodrigues. Enquanto os primeiros traziam os pontos positivos do processo de mestiçagem, os últimos enxergam o processo de forma negativa. O bom desempenho brasileiro na Copa de 1938, gerando grande repercussão na mídia internacional, fez Gilberto Freyre escrever um artigo famoso intitulado "Foot-ball mulato", publicado em 17 de junho de 1938 pelo jornal Diario de Pernambuco.

Nesse artigo, Freyre funda a ideia de que o brasileiro desenvolveu um estilo de jogar futebol diferente do praticado pelos europeus. Essa forma singular seria uma espécie de dança mestiça e dionisíaca e entraria em oposição ao jeito apolíneo do europeu. Esse artigo "foi o primeiro texto de um intelectual em que se abordava uma identificação da forma e do estilo do brasileiro de jogar futebol com os traços culturais nacionais, principalmente aqueles herdados dos negros"  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 49). Para ele, foi através do futebol que o negro e o mulato teve a oportunidade de ascender socialmente servindo como um minimizador das disparidades sociais existentes. Essa ideia é vista na segunda edição do livro "Sobrados e Mucambos", datado de 1951. Essa ideia freyriana de futebol-arte, singular e típico do brasileiro acarretou consequências que os autores destacam no seguinte trecho:
"As construções discursivas do Brasil como 'país do futebol' e do estilo futebol-arte se dão repletas de significados, e essas ideias culturais foram fomentadas principalmente por cronistas esportivos de papel fundamental ao escrever sobre o futebol em jornais que circulavam nos espaços de sociabilidades, abordando questões identitárias e projetos para a nação brasileira. Tais cronistas identificavam que a paixão e o sofrimento do torcedor de futebol poderia ter reflexos em outras esferas da vida social e, assim, passaram a difundir a ideia de que o brasileiro agia da mesma forma fora do campo de jogo. Logo, ao ganhar autoconfiança com as vitórias no esporte, também ficaria mais confiante para enfrentar outras atividades relativas ao convívio social"  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 49).
O jornalismo teve papel fundamental nas ideias expostas acima. Nomes como Nelson Rodrigues - criador do termo pátria-de-chuteiras -, Mario Filho, Armando Nogueira etc., são ainda hoje exemplos de como a mídia soube através de imagens, oralidade e escrita aproximar o povo brasileiro da Seleção Brasileira. Passa o futebol a ser um espaço onde o brasileiro pode elevar sua auto-estima. É através do futebol que começa a construção de uma ideia de Brasil, sendo um forte aliado na construção do Estado-nação iniciado a partir de 1930. Em suma,
"O futebol aparece como atividade que canaliza ou gera emoções significativas, referências identitárias, solidariedade, pertencimento, consumismo, conflitos e violência sob o ponto de vista coletivo. No plano individual, é uma máquina de sonhos e decepções. Mas, sobretudo, o esporte é um valioso passatempo, uma atividade antitédio privilegiada tanto para o praticante quanto para o espectador" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 53).
Toda a ideia de futebol-arte criada por Freyre foi consolidada após os títulos mundiais do Brasil. Mas muita coisa mudou, como a valorização do treinamento e do planejamento na carreira do atleta. Pelé e Zico são exemplos de atletas que atingiram alto desempenho por se dedicarem ao treinamento e condicionamento físico. Os conhecimentos científicos vieram para questionar a naturalidade pensada no brasileiro jogando futebol. A própria estrutura dos clubes foi modificada, oferecendo aos atletas formação para além dos gramados, conciliando treinos com educação formal. Enfim do artigo pioneiro de Freyre até os dias atuais o futebol brasileiro em muito se modificou e cresceu como um negócio bastante lucrativo, gerando processos com a exportação de jogadores e forte investimento publicitário/midiático no esporte.

03) Vitória épica e tragédia nacional em 1950: um contraponto entre o Diário Carioca e veículos da imprensa uruguaia - Alvaro do Cabo e Ronaldo Helal - 3.1) Um olhar carioca da Copa de 1950 e da derrota; 3.2) Visões uruguaias do torneio e da vitória.

O objetivo do artigo de Alvaro do Cabo, sob orientação de Ronaldo Helal, foi analisar a cobertura dada pelo jornal Diário Carioca na Copa do Mundo de 1950 contrapondo seu discurso com os reproduzidos pelos jornais uruguaios (El País, El Dia, Accíon e La Plata). Sobre o Diário Carioca, dizem os autores:
"O Diário Carioca foi fundado em 1928 por José Eduardo Macedo de Soares, que havia sido presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) entre 1921 e 1922 e foi uma figura muito importante na esfera política entre as décadas de 1920 e 1950. Não era um jornal de grande circulação nem muito extenso, mas dedicava pelo menos uma página aos esportes, desde seu lançamento, e cobria as Copas do Mundo desde 1930" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 57).
Após a vitória sobre o México (4x0) e o empate contra a Suíça (2x2), a Seleção Brasileira entrou para a última partida da Primeira Fase da competição ameaçada de ficar de fora da Fase Final em caso de derrota. Os adversários eram os iugoslavos, então com duas vitórias convincentes sobre a Suíça (3x0) e o México (4x1). A cobertura do Diário Carioca destacou por cima a real ameaça de ficar de fora das finais da competição: "Perdendo os brasileiros, encerra-se a festa do Campeonato que passará então a arrastar-se ante olhos maguados de um publico que tem no futebol a sua diversão maior. É necessária a vitória do Brasil" (Diário Carioca, 1º jul. 1950, p. 7), (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 59). O técnico Flávio Costa também foi lembrado e sob críticas de proteger alguns jogadores sob pretexto pessoal. Apesar de ter a vantagem do empate, a Iusgoslávia perderia o jogo para o Brasil por 2x0 numa partida equilibrada. Mas empolgada e sob liderança de Zizinho, a Seleção Brasileira  seria vencedora de uma partida cunhada pelo jornal como "Batalha do Maracanã": "O triunfo de ontem apresentou-se como duplo sentido. Primeiro por permitir ao Brasil figurar como finalista do certame e segundo por ter reabilitado o futebol indígena ante ao público esportivo do país" (Diário Carioca, 2 jul. 1950, p. 9), (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 60).

As goleadas sobre Suécia (7x1), Espanha (6x1) e a trágica derrota para o Uruguai (2x1) na última partida da Fase Final, fez essa partida praticamente cair no esquecimento. Sobre a visão dos jornais brasileiros sobre a Seleção Uruguai, existiu um respeito ao time desde sua vitória esplendorosa sobre a Bolívia (8x0) na Primeira Fase da Copa do Mundo. Considerado como tricampeão por seus dois ouros olímpicos (1924 e 1928) e o título da primeira Copa do Mundo (1930), se pintou o Uruguai como o adversário mais forte a ser enfrentado pelo Brasil na Fase Final da competição: "Não há dúvida nenhuma que há muitos anos, talvez mesmo desde os saudosos tempos do tricampeonato, que o Uruguai não organizava um scratch como o de agora, vivo, leve, com um extraordinário senso de penetração e arremate, os nossos vizinhos orientais muito darão que fazer. E não será nenhuma surpresa se conseguirem levar novamente para Montevidéu a agora chamada Taça Jules Rimet (Diário Carioca, 4 jul. 1950, p. 8, grifos nossos),  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 61).

A partida entre Espanha x Uruguai, realizada no Estádio do Pacaembu e que terminou com um empate por 2x2, foi narrada na prévia pelo Diário Carioca  como "luta de gigantes". O destaque fica para a torcida paulista em prol dos vizinhos latino-americanos. Por outro lado, a vitória brasileiro por 7x1 frente os suecos na primeira partida da Fase Final gerou um otimismo com a Seleção Brasileira, se juntando as já animadas recepções ao evento que contava com forte mobilização da cidade do Rio de Janeiro (então capital do país) como podemos sentir nesse trecho dos autores:
"Enquanto isso, na capital federal, a Copa contagiava a cidade. O jornal anunciava festa veneziana, ou seja, desfiles de barco na Baía da Guanabara no sábado, dia 8, em homenagem às delegações presentes, organizada pela Capitania dos Portos e pela prefeitura. Além disso, filmes oficiais da primeira fase do torneio eram exibidos nas sessões Passatempo Capitólio Cinelândia, e os ingressos erma vendidos em vários pontos da cidade, como os teatros Municipal e Carlos Gomes e nas lojas Dragão e Exposição, e não mais apenas na sede da CBD, na Rua da Alfândega" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 64)
Continuando,
"Na véspera da partida com a Espanha, o clima na cidade parecia ser de comoção. As repartições públicas funcionavam durante meio experiente e o assunto em todos os lugares era a partida contra a "Fúria", como era, e ainda é, conhecida a seleção espanhola" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 61)
A cidade estava tão animada para o jogo contra os espanhóis que a partida recebeu espaço até em espaço do Diário Carioca não destinado a esportes como a crônica feita por Jacinto Thormes, intitulada "Fúria de cada um" que ilustrava o envolvimento dos cidadãos com a realização da Copa do Mundo no país. Apesar da empolgação pré-jogo e da goleada imposta aos espanhóis (6x1) as confusões envolvendo venda de ingresso foram os principais destaques do jornal. Enfim, chega-se na última partida da Fase Final frente os uruguaios na após o empate já citado contra a Espanha, venceu os suecos pelo placar de 3x2 com um gol salvador de Óscar Míguez aos 85 minutos de jogo. Para a partida final no Maracanã, onde o Brasil jogava nos braços da sua torcida e pelo empate, pede o Diário Carioca uma série de pedidos ufanistas sob o título de "Manifestação patriótica". Dentre esse pedido, pede-se a torcida brasileiro: espetáculo patriótico, capacidade empreendedora, meios de comunicação e unidade nacional. Sobre o último ponto,
"Unidade Nacional - No caso brasileiro, a força da unidade é o milagre permanente que o envolve, não obstante a vastidão do território e a tenuidade da população que ainda hoje mal se condensa nas marcas do Tratado de Tordesilhas, algumas décadas anterior à descoberta - O Brasil é um só país, uma só tradição, uma só crença. Esse fenômeno viu-se repetido no empenho nacional pela vitória, anteontem no Estádio monumental. Sem dúvidas, o nosso destino poderá suscitar oportunidades dramáticas de manifestarmos a unidade espiritual da Nação (Diário Carioca, 15 jul. 1950, grifos nossos), (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 67)
No pré-jogo, a Seleção Uruguaia é tratada com respeito nas páginas do jornal analisado sendo o favoritismo criado para o Brasil por conta de suas duas vitórias na Fase Final, contrabalanceado pela tradição, classe e sangue que detinham os vizinhos. Com a vitória de virada do Uruguai por 2x1, dando seu bicampeonato mundial, poucas palavras foram reproduzidas pelo Diário Carioca. A que merece maior destaque é página esportiva onde, através de uma frase, praticamente lança uma lápide sobre a equipe brasileira: "Estes são os verdadeiros campeões do mundo". Após 48 horas da derrota, conhecida popularmente como Maracanazo, escreveu o jornal: "O Brasil perdeu o campeonato mundial quando tudo parecia preparado para a vitória. Resiste apenas enquanto o tempo não passa uma impressão amarga de alguma coisa que faltou aos brasileiros e que sobrou aos uruguaios. Decisão, Bravura, Espírito de luta e principalmente a capacidade de vencer (Diário Carioca, 18 jul. 1950, p 8), (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 69).

Num breve resumo do que foi reproduzido pelos jornais uruguaios na cobertura da Copa do Mundo de 1950, um trecho resume bem o teor desta:
"Assim, em todos os veículos analisados, é possível encontrarmos a propagação de estereótipos sobre o futebol uruguaio que muitas vezes até transcendem o âmbito esportivo. A raça "charrúa" e o coração valente pulsando no peito dos jogadores uruguaios são representações que buscavam explicar o sucesso do até então vitorioso futebol celeste, e até definir seu estilo, a maneira de o "oriental" jogar bola" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 79)
Até hoje podemos ver a evocação da memória de 50 que visam reforçar uma representação criada sobre o conceito de futebol uruguaio, então vista como uma forma de jogar futebol marcada pela garra e vontade onde a qualidade técnica é posta em segundo plano. Uma síntese de narrativas similares encontradas tanto no Diário Carioca quanto nos jornais uruguaios pode ser feita destacando os seguintes aspectos: o respeito à tradição do futebol uruguaio, evocando suas conquistas olímpicas e o título em 1930 com os jornais uruguaios - em específico - destacando a grandeza da postura tanto dos jogadores brasileiros quanto da torcida mesmo diante do fracasso. Enfim, o capítulo trás importantes reflexões sobre o que representa a Copa do Mundo e seu espaço nos veículos de comunicação, criadores e assassinos de memória. Sua análise serve para pensarmos a relação existente entre imprensa, seleção nacional, nação e memória.

03) Do complexo de vira-latas à "nossa" Taça do Mundo - José Carlos Marques - 3.1) Algumas considerações sobre o futebol e o Brasil; 3.2) O movimento pendular do Brasil e as Copas do Mundo; 3.3) A criação - e a superação - do complexo de vira-latas; 3.4) A invenção das tradições.

"País do futebol" e "complexo de vira-latas" são as duas ideias centrais tratadas pelo autor nesse artigo que busca, ao compará-las, mostrar o universo simbólico que envolve o futebol brasileiro no reforço de invenções de tradições. A primeira pergunta que o autor faz é: por que o futebol é tão popular no Brasil? Para responder a esse questionamento, ele vai em Roberto DaMatta que no seu artigo intitulado "Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro", afirma que a popularidade do futebol no Brasil se deve a seu papel propulsor de identidade social tendo em vista o vago espaço deixado pelas instituições oficiais como a Constituição, o sistema universitário etc. Esse esporte tem a capacidade de expressar uma série de problemas nacionais, alternando percepções intelectuais com sentimentos vividos concretamente na ordem social.

Na discussão de um movimento pendular de exaltação pela vitória e lamuria pela derrota, o autor começa traçando o lado da derrota que tem na Copa do Mundo de 1950 sua representação ímpar. Foi nessa edição, realizada no Brasil e a primeira pós Segunda Guerra Mundial, que a ideia de "complexo de vira-latas" tem início e perdurará até o triunfo na Suécia. O contexto pré-copa era perfeito para o país: vivíamos um reflorescimento das instituições tendo em vista a derrubada do Estado Novo em 1945; forte perspectiva de crescimento econômico e junto a isso a lembrança da última edição da Copa do Mundo onde a Seleção Brasileira conquistou o honrado 3º lugar. Dessa edição pré-guerra, datada de 1938, até a realização da edição pós-guerra muita coisa mudou na relação Brasil e futebol. Esse esporte se popularizou de forma ascendente e o otimismo em torno da construção do Estádio do Maracanã é uma prova de como foi bem recebido a realização do torneio em solo nacional. Mas aí veio a derrota para os uruguaios na partida final e toda uma construção de inferioridade do brasileiro foi criada tendo essa derrota nos gramados como pano de fundo.

É buscando descrever o pessimismo e a inferioridade em que se colocava o brasileiro perante os vários aspectos da vida social, principalmente no futebol, que o jornalista Nelson Rodrigues funda o termo "complexo de vira-latas". Ainda segundo Nelson Rodrigues, "a superação desse trauma seria possível justamente por meio do futebol, uma vez que o brasileiro possuía virtudes próprias que o distinguiriam do futebol europeu e que poderiam fazer com que nos sentíssemos um vencedor 'nato e hereditário'" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 93). O forte ufanismo junto com o recurso de supervalorização das vitórias, eram os artifícios utilizados por Nelson Rodrigues na busca da superação desse complexo que vinha para impedir a expressão das potencialidades dos brasileiros.

Esse complexo começa a ser superado com a vitória do escrete canarinho na Copa do Mundo de 1958, realizada na Suécia, onde conquistamos o mundo pela primeira vez com uma campanha impecável. A vitória serviu para criar certas tradições envolta da Copa do Mundo e da Seleção Brasileira como a representação da superioridade nacional através das músicas (os famosos jingles) que em 1958 teve o famoso som "A Taça do Mundo é Nossa" de Wagner Mauregi, Lauro Muller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô. Sobre a letra,
"Com uma melodia simples e contagiante estruturada em apenas doas estrofes, a canção fora publicada depois da Copa e chamava a atenção para a superioridade brasileira ("Com o brasileiro não há quem possa) e para o ethos futebolístico da malemolência e da habilidade tupiniquins ilustrados nos versos 'O brasileiro lá no estrangeiro/Mostrou o futebol como é que é', tudo isso por meio da dança e do ritmo: 'Sambando com a bola no pé'"  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 96).
Era assim que o futebol começava a proporcionar a milhares de brasileiros a sensação da vitória, bastante importante simbolicamente para uma sociedade negligenciada em sua maioria pelos poderes públicos. E por isso a Copa de 1958 foi a principal no que tange as tradições inventadas em torno do futebol brasileiro, sendo várias delas reproduzidas até os dias atuais.

E é sobre essas tradições que José Carlos Marques foca na última parte do texto. Primeiro conceituando a ideia de "tradição inventada", então formulada pelo historiador Eric Hobsbawm, e depois ligando esse conceito a realidade brasileira de fins dos anos de 1950. A ideia de invenção das tradições em Hobsbawm é assim conceituada:
"teria a ver com os novos e velhos ambientes sociais radicalmente modificados com a Revolução Industrial, os quais passaram a exigir novos instrumentos que pudessem manter as identidades de grupos sociais há muito hierarquizados. As práticas simbólicas de manutenção ou de criação dessas identidades, por sua vez, buscavam incorporar valores por meio da apropriação de um passado histórico (que se manifestava pela repetição de ritos e rituais) ou pela incorporação de novas práticas e novos hábitos também de cunho ritualístico, agora ressignificados em função do novo espaço urbano e das novas formas de produção"  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 99/100).
Esse conceito é dividido por Hobsbawm dentro de três categorias sócio-culturais: 1) quando se busca inserir novos grupos; 2) quando se busca manter a hierarquias por meios de instituições; 3) quando se busca novas formas de socialização na vida urbana. O esporte, e em particular o futebol, vem a atender a essa última categoria no contexto da Inglaterra em fins do Século XIX. O futebol vem a desempenhar um importante papel na transição de uma sociedade rural para uma urbana, impregnando valores como o individualismo e o igualitarismo, então presentes entre os ideais liberais.

E qual a ligação desse conceito com a realidade brasileira em fins dos anos de 1950? Para o autor, tudo. Em 1958 estávamos percorrendo um processo de transição de uma sociedade rural para uma urbana, processo esse iniciado desde 1930 com as políticas industrializantes engendradas por Getúlio Vargas. A Copa de 1958 e o triunfo nela alcançado, "serviu para fundar uma identidade brasileira muito associada à noção de vitória e supremacia na vida e no futebol, incorporando-se nesses valores associados à ginga, à habilidade e à técnica do jogador brasileiro" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 103).

Várias tradições foram criadas a partir dessa edição como: o ato de levantar a taça de campeão, feita pelo zagueiro Bellini; a ideia de que a Seleção Brasileira nunca perdeu quando Pelé e Garrincha jogaram juntos e que o primeiro seria o "rei do futebol". Em suma, o que o artigo buscou mostrar foi não só a criação da ideia de "complexo de vira-latas" como também seu enterro a partir da Copa do Mundo de 1958. A constatação de que essas tradições segue uma lógica pendular, ora supervalorizando as vitórias, ora destacando as derrotas. E com isso,
"Nosso ethos e nossa brasilidade parecem ter raízes profundas nesses dois campeonatos mundiais de futebol, e seus elementos hão de merecer novos olhares e novas leituras, além das preliminares reflexões que quisemos estabelecer ao longo destas páginas"  (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 107)
04) Copa de 1962 - a consolidação da pátria de chuteiras - 4.1) A expectativa e o favoritismo; 4.2) A consolidação de um discurso; 4.3) O estilo nacional simbolizado por Garrincha.

Esse artigo de Márcio Guerra e Filipe Mostaro busca, através da análise dos principais jornais em circulação em 1962, mostrar o clima de otimismo que envolveu a Seleção Brasileira no pré-copa e como foi reforçado a ideia de "pátria de chuteiras" criada pelo jornalista Nelson Rodrigues.

O clima otimista que envolveu a Seleção Brasileira para a realização da Copa do Mundo de 1962 no Chile, representa a lua de mel que o país se encontrava com o futebol. Entre 1958 e 1962, Pelé e Garrincha viveram suas melhores fases no Santos e Botafogo, respectivamente. Com esses dois craques em alta, o favoritismo do Brasil era claro como água. Nesse contexto,
"O futebol se consolidou como um produto tipo exportação de nosso país, como o café, por exemplo. Tanto que, em 1960, o governo uniu os dois, nomeando Pelé como garoto-propaganda do Instituto Brasileiro do Café no exterior" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 111).
Os clubes também se aproveitaram dessa exportação e organizaram diversas excursões para o exterior, principalmente o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha. Tendo o entendimento da importância simbólica da Copa do Mundo e do futebol para a sociedade brasileira, como bem notou Gilberto Freyre ao ligar o esporte a nossa identidade cultural, o autor desse artigo produz esse artigo se baseando em produções acadêmicas como as de Roberto DaMatta, Ronaldo Helal, Hugo Lovisolo, Édison Gastaldo e Antonio Jorge Gonçalves Soares. Para esse conjunto de autores:
"Esse evento atua diretamente no espaço urbano, provocando representações dentro da sociedade, as quais são observadas na mídia durante os Mundiais da FIFA e incorporam um conjunto de ideias, significados e valores socialmente compartilhados. É durante a Copa do Mundo da FIFA que o nacionalismo em torno da seleção se torna mais exacerbado" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 113).
Esse nacionalismo tinha terreno frutífero no contexto pré-copa e os números em volta da Seleção Brasileira não deixavam a confiança ser atingida. De 32 jogos após a Copa de 1958, ganhamos 28, empatamos 02 e perdemos outras 02. Já o desempenho em 1962 era ainda mais estupendo: 11 vitórias em 11 jogos. A consequência disso foi a brusca queda de reportagens com estrangeiros sobre as reais condições do Brasil na disputa pelo título. Se em 1958, 33,3% das reportagens pré-copa foram buscando captar a percepção estrangeira sobre a Seleção Brasileiro esse número cai para 6,6% em 1962. Rompemos com o complexo que necessitava sempre da opinião dos outros sobre o escrete nacional.

O discurso reproduzido foi buscando fazer uma ponte do time vitorioso de 1958 com o que estava pronto para a disputa da Copa do Mundo de 1962. E não só a base do time era quase a mesma como o avião (DC-8 da Panair), o comandante (com seu cavanhaque), a imagem de Nossa Senhora Aparecida e o terno marrom de Paulo Machado de Carvalho (chefe da delegação) eram os mesmos que foram 04 anos antes viajou para a Suécia. Nos meios de comunicação, o rádio virou febre nacional e o seu alcance torna-o parecido com o celular nos dias atuais. O investimento feito pela mídia esportiva na cobertura radiofônica da competição foi enorme, formando uma equipe que contou com locutores, comentaristas e repórteres. Ainda sobre as inovações do rádio esportivo na cobertura da Copa de 62, "A Rádio Bandeira construiu um painel luminoso na Praça da Sé, em São Paulo, ladeado por alto-falantes. Esse painel reproduzia um campo de futebol, com lâmpada que cobriam toda a sua área, controladas segundo um sistema de interruptores" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 116). Boletins diários eram feitos diretamente do Chile e a nascente TV passava os jogos em videoteipes um dia após o jogo, sendo motivo de crítica de jornalistas como Nelson Rodrigues que questionava a oposição entre o delírio dos locutores via rádio e a exata veracidade da imagem. Em suma, víamos a melhor cobertura feita em torno da Seleção Brasileira numa Copa do Mundo até então.

Para a primeira partida contra o México, o nosso bom retrospecto contra eles dava ainda mais coro ao otimismo. E, sem grandes sustos apesar de um rendimento abaixo do esperado, a Seleção Brasileira venceu a Mexicana (2x0). Na segunda partida contra a Tchecoslováquia (0x0), Pelé se machuca sozinho e vira dúvida para o restante da Copa do Mundo. A partir daí se inicia uma crise na imprensa esportiva: como respaldar a cobertura da Seleção Brasileira sem sua principal estrela? O caminho encontrado foi ascender, a cada partida, o fogo da esperança em ter Pelé novamente em campo. Para a primeira partida sem Pelé, o adversário foi a Espanha. A vitória da canarinha por 2x1 sobre os espanhóis não só classificou o Brasil para a próxima fase como solidificou duas coisas: 1) a confiança da torcida e da imprensa esportiva em Amarildo, substituto de Pelé e então autor dos dois gols da Seleção Brasileira; 2) a malandragem, típica da construída identidade nacional brasileira, após o lance envolvendo o lateral-esquerdo Nilton Santos. Nilton faz pênalti num jogador espanhol (quando a partida estava 1x0 para os espanhóis), mas malandramente dar um passe para fora da área o que acabou ludibriando o árbitro que deu apenas falta no lance. Após o lance, a Seleção Brasileira acorda na partida e consegue a virada.

Nas oitavas-de-finais o adversário da vez era a Inglaterra. A vitória sobre os ingleses (3x1), com show de Mané Garrincha, fez o carioca das pernas tortas ser o representante símbolo do então falado melhor futebol do mundo. A figura de Garrincha também foi central na partida contra o Chile, vencida pelo Brasil (4x2). Após dois gols, Garrincha foi expulso e com isso ficaria de fora da final. Graças a uma forte luta nos bastidores, Garrincha consegue um absolvição na FIFA que o garantiu na final contra a Tchecoslováquia, vencida pela canarinha por 3x1. Com o título, "O sentimento de afirmação da identidade pelo futebol brasileiro vinha sendo desenhado desde a década de 1930, mas sua consolidação ocorreu com a conquista do bicampeonato num curto espaço de quatro anos" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 135).

A Copa de 1962 serviu para reforçar a ideia de brasilidade, atrelada a uma forma típica do brasileiro jogar futebol. Essa forma típica foi encarnada pelas atuações de Garrincha, então a liderança técnica de um time que não contou com Pelé em boa parte da competição. O significado social e simbólico desse bicampeonato, pode ser assim resumido:
"Essa conquista nos fez, pelo menos nos quatro anos entre as Copas, esquecer o complexo de vira-latas e deixou uma sensação de superioridade e um pensamento que, supostamente, nos acompanharia por todas as Copas seguintes: o Brasil nunca perde quando joga como Brasil. Essa atitude trouxe uma aura de que nosso futebol é realmente o melhor do mundo e de que somos o país do futebol, independentemente de qualquer outro fator. E isso será constantemente explorado pela imprensa nacional, principalmente durante as Copas do Mundo" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 137).
05) 1970 - pra frente, Brasil: preparo da caserna, coração de chumbo e mente brilhante - Antonio Jorge Gonçalves Soares e Marco Antonio Santoro Salvador - 5.1) Saldanha e a ditadura; 5.2) Esquema tático e os arranjos pós-Saldanha; 5.3) Comissão técnica, treinamento, altitude training; 5.4) Palavras finais de uma história ainda em aberto.

No inicio do artigo, os autores traçam uma breve autobiográfica que liga suas percepções sobre a Seleção de 70 e também o cenário político vivido pelo Brasil na época. Sobre a Seleção de 70, a lembrança fica daquela geração de ouro que encantou uma geração de brasileiros. Do cenário político brasileiro, ficam as obras de Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis. No contexto em que os autores entraram no Ensino Superior, os estudos críticos sobre os esportes baseados nas obras de Louis Althusser pintavam essas práticas como ópio do povo, tendo o futebol forte representação nessa crítica por sua popularidade e alcance. A Copa de 70 mostrou as fortes relações existentes entre futebol e estruturas de poder e dela tiramos que: a) o discurso ufanista da então Ditadura Militar foi reproduzido numa propaganda de um país que "vai pra frente"; b) a popularidade do então presidente Médici teve como aliada sua ligação com os jogadores daquela seleção; c) mostrou as potencialidades de um país emergido numa propaganda oficial de governo representada pela frase "Brasil: ame-o ou deixe-o". Diante dessas questões, questiona os autores: o que nos une quando o assunto é a vitoriosa Seleção Brasileira de 1970?

É impossível falar da Copa de 70 sem citar a figura de João Saldanha, jornalista ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) que treinou a Seleção Brasileira durante as eliminatórias. Sua ida para o comando técnico da Seleção Brasileira ainda é um assunto controverso, principalmente se entendermos o contexto da época. A explicação plausível encontrada foi aquela que detecta a aceitação do campo esportivo como esfera suprapolítico, onde suas finalidades sempre estiveram distante da chamada "política ordinária". Sobre a história envolvendo Saldanha no pré-copa e sua relação com o autoritarismo político da época, afirma os autores:
"O material analisado sobre a saída de Saldanha sugere que o treinador pode ter tido problemas de relacionamento com a comissão técnica durante e após as eliminatórias, perda de autoridade com os jogadores, resultados não satisfatórios nos jogos-treinos e baixa capacidade de diálogo com os dirigentes da CBD e a comissão técnica. Saldanha era um empecilho para a CBD realizar seu escambo político e os comuns inchaços das delegações para os eventos esportivos. Assim, não temos segurança para afirmar que sua saída se deu em função de uma imposição da ditadura militar ou dos problemas que teve na condução das relações com os membros da comissão técnica, com o corpo dirigente da CBD e com os jogadores" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 152)
 Dito isso, os autores entram na ideia central do artigo: a preparação técnica da Seleção Brasileira para a Copa de 70. O preparador físico Admildo Chirol seria o grande responsável pela introdução de recursos técnico-científicos na preparação dos jogadores. A avaliação médica dos jogadores, sob sua orientação, foi realizada por profissionais ligados a EsEFEx (instituição de renome no campo da Educação Física no país). Da EsEFEx também veio Claudio Coutinho que introduziu o método Aerobics (conhecido no Brasil como Método Cooper) na preparação da Seleção Brasileira. Além de Coutinho, Lamartine Pereira da Costa foi chamado para assessorar a comissão técnica no que tange a uma preparação específica sobre altitude que o Brasil enfrentaria na competição. Essas técnicas foram adotadas já com Saldanha, tendo total continuação com Zagallo, seu sucessor. Dessa Copa do Mundo fica os questionamentos e os espaços ainda em aberto sobre a interferência dos militares na Seleção Brasileira. Outro ponto a ser destacado pelos autores no artigo é a preparação técnica e científica dos jogadores brasileiros pré-Copa, contestando aquela visão romântica do time de 70. O fato é que o time combinou qualidade técnica individual (qualidade típica do Brasil) com métodos técnico-científicos que introduziram a Seleção Brasileira a uma nova era do futebol.

06) 1982: lágrimas de uma geração de ouro - Leda Costa - 6.1) Hermenêutica da derrota; 6.2) As lágrimas da compaixão: a tragédia de Sarriá.

Já no início do capítulo, a autora apresenta sua grande influência teórica: o antropólogo Roberto DaMatta que a partir de 1982 com a obra "Universo do Futebol", começava a mostrar esse esporte não como mero "ópio do povo", mas também como um importante instrumento para se analisar a sociedade brasileira. Nessa análise, DaMatta afirma que o futebol pode dramatizar problemas sociais de grande relevo e o primeiro exemplo disso é a Copa de 1950 onde perdemos a grande chance de nos apresentar ao mundo enquanto nação relevante por conta da derrota frente aos uruguaios no Maracanã. A pergunta "como isso pode acontecer?" vai seguir as trajetórias fracassadas da Seleção Brasileira em Copas do Mundo, inclusive, a de 1982 que é o objeto principal de análise do capítulo. Sobre os elos existentes entre a derrota de 50 citada por DaMatta e 82, afirma Leda:
Nas duas Copas, as tentativas de resposta dadas a essa pergunta encenam o embate entre as forças humanas e as forças do destino, o que, em parte, está associado ao fato de que ambas as derrotas se deram em contextos parecidos e viabilizam um tipo de representação cercada de uma atmosfera trágica. Na configuração dessa atmosfera, a representação das emoções é fundamental e se faz traduzir na configuração de cenários carregados de lágrimas, que permeiam as narrativas das recepções dessas derrotas (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 166)
Dito isso, a autora então busca destacar diferenças da representação das derrotas em 1950 e 1982. Por enquanto que a primeira colocou em xeque a própria identidade do Brasil enquanto nação, a segunda apenas foi um lamento nacional por uma geração de ouro que infelizmente não conseguiu obter resultados satisfatórios em campo. E para compreender melhor a recepção da derrota na sociedade brasileira, quando o assunto é Copa do Mundo, a autora busca fazer uma reflexão geral começando com o Maracanazo de 50 até chegar na Tragédia de Sarriá de 82.

Leda observa que a cada derrota nacional em Copas do Mundo, se constrói uma narrativa produzida pela mídia esportiva que acabam seguindo uma redundância no sentido pensado por Umberto Eco. Essa narrativa redundante, gira em torno de uma previsibilidade facilmente assimilável pelo público. As características dessa narrativa da derrota para são as seguintes:
parte-se do princípio de que a seleção perdeu para si mesma; há uma investigação dos motivos que estariam por trás do fracasso em campo; busca-se a revelação de problemas internos, como brigas, excesso de confiança ou alguma postura considerada imprópria (indisciplina etc.); há uma procura pelos culpados da derrota - os vilões -, que, geralmente, são técnicos, zagueiros ou goleiros; há um esquadrinhamento dos problemas externos ao campo, geralmente relativos à organização do futebol nacional (critica-se a CBF, a escolha do técnico, o calendário desgastante dos campeonatos, a escolha dos adversários da seleção nos amistosos preparatórios etc.); costuma-se atribuir sentido moral às possíveis falhas dos jogadores e à atuação da seleção em conjunto (a partir da década de 1990, por exemplo, em virtude do contexto "mercadorizado" do futebol, tornou-se comum acusar os jogadores de serem mercenários); costuma-se atribuir um sentido pedagógico à derrota ao tomá-la como uma lição que deve ser aprendida para que, desse modo, se evitem erros futuros (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 168)
As justificativas das derrotas não seguem uma lógica meramente objetiva de análise técnica e tática da partida. A superioridade do adversário é pouco ou não destacada pela imprensa esportiva que move uma vastidão de símbolos e representações para lidar com a derrota. Em suma, a explicação da derrota ultrapassam a esfera técnica/tática do jogo. Para entender esses discursos, Leda afirma: "Recorro ao termo 'hermenêutica da derrota' para fazer referência à busca pela interpretação dos sentidos ocultos - ou, melhor, imaginadamente ocultos - de uma derrota, busca empreendida, principalmente, pela imprensa esportiva" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 170).

A Copa de 1982, apresentou um ponto diferente das demais. A narrativa em volta das derrotas do Brasil em Copas do Mundo, sempre visava criar um culpado ou culpados. Em 1950, por exemplo, tivemos o goleiro Barbosa considerado como o principal vilão do maracanazo. O excesso de favoritismo também foi um ponto levado após a derrota para os uruguaios. O mesmo favoritismo foi levado após o fracasso na Copa de 2006, realizada na Alemanha. Enquanto que na Copa de 1998, uma avalanche de teorias tentaram justificar a derrota brasileira para a França, tornando a explicação daquele vice-campeonato quase uma espécie de romance policial a ser desvendado por detetives. E,
Em meio a esses exercícios de investigação e fomentação de polêmicas, configura-se um cenário de desolação frente à derrota, que tem a torcida como protagonista. De modo geral, os torcedores, com sua alegria ou tristeza, constantemente estampam os principais periódicos do país, durante a cobertura da participação da seleção em uma Copa. Tamanho destaque dado a essa figura e a seu desempenho representa uma importante estratégia discursiva que abre caminho para a representação das emoções. A ênfase no caráter dramático dos lances de uma partida, em cenas lacrimosas, em depoimentos eivados de emotividade são ingredientes vitais às coberturas da participação da seleção nacional em Copas do Mundo (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 173).
Porém, em meio a essas semelhanças, a derrota na Copa de 1982 produziu um efeito diferente em comparação com as edições anteriores: pela primeira vez não se procurou culpados. "As lágrimas de 1982 foram representadas como derivadas de um sentimento de compaixão em relação a uma geração tomada como singular na história do futebol nacional. O dia 5 de julho de 1982 entrou para a história como o dia em que heróis sofreram uma queda, considerada por alguns algo difícil de explicar e, por muitos, injusta" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 176).

A Seleção de 1982 foi aquela vista como aquela que trouxe de volta o futebol-arte, típico do Brasil. Em torno dessa ideia, foram construídos aparatos discursivos envolta daquele grupo. O próprio termo "Tragédia de Sarriá", parece ser elucidativo. Pois, "A tragédia grega era marcada pela crença de uma decisão deliberada, mas, sim mediada pela vontade dos deuses. Vontade cujas motivações fugiam ao conhecimento humano" (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 182). Diante da ação do divino, as ações dos indivíduos comuns estariam sofrendo menos cobranças e diante dessa limitação humana, os heróis trágicos tenderiam a despertar compaixão do público como foi o caso de 1982. A culpa não estava nos jogadores ou na comissão técnica, mas sim da "injustiça" ou dos "acontecimentos" que nem sempre estão alinhados a nossas vontades.

A calorosa recepção aos jogadores após o choro da eliminação, dão mostras de como aquele grupo de jogadores exerceram um efeito diferenciado em comparação com outros grupos. Poucas são as seleções ou os jogadores que resistem a uma derrota como aquela sobre a Itália, equipe considerada zebra até então, mas a Seleção de 1982 conseguiu se firmar no imaginário social e na opinião pública mostrando a força daqueles heróis derrotados não por suas fraquezas, mas por uma tragédia que teve o Estádio Sarriá como palco.

07) Copa de 1994: os múltiplos discursos autorizados sobre a seleção campeã menos amada da história - Fausto Amaro - 7.1) Como os jornalistas narraram a Copa? Notas sobre o discurso da imprensa; 7.2) A reflexão acadêmica: quais temas foram abordados pelos pesquisadores?; 7.3) Pontos finais.

A cobertura jornalística em volta da Seleção de 1994 girou em torno do baixo nível técnico da equipe, o que fez o Brasil sair das suas supostas origens. De acordo com o Fausto, que fez um extenso levantamento sobre a cobertura jornalística:
De modo geral, o discurso jornalístico assemelha-se muito quando trata da Copa de 1994. Há certa concordância tácita entre os jornalistas sobre essa Copa quando é lançada a questão da essência do futebol brasileiro. Fala-se em uma seleção pragmática, com poucos recursos técnicos, mas com um ataque muito talentoso, formado por Romário e Bebeto (HELAL, Ronaldo; CABO, Alvaro do. Rio de Janeiro: EdEURJ, 2014, p. 208).
Diante disso, o que se tem de produções acadêmicas sobre a Copa de 1994? A primeira pesquisa que Fausto cita é a realizada por Ronaldo Helal que tratou de comparar a idolatria em torno de dois jogadores: Zico e Romário. Partindo de uma análise biográfica desses dois jogadores, Helal conclui que Romário seria um herói "à brasileira" e sua hipótese é que existe uma tendência brasileira a valorizar o sucesso sem esforço. O protagonismo dado a Romário na conquista da Copa de 1994, era a vitória da malandragem, vista como positiva no futebol brasileiro.

Em outra pesquisa de Helal envolvendo 1994, viu-se o seguinte: diferente das edições de 1950 e 1970, onde a derrota e a vitória representaram projetos de nação, a vitória de 1994 não transcendeu o terreno esportivo. A partir dali tivemos uma sucessão de edições em que a Seleção Brasileira, perdendo ou ganhando, não representava mais um projeto de nação a ser confirmado dentro das quatro linhas. Ainda assim, após consolidada a conquista sobre os italianos, se viu uma alegria contagiante sobre o jornalismo esportivo brasileiro. Por fim, Fausto encerra o capítulo indicando possíveis novos caminhos a serem trilhados por pesquisadores quando o assunto é Copa de 1994. Entre esses estaria a investigação da campanha televisiva, substituindo a já faturada cobertura jornalística, e também a presença de pesquisadores de regiões diferentes da Sudeste, onde se concentram as pesquisas sobre a temática.

08) 1998: o colapso da arrogância nacional - Édison Gastaldo























A Invenção das Tradições


  • Sobre o autor: Eric John Ernest Hobsbawm foi um historiador britânico, nascido em Alexandrina (cidade situada no Egito, na época, dominado pelo Império Britânico), com grande reconhecimento intelectual no Século XX. Teve várias obras, sobre várias temáticas e que até hoje servem como referências nas Ciências Humanas. Entre as principais obras de Hobsbawm, podemos citar: a) A Era das Revoluções; b) A Era do Capital; c) A Era dos Impérios; d) A Era dos Extremos; e) História do Marxismo (12 volumes); f) Bandidos etc. Junto com autores como Edward Thompson, ajudou a desenvolver na Inglaterra uma análise baseada na História Social. Para além de um brilhante intelectual, Hobsbawm foi um militante político e por toda sua vida atuou no Partido Comunista da Grã-Bretanha. Faleceu em 2012 de pneumonia, causada originalmente pela leucemia. Já Terence Osborn Ranger nasceu em South Norwood, Londres. Seus estudos tem ligação com a história do Zimbábue, pós e pré colonização. Professor de Relações Raciais da Universidade de Oxford foi o primeiro teórico africanista a entrar na Academia Britânica. Entre suas principais obras, podemos citar: a) Soldados na Guerra de Libertação do Zimbábue; b) Consciência Camponesa e Guerra de Guerrilha no Zimbábue: um estudo comparativo. Faleceu em janeiro de 2015 na cidade de Oxford, Inglaterra, aos 85 anos.


A Invenção das Tradições - Eric J. Hobsbawm e Terence Ranger - Editora Paz e Terra


1. Introdução: A Invenção das Tradições - Eric Hobsbawm - O livro conta com um total de 06 artigos de diversos autores, tendo eles um único elo: o debate do ponto de vista histórico da invenção das tradições. Os dois organizadores, os historiadores Hobsbawm e Ranger, escreveram dois desses 06 artigos sendo os demais desenvolvidos por convidados como Hugh Trevor-Roper, Prys Morgan, Bernard Cohn e David Cannadine. A introdução foi escrita por Hobsbawm e nela o autor trás reflexões teóricas importantíssimas para o entendimento do objetivo da obra. Ele inicia essa rica introdução trazendo o conceito de Tradição Inventada. Tendo em vista o pressuposto de que as tradições são um conjunto de ideias criadas socialmente e não são produtos de um determinismo biológico dos povos, elas aparecem tanto formalmente institucionalizadas quanto indefinidas no tempo/espaço se desenvolvendo rapidamente e sem um controle. Sobre o primeiro tipo, Hobsbawm cita a cobertura radiofônica do natal da família real inglesa, instituído a partir de 1932. Já sobre o segundo tipo, ele cita o desenvolvimento do campeonato britânico de futebol que sem um começo determinado no tempo e no espaço foi ganhando espaço considerável no país. Dito e exemplificado essa ideia inicial sobre as tradições, Hobsbawm já delimita o objetivo da obra: analisar o surgimento e o estabelecimento das tradição e não debater sobre sua duração ou sobrevivência na vida social. Definindo conceitualmente a ideia de Tradição Inventada, afirma o autor: 
Por "tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9).
Exemplificando esse conceito, ele trás a escolha do estilo arquitetônico gótico na reconstrução da sede do Parlamento Britânico no Século XIX, assim como a repetição dessa escolha após a Segunda Guerra Mundial. O uso das tradições, afirma o autor, está até presente em movimentos revolucionários e progressistas que apesar de objetivarem a construção do novo não deixam de estabelecer um diálogo com o velho. A invenção de tradições está totalmente ligada a situações novas no seio social e seu principal objetivo é dentro dessas mudanças "estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social" (HOBSBAWM Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 10).

Definido o conceito de Tradição Inventada, tão cara a obra, Hobsbawm busca diferenciar o conceito de tradição de costume. Para ele a tradição mostra-se invariável as mudanças, baseando-se em repetições fixas de determinados símbolos e práticas. Já o costume é marcado pela flexibilidade, dando sempre espaço para que se legitime o novo a partir do velho. O exemplo citado pelo autor é o do Direito. O Direito comum praticado por juízes estaria no campo dos costumes, combinando passado com mudanças engendradas pelo presente. Enquanto que determinados símbolos em volta da prática do Direito como a toga e as perucas usadas pelos juízes são fortes exemplificações do que seria a tradição. Diferenciada do conceito de costume, agora Hobsbawm busca diferenciá-la do conceito de rotina. Essa última não tem um conteúdo ideológico e simbólico definido, sendo puramente do campo prático e pragmático. A rotina tem como função a facilitação da vida social e sua constante transmissão de costumes. Sendo assim, "tais redes de convenção e rotina não são "tradições inventadas", pois suas funções e, portanto, suas justificativas são técnicas, não ideológicas (em termos marxistas, dizem respeito à infra-estrutura, não à superestrutura). As redes são criadas para facilitar operações práticas imediatamente definíveis e podem ser prontamente modificadas ou abandonadas de acordo com as transformações das necessidades práticas" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 11). O exemplo do boné é utilizado para exemplificar a diferença entre tradição e rotina. O uso de capacetes no exército é comum e tem como objetivo a proteção do soldado, porém, esse capacete pode ser modificado a partir do instante que um novo formato criado garantisse maior proteção. Isso estaria no campo técnico da rotina. Já o uso de um determinado boné com um determinado casaco vermelho de caça move um conjunto de símbolos que fazem o exemplo cair no campo da tradição.

E quais as condições sócio-históricas que facilitam o aparecimento de novas tradições? Para o autor, é frutífero para a criação de novas tradições quando mudanças sociais profundas e rápidas destroem antigos padrões sociais então vigentes e dominantes. "Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 12). Esse processo ocorre tanto as sociedades ditas "tradicionais" quanto nas "modernas". E as velhas instituições dentro desse processo de mudanças? Elas se recriam e se adaptam as novas condições sem abandonar por completo suas ideias passadas. O exemplo da Igreja Católica é dado pelo autor.

Dentro dessa relação novo/velho, Hobsbawm afirma que seu objetivo com a obra é analisar o uso de elementos do passado na criação de novas tradições. Aqui ele cita outro exemplo que é das canções folclóricas antigas da Suíça que serão adaptadas a nova realidade por qual o país passava com a formação do seu Estado nacional em meados do século XIX. As canções seriam de impulso no desenvolvimento do nacionalismo suíço, então necessário na formação do Estado nacional. Sendo assim, não é objetivo da obra focar suas análises na criação de novos símbolos a partir da invenção dessas novas tradições. É fato que novos acessórios, símbolos e linguagens são criadas no desenvolvimento dessas novas tradições mas não fica o debate sendo palco de foco da obra. A busca é entender a relação com o passado, sendo uma empreitada a priori e não a posteriori.

Essas novas tradições, apesar do diálogo constante com o passado, apresentam como consequência a ruptura da continuidade. Isso porque a própria existência de movimentos restauradores já indicam que mudanças sociais estão ocorrendo no seio social, não sendo possível uma reconstituição completa do passado. Resta apenas a constituições de "tradições inventadas", aquelas que dialogam com o passado, mas não conseguem romper totalmente com o presente e suas mudanças. Por isso são tradições sempre inventadas e nunca reais. O rompimento brusco e radical da ideologia liberal do século XIX, então influenciada pelo iluminismo, com as tradições presentes na sociedade européia ocasionou vácuos e desvinculações sociais que foram propícias para a formação de novas tradições.

Sendo assim, Hobsbawm divide 03 tipos de "Tradições Inventadas". São elas: a) aquela que busca a coesão social de um grupo ou comunidade; b) aquela que busca a legitimação de instituições sociais que sustente determinadas relações de autoridade; c) aquelas que busca a introdução de novos padrões comportamentais. Para o autor, o primeiro tipo não só prevaleceu como é possível encontrar implicitamente a presença dos outros nele imbricados. Das "Tradições Inventadas" nas sociedades "tradicionais" e "modernas", existe uma diferença substancial. Nas primeiras as práticas são bastante específicas e coercitivas. Enquanto que nas segundas as tradições inventadas contém valores múltiplos como a ideia de "patriotismo", "lealdade", "dever" etc.

Já na parte final da introdução, Hobsbawm destaca as limitações das "Tradições Inventadas" que para ele ocupa um espaço pequeno deixado pelas antigas práticas e não conseguem ter a mesma generalidade das anteriores. Pois, "mesmo as tradições inventadas dos séculos XIX e XX ocupavam ou ocupam um espaço muito menor nas vidas particulares da maioria das pessoas e nas vidas autônomas de pequenos grupos sub-culturais do que as velhas tradições ocupam na vida das sociedades agrárias" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 20). Entretanto, essas tradições mantém forte influência sobre a chamada vida pública dos cidadãos sendo "a maioria das ocasiões em que as pessoas tomam consciência da cidadania como tal permanecem associadas a símbolos e práticas semi-rituais (por exemplo, as eleições), que em sua maior parte são historicamente originais e livremente inventadas: bandeiras, imagens, cerimônias e músicas" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 20).

Por fim, se questiona Hobsbawm: por que os historiadores devem se preocupar com a invenção das tradições? Para ele, basicamente por conta de duas razões. A primeira é que essas tradições podem ser indícios de problemas ou de natureza das transformações. Por exemplo, "pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana e operária que não conseguiram através de fontes mais convencionais" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 21). A segunda razão diz respeito ao exercício específico dos historiadores, pois é estudando o surgimento das tradições que se pode entender o diálogo que as pessoas mantém com o passado. Para aqueles que buscam estudar os meandros do fenômeno nacional, ou seja, construção de identidades nacionais e a própria ideia de nação torna-se primordial o estudo sobre as tradições. A ideia de naturalidade e antiguidade de um povo remonta justamente da ideia de "Tradição Inventada" conceituada nesta introdução, por exemplo. A obra presente, encerra o autor, está fincada no campo da História porém a temática em torno das tradições é considerada por Hobsbawm como interdisciplinar.

Capítulo 07 - A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 a 1914 - Eric Hobsbawm

Parte I: nessa primeira parte do capítulo, Hobsbawm trata da produção em massa de tradições entre os anos de 1870 a 1914. É o período de grandes transformações no continente, como a unificação da Alemanha e da Itália, assim como o advento da Terceira República Francesa (1870-1940). De imediato, Hobsbawm afirma existir dois tipos de manifestações das tradições:
Foi realizada oficialmente e não-oficialmente, sendo as invenções oficiais - que podem ser chamadas de "políticas" - surgidas acima de tudo em estados ou movimentos sociais e políticos organizados, ou criadas por eles; e as não-oficiais - que podem ser denominadas "sociais" - principalmente geradas por grupos sociais sem organização formal, ou por aqueles cujos objetivos não eram específica ou conscientemente políticos, como os clubes e grêmios, tivessem eles ou não também funções políticas. Esta distinção é mais uma questão de conveniência do que de princípio (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 271).
O período analisado foi palco de transformações, como já foi dito acima. Transformações que impunham grupos sociais, ambientes e contextos sociais novos e que exigiam novas ferramentas que assegurassem estabilidade, coesão social e identidade. As antigas formas de governo não correspondiam a nova conjuntura. Em suma, fazia-se necessário uma verdadeira reestruturação das relações sociais e com isso uma variedade de tradições surgiram. Novos feriados, cerimônias, heróis nacionais e símbolos oficiais apareceram por todo continente europeu. E uma instituição teve destaque: o Estado. Segundo o autor:
Não obstante, o Estado ligou as invenções de tradição formais e informais, oficiais ou não, políticas e sociais, pelo menos nos países onde houve necessidade disso. Visto de baixo, o Estado definiria cada vez mais um palco maior em que se representavam as atividades fundamentais determinantes das vidas dos súditos e cidadãos (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 272).
Começava a surgir a ideia de uma "economia nacional", contrária da lógica liberal pura. Existiu uma sistemática padronização das leis e administração pública, além do desenvolvimento da educação oficial e gerenciada pelo Estado. A política tornava-se cada vez mais nacional e a sociedade civil confundia-se com o Estado. Porém, esse mesmo Estado encontrava dificuldades no estabelecimento de uma ordem ou obediência de seus súditos. Isso por conta do seguinte processo: "Os problemas dos estados e dos governantes eram sem dúvida muito mais graves onde os súditos se haviam tornado cidadãos, ou seja, pessoas cujas atividades políticas eram institucionalmente reconhecidas como algo que devia ser considerado - mesmo que fosse apenas sob a forma de eleições (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 273).

Só quem conseguia superar desse desafio, eram Estados que mantinham estruturas sociais fortemente estratificadas e hierarquizadas com base numa justificativa que evocava fatores divinos inescrutáveis. A modernização para esses Estados representava a assinatura do seu enfraquecimento e, tirando o Japão, Hobsbawm afirma ser difícil encontrar um caso em que essa modernização foi feita mantendo as velhas estruturas sociais. Isso porque, "Possivelmente, tais tentativas de atualizar os laços sociais de uma ordem tradicional implicavam o rebaixamento da hierarquia social, um fortalecimento das ligações diretas entre o súdito e o governante central que, intencionalmente ou não, passou a representar cada vez mais um novo tipo de estado" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 274).

Além desses Estados arcaicos, outros que encontravam dificuldades diante da nova conjuntura eram os "Estados Novos", isso porque eles necessitam criar uma variedade de símbolos e laços que culminassem numa segura obediência e lealdade política. Porém, tirando o caso da Itália que realmente teve que criar do zero a ideia do que seria ser italiano, os demais Estados europeus já continham bandeiras, hinos, capitais e toda variedade de símbolos. No caso francês (Terceira República Francesa) e alemão (Império Alemão) , foco dessa primeira parte, os novos Estados foram construídos mas com base em símbolos passados.

As tradições criadas no períodos são resultado de um período em que a democracia e a política de massas ganhava impulso e o povo mais humilde começava a lutar por espaço, encarnado na busca pelo sufrágio universal e consequentemente ao voto. A política popular foi uma constante ameaça encontrada pelos Estados europeus do século XIX. Por esse motivo que, "Não obstante, mesmo onde as constituições não eram democráticas, a própria existência de um eleitorado de massas já evidenciava o problema de manter sua lealdade" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 275).

Repetindo o que foi dito acima com as palavras do Hobsbawm: "A ampliação do progresso da democracia eleitoral e a consequente aparição da política de massas, portanto, dominaram a invenção das tradições oficiais no período de 1870-1914. O que tornava isso particularmente urgente era a predominância tanto do modelo das instituições constitucionais liberais quanto da ideologia liberal" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 275-276). E por que essa menção das instituições e ideologia liberais como empecilhos? Eram empecilhos porque se baseavam numa ideia de sociedade que supervalorizava o indivíduo e relegava ou secundarizava a coletividade. Sobre a ideologia liberal, atesta o autor:
Deixou, assim, sistematicamente, de cultivar os vínculos sociais e de autoridade aceitos pelas sociedades do passado, tendo aliás pretendido e conseguido enfraquecê-los. Contanto que as massas permanecessem alheias à política, ou fossem preparadas para apoiar a burguesia liberal, não haveria grandes dificuldades políticas em consequência disso. Todavia, da década de 1870 em diante tornou-se cada vez mais evidente que as massas estavam começando a envolver-se na política, e não se poderia ter certeza de que apoiariam seus senhores (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 276).
As tradições então serviriam para estabilizar uma sociedade que se encontrava prestes a desenvolver convulsões. Elas surgiram num momento em que, tanto as elites intelectuais, quanto os governantes, perceberam que a dominação política também depende de fatores "irracionais" e não simplesmente do uso da violência (usada sempre que possível). Entre os pensadores dessa elite intelectual que começaram a identificar uma tendência irracional na psique humana, temos: William James, Sigmund Freud, Émile Durkheim e entre outros nomes citados por Hobsbawm. Enfraquecido o Utilitarismo liberal, "O estudo intelectual da política e da sociedade foi transformado pelo reconhecimento de que o que mantinha unida as coletividades humanas não eram os cálculos racionais de seus componentes" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 276-277). Havia a necessidade de desenvolver uma espécie de "religião cívica" que estabilizasse a sociedade. Essa foi a preocupação central da sociologia de Durkheim, por exemplo.

Feita essa explanação geral, Hobsbawm adentra nos exemplos históricos específicos e concretos. E o primeiro exemplo é a Terceira República Francesa, instituída no país em 1870 e que duraria até a invasão nazista ao país em 1940. Os principais inimigos da Terceira República era a direita e o proletariado urbano revolucionário, porém, se a primeira era eleitoralmente minoria; a segunda seria facilmente derrotada com o apoio das pequenas cidades e aldeias francesas. Nesse contexto, as tradições inventadas no período serviram para fortalecer a Terceira República por conta do seguinte:
Entretanto, a invenção da tradição desempenhou um papel fundamental na manutenção da República, pelo menos salvaguardando-a contra o socialismo e a direita. Pela anexação deliberada da tradição revolucionária, a Terceira República apaziguou os social-democratas (como a maioria dos socialistas) ou isolou-os (como os anarco-sindicalistas). Em consequência disso, era agora capaz de mobilizar até mesmo a maioria de seus adversários potenciais da esquerda para defender uma república e uma revolução do passado, constituindo uma frente única com as classes que reduziu a direita e uma permanente minoria no país (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 278).
Quem dominava a cena política da Terceira República eram os republicanos moderados e de centro. Apesar das tradições inventadas, eles permaneceram enfrentando a oposição dos republicanos jacobinos radicais e também do movimento socialista francês. Esse último cria suas próprias tradições como a comemoração anual da Comuna de Paris, a "Internacional" em vez da "Marselhesa" e se opondo a participação socialista a governos burgueses. Mas tais oposições foram insignificantes, mantendo os homens de centro o controle sobre a Terceira República sem maiores transtornos. Esses homens agiram e trataram de criar as seguintes novidades:

  1. Educação Cívica, imbuída de conteúdo revolucionário e republicano;
  2. Cerimônias Públicas, sendo o Dia da Bastilha o mais importante e criado em 1880;
  3. Monumentos Públicos, focando menos na construção de edifícios públicos e mais em estátuas que representassem sua devoção a democracia e a Revolução Francesa de 1789. A imagem de Marianne foi nacionalmente conhecida, sendo a principal marca da Terceira República.  
A principal característica das tradições inventadas pela Terceira República envolveram a Revolução Francesa de 1789, sem lembrar do antes e nem do depois. Isso porque a história francesa pré-1789, era marcada pela hegemonia da igreja e da monarquia; já a história pós-1789 foi marcada por forte instabilidade política e heterogeneidade de lideranças. Fazia-se mais eficiente utilizar de símbolos da Revolução Francesa em si do que reivindicar líderes jacobinos, girondinos ou napoleônicos. A ideia era justamente agradar a gregos e a troianos, não incitando divisões na arena política. A consequência disso foi a seguinte:
Eram poucos os símbolos: a tricolor (democratizada e universalizada na faixa do prefeito, presente em todo casamento civil ou outra cerimônia), o monograma da República (RF) e o lema (liberdade, igualdade, fraternidade), a "Marselhesa", e o símbolo da República e da própria liberdade, que parece ter tomado forma nos últimos anos do Segundo Império, Marianne (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 281). 
Agora Hobsbawm chega no caso do Segundo Império Alemão, erguido em 1871. Existiam dois desafios: 01) dar legitimidade e coesão a versão histórica dada por Bismark; 02) lidar com o eleitorado democrático que preferia outra solução para o país em vez da construção de um império, como os social-democratas. Mas Bismark, principal político do período, não se preocupou muito com as tradições a não ser a criação de uma nova bandeira (então inédita) de cores preta, branca e vermelha. Isso porque, "A receita de Bismark para a estabilidade política era ainda mais simples: conquistar o apoio da burguesia (predominantemente liberal), cumprindo seu programa até um ponto que não comprometesse a predominância da monarquia, exército e aristocracia prussiana, utilizar as divisões potenciais entre os vários tipos de oposição e evitar tanto quanto possível que a democracia política influenciasse as decisões do governo" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 282). Apesar da pouca atenção bismarkiana as tradições, elas existiram e para Hobsbawm tinham a seguinte natureza:
A invenção das tradições do Império Alemão associa-se, portanto, antes de mais nada, à era de Guilherme II. Seus objetivos eram primordialmente duplos: estabelecer a continuidade entre o Primeiro e o Segundo Império Alemão, ou, de modo mais geral, estabelecer o novo Império como realização das aspirações nacionais seculares do povo alemão; e enfatizar as experiências históricas específicas que ligavam a Prússia ao restante da Alemanha na construção do novo Império, em 1871. Ambas as metas, por sua vez, exigiam a convergência da história prussiana e alemã, coisa a que se dedicaram por algum tempo os historiadores imperiais patriotas (especialmente Treitsche) (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 282).
Diferente dos franceses, os alemães focaram seus esforços na construção de edifícios (além dos monumentos) para consolidar sua narrativa histórica. Hobsbawm cita uma variedade de obras feitas no período, vamos aqui reproduzir algumas como o monumento a Armínio, o chamado Querusco, localizado na floresta Teutoburga; e o monumento Niederwald, construído às margens do rio Reno e que representa uma comemoração a unificação alemã em 1871. Mas Hobsbawm continua, destacando o aumento quantitativo de obras no período como a reforma do Reichstag (parlamento alemão), porém, o destaque fica para a quantidade considerável de monumentos em homenagem a Guilherme I, Bismarck e a Batalha de Sedan.

Sobre a Batalha de Sedan, existiu no período uma significativa valorização a Guerra Franco-Prussiana, vencida pelas forças alemãs. "Assim, os anais de um ginásio registram nada menos que dez cerimônias entre agosto de 1895 e março de 1896 para comemorar o vigésimo quinto aniversário da guerra franco-prussiana, incluindo amplas comemorações das batalhas da guerra, celebrações do aniversário do imperador, a entrega oficial do retrato de um príncipe imperial, iluminação especial e discurso sobre a guerra de 1870-1, sobre o desenvolvimento da ideia imperial (Kaiseridee) durante a guerra, sobre o caráter da dinastia Hohenzollern, e daí por diante" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 285).

As experiências francesas e alemãs se igualam ao buscar um ato de fundação para o novo regime. No caso francês, a Revolução Francesa de 1789; já no caso alemão a Guerra Franco-prussiana. Entretanto, a Terceira República tratou de focar nos símbolos e significados específicos de 1789, sem fazer qualquer retrospectiva da história francesa. Já na Alemanha, indefinido antes de 1871, se viu a utilização de fontes e períodos históricos diversos em busca de justificativa para a narrativa que buscava aproximar alemães e prussianos. Mas o fato é que as tradições inventadas pelos alemães buscavam se firmar mais na negação do que na afirmação. A identidade era construída com base na negação daquilo que eles não eram. E o Segundo Império Alemão se sustentou com base no seguinte posicionamento:
Mesmo assim, numa nação que para sua autodefinição dependia tanto de seus inimigos, externos e internos, isso não de todo inesperado; mais ainda porque, a elite militar, por definição antidemocrática constituía um instrumento tão poderoso para elevar a classe média ao status de classe dominante. Ainda assim, a escolha dos social-democratas e, menos formalmente, dos judeus como inimigos internos tinha uma vantagem a mais, embora o nacionalismo do Império fosse incapaz de explorá-lo a fundo. Oferecia um apelo demagógico tanto contra o liberalismo capitalista quanto contra o socialismo proletário, apelo esse capaz de mobilizar as grandes massas da classe média baixa, artesãos e camponeses que se sentiam ameaçados por ambos, sob a bandeira da "da nação" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 287).
Outro caso analisado por Hobsbawm foi o dos EUA. O principal desafio dos EUA era lidar com a massa heterogênea de pessoas que não eram norte-americanas de nascimento, mas fruto da imigração. As tradições inventadas nos EUA foram no sentido de criar o norte-americano e algumas comemorações foram desenvolvidas com esse intuito como o 4 de julho, em lembrança dos fundadores do país e da Revolução Americana de 1776, e o Dia de Ação de Graças em alusão a uma tradição protestante. Além dessas comemorações, foi instituído nas escolas a adoração a bandeira nacional. O Americanismo tinha como oposto o Anti-americanismo, sendo os operários urbanos considerados membros do último grupo graças a sua origem, resultado da imigração. Por fim, Hobsbawm afirma que também existiram tradições inventadas em outros países da épocas. Entre os monarquistas, a receita passava pela utilização da coroa, visando aproximar o monarca do povo. A relação direta com o súbito era resultado do receio dos monarcas a sombra do que foi a Revolução Francesa, desenvolvendo a ideia de um "rei dos franceses" e não meramente um "rei da França", por exemplo.

Parte II: Nessa segunda parte do capítulo, Hobsbawm analisa as tradições inventadas por movimentos de massa extra-Estado, como as organizações proletárias. Essas organizações, independentes e alternativas ao Estado, são chamados pelo autor de "movimentos socialistas operários". O principal ritual criado por esses movimentos foi o 1º de Maio, festejado a partir de 1890. Sobre esse ritual:
O principal ritual internacional destes movimentos, o 1º de Maio (1890) desenvolveu-se espontaneamente dentro de um período surpreendentemente curto. No princípio, compunha-se de uma greve geral de um dia e uma manifestação reivindicando uma jornada de trabalho de oito horas, marcadas numa data já associada durante alguns anos com esta exigência nos Estados Unidos (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 291).
Apesar da recusa inicial da Internacional Operária e Socialista, as comemorações do 1º de Maio acabaram vingando. Foi um ritual institucionalizado não pelas lideranças do movimento, mas pela iniciativa dos seguidores. Entre os símbolos utilizados durante as festividades estavam as bandeiras vermelhas e as flores (como o cravo vermelho na Áustria, rosa vermelha na Alemanha e a papoula na França). Para além da luta política, "o 1º de Maio desempenhou papel capital do desenvolvimento da nova iconografia socialista da década de 1890 em que, apesar da esperada ênfase na luta, o toque de esperança, confiança e a aproximação de um futuro melhor - muitas vezes expressa pelas metáforas do crescimento das plantas - prevaleceram" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 293). E esse toque de esperança não poderia surgir num momento melhor, pois o fim do século XIX representou um período de crescimento e expansão do movimento socialista em diversos países europeus.
Assim, a data transformou-se rapidamente numa festividade e rito anual altamente carregado. A repetição anual foi adotada para atender à demanda das camadas. Com ela, o conteúdo político original do dia - a exigência de uma jornada de trabalho de oito horas - fatalmente foi posto de lado, dando lugar a qualquer tipo de slogans que atraíssem os movimentos operários nacionais num dado ano, ou, com mais frequência, a uma afirmação não específica da presença da classe operária e, em muitos países latinos, a comemoração dos "Mártires de Chicago". O único elemento original mantido foi o internacionalismo da manifestação, de preferência simultâneo: no caso extremo da Rússia de 1917, os revolucionários chegaram a mudar seu próprio calendário, para poder comemorar o Dia do Trabalho na mesma data que o resto do mundo. E, de fato, o desfile público dos trabalhadores como uma classe constituía o núcleo do ritual. (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 293).
O entusiasmo público representava a lealdade ao movimento, elemento primordial da consciência de classe dos operários. Os longos discursos (naquela época, quanto mais longos os discursos, melhor) se aliavam a abstenção do trabalho, afirmando o poder do proletariado. O evento tornou-se tão representativo que foi adotado até pelos históricos inimigos do movimento socialista, como os nazistas que em 1933 adotava o 1º de Maio como o "dia oficial nacional do trabalho". Assim sendo,
O 1º de Maio e os rituais trabalhistas semelhantes situam-se entre as tradições "políticas" e "sociais", pertencendo ao grupo das primeiras através de sua associação com as organizações de massas e partidos que podiam - e de fato visavam - tornar-se regimes e estados; e ao grupo das segundas porque manifestavam de forma autêntica a consciência que os trabalhadores tinham de serem uma classe à parte, visto que esta consciência era inseparável das organizações correspondentes (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 294).
Feita essa análise da existência, surgimento e desenvolvimento do 1º de Maio enquanto fruto do movimento operário socialista; Hobsbawm afirma que a classe trabalhadora acabou criando tradições inventadas independentes das chanceladas pelo movimento socialista. E é daí que ele distingue os líderes e militantes do movimento socialista dos simples adeptos e eleitores. Foram esses últimos que criaram tradições independentes dos movimentos organizados, inclusive tradições criticadas abertamente por essas organizações. O autor foca em duas: a primeira se relacionando a roupas como expressão de classe e a segunda aos esportes de massa.

Sobre o primeiro caso, Hobsbawm cita o personagem em quadrinhos Andy Capp (ou Zé do Boné) que é usado ironicamente para retratar a cultura operária masculina da Grã-Bretanha. O boné não é por acaso: acessório inicialmente presente entre as classes alta e média, passou a ser consumida pelas classes subalternas a partir da década de 1890. Seu consumo por parte dos operários urbanos tem forte ligação com o desenvolvimento dos esportes de massa, mas "De alguma forma não muito clara, os proletários adquiriram o hábito de usar o boné bem rápido, nas últimas décadas do século XIX e na primeira década do século XX, como parte da síndrome característica da 'cultura operária' que se delineava então" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 295-296). Já o segundo caso envolve os esportes de massa e sobre eles:
Entre meados da década de 1870, no mínimo, e meados ou fins da década de 1880, o futebol adquiriu todas as características institucionais e rituais com as quais estamos familiarizados: o profissionalismo, a Confederação, a Taça, que leva anualmente em peregrinação os fiéis à capital para fazerem manifestações proletárias triunfantes, o público nos estádios todos os sábados para a partida do costume, os "torcedores" e sua cultura, a rivalidade ritual, normalmente entre facções de uma cidade ou conurbação industrial (Manchester City e United, Notts County e Forest, Liverpool e Everton)  (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 296).
Em princípio criado como um esporte amador e vinculado a classe média, o futebol foi rapidamente popularizado e proletarizado, sendo a profissionalização o grande motor para essa mudança.  Mas qual a visão do movimento socialista organizado a esportes de massa como o futebol? Era de completo rechaço, como afirma Hobsbawm:
Por outro lado, sabe-se que, embora, como indicam as últimas palavras apócrifas de um militante operário, para muitos membros do proletariado a devoção a Jesus Cristo, Keir Hardie e ao Huddersfield United era indivisível, o movimento organizado mostrou uma falta geral de interesse por isso, assim como por vários outros aspectos não políticos da consciência de classe operária (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 298).
Parte III: Nesta terceira parte do capítulo, Hobsbawm debate as distinções entre a classe média. Apesar da dificuldade dessa distinção, vide sua heterogeneidade, se fazia necessária numa época em que várias profissões reivindicavam o status de classe média e um número cada vez maior de indivíduos aspiravam a esse patamar por conta do processo de industrialização em curso. Porém, não era uma tarefa fácil e Hobsbawm explica as razões no seguinte trecho:
O critério para pertencer a estas classes não podia ser tão simples quanto o nascimento, a propriedade, o trabalho braçal ou o recebimento de salários, e embora sem dúvida fosse uma condição necessária ter um mínimo socialmente reconhecido de bens imóveis e renda, isso ainda não era o bastante. Além do mais, normalmente tal classe incluía pessoas (ou antes, famílias) com uma ampla esfera de fortuna e influência, cada camada inclinada a desprezar seus inferiores. A fluidez das fronteiras tornava difícil distinguir com clareza os critérios de distinção social (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 299).
Essa distinção, encarava dois problemas: 01) como definir e separar a elite autêntica de uma classe média alta se os antigos critérios de parentesco e descendência encontravam-se em desuso?; 02) como estabelecer uma identidade para a grande massa que não pertenciam a elite, nem às massas (nem mesmo as chamadas "classes médias baixas", vistos ao lado dos trabalhadores braçais)?. Além desses dois problemas, Hobsbawm identifica um terceiro: o surgimento da emancipada mulher oriunda da classe média que entre 1897 e 1907 aumentou em 170% sua presença nos liceus franceses.

Para as classes médias altas o ideal seria uma junção com a elite autêntica, ou aristocracia, mas isso não foi possível sequer na Grã-Bretanha onde era comum que uma família de banqueiros acabasse se unindo à realeza por intermédio de casamentos. Apesar disso, "A rápida aquisição de fortunas fabulosas poderia também capacitar os plutocratas de primeira geração a pagarem para entrar num contexto aristocrático que nos países burgueses baseava-se não só no título e na descendência como também em dinheiro suficiente para levar-se um estilo de vida adequadamente dissoluto. Na Grã-Bretanha eduardiana, os plutocratas aproveitavam avidamente essas oportunidades. Contudo, a assimilação individual só se aplicava a uma reduzida minoria" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 300).

Por conta do fracasso que era a simples compra de títulos nobres, transformou-se a educação num critério fundamental para distinguir as classes sociais. A educação escolar, acrescida pelos esportes amadores nela presentes, estabelecia uma comparação entre indivíduos e famílias para além das relações pessoais iniciais. Era também uma forma de estabelecer padrões de comportamento e valores em comum através de uma rede interligada de relações. Ainda sobre o papel da educação:
Além disso, permitia, dentro de certos limites, a possibilidade de expansão para uma elite da classe média alta, socializada de alguma maneira devidamente aceitável. Aliás, a educação no século XIX tornou-se o mais conveniente e universal critério para determinar a estratificação social, embora não se possa definir com precisão quando isto aconteceu. A simples educação primária fatalmente classificava uma pessoa como membro das classes inferiores. O critério mínimo para que alguém pudesse ter status de classe média reconhecido era educação secundária a partir de, aproximadamente, 14 a 16 anos. A educação superior, exceto por certas formas de instrução estritamente vocacional, era sem dúvida um passaporte para a alta classe média e outras elites (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 301).
Nessa conjuntura, as universidades se expandiram ao ponto da Alemanha enfrentar uma superprodução de graduados e a educação secundária era um critério amplo demais para quem desejava se diferenciar das classes mais baixas, era preciso ir além dela para galgar posições sociais mais elevadas e prestigiadas.

Para se formar uma elite nacional ampla, fazia-se necessária formar redes de comunicação e de interação. E para saciar essa necessidade, foram erguidas as chamadas "redes de alunos antigos", onde "Nos Estados Unidos e na Alemanha o papel destas redes entre gerações era desempenhado conscientemente, talvez porque em ambos os países ficasse muito nítido sua função primeira de fornecer homens para o serviço público" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 304).

São das universidades e dessas redes de interação que começaram o desenvolvimento dos esportes, vistos como disputas contra aqueles considerados à altura em termos sociais. Sobre o advento dos esportes como prática social criada pelas classes médias e altas, Hobsbawm destaca três aspectos:

  1. O fim do século XIX foi palco da criação de novos esportes e difusão de antigos, institucionalizando a maioria deles a nível nacional e internacional; 
  2. A institucionalização proporcionou uma expansão dos esportes, antes praticado exclusivamente pela aristocracia e burgueses, e agora também consumido pelas classes médias; 
  3. A institucionalização dos esportes proporcionou não só a reunião de indivíduos com o status social semelhante como também foi capaz de atribuir um protagonismo às mulheres burguesas. 
Um exemplo do que foi traçado acima foi o tênis, esporte novo e inventando na Grã-Bretanha em 1873, sendo institucionalizado no país em 1877 através do torneio nacional (Wimbledon) e em 1900 a nível internacional com a Taça Davis. O tênis era praticado por ambos os sexos, passando as mulheres a integrar Wimbledon sete anos após a introdução do masculino, no caso britânico. E, como destaca o autor: "Quase pela primeira vez, portanto, o esporte proporcionou às mulheres respeitáveis das classes altas e médias um papel público reconhecido de seres humanos individuais, à parte de sua função como esposas, filhas, mães, companheiras ou outros apêndices dos homens dentro e fora da família" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308).

Assim sendo, os esportes cumpriam um papel duplo no que tange a invenção da tradição: ele era tanto político quanto social. No âmbito político, ele "representava uma tentativa consciente, embora nem sempre oficial, de formar uma elite dominante baseada no modelo britânico que suplementasse, competisse com os modelos continentais aristocrático-militares mais velhos, ou procurasse suplantá-los" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308); já do ponto de vista social, "representava uma tentativa mais espontânea de traçar linhas de classe que isolassem as massas, principalmente pela ênfase sistemática no amadorismo como critério do esporte de classe média e alta" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308). Em suma, sua função era estabelecer um padrão específico e burguês estilo de vida e de lazer, bissexual e urbano, sendo um critério flexível e ampliável de admissão num grupo social específico. 

Segundo Hobsbawm, "Tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a invenção de tradições sociais e políticas de uma forma: constituindo um meio de identificação nacional e comunidade artificial" (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 308). Se encaminhando para o final da terceira parte, Hobsbawm aponta dois fenômenos desenvolvidos pelos esportes. Um de nível nacional e outro internacional. Sobre o primeiro: 
O primeiro era a demonstração concreta dos laços que uniam todos os habitantes do Estado nacional, independente de diferenças locais e regionais, como na cultura futebolística puramente inglesa ou, mais literalmente, em instituições desportivas como o Tour de France dos ciclistas (1903), seguido do Giro d'Itália (1909) (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 309).
Já sobre o segundo fenômeno:
O segundo fenômeno consistiu nos campeonatos esportivos internacionais que logo complementaram os nacionais, e alcançaram sua expressão típica quando da restauração das Olimpíadas em 1896 (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 309-310).
Esses campeonatos internacionais serviam para reforçar a unidade das nações, da mesma forma que os campeonatos inter-regionais. O fato é que durante muito tempo o esporte internacional, incluindo a FIFA, ficou nas mãos do amadorismo e da classe média. Em tom final, Hobsbawm assim atesta sobre a fórmula classe média, nacionalismo e esportes em sua dimensão internacional:
Conforme observamos, as classes médias no sentido lato consideravam a identificação grupal subjetiva algo extremamente difícil, uma vez que não eram, de fato, uma minoria suficientemente pequena para estabelecer a espécie de associação prática de um clube de dimensões nacionais que reunisse, por exemplo, a maioria daqueles que houvessem passado por Oxford e Cambridge, não suficientemente unidos por um destino e uma solidariedade potencial comum, como os operários. As classes médias preferiram tomar a atitude negativa de se segregarem de seus inferiores através de mecanismos como a insistência rígida no amadorismo no esporte, assim como através do estilo de vida e valores de "respeitabilidade", sem contar a segregação residencial. Porém, pode-se dizer que foi positiva a atitude de estabelecer um sentido de união através de símbolos externos, entre os quais os do nacionalismo (patriotismo, imperialismo) eram talvez os mais importantes. Foi, segundo penso, como a classe essencialmente patriótica que a nova ou aspirante classe média achou mais fácil reconhecer-se coletivamente (HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 310-311).
Para a classe média, o nacionalismo tornou um garantidor da coesão social, transformando-se numa espécie de igreja nacional ou religião secular que viria a oferecer para si uma ideia de coletividade.

Parte IV: