quarta-feira, 18 de março de 2020

Florestan Fernandes: vida e obra



  • Sobre o autor: Laurez Cerqueira é um baiano nascido em uma família humilde de camponeses. Até os 18 anos trabalhou na lavoura e após terminar o ginásio, rumou para a cidade de São Paulo onde trabalhou na construção civil. Depois, transferiu-se para Brasília onde exerceu diversas atividades como: faxineiro, datilógrafo, auxiliar administrativo etc. Depois de anos militando politicamente fora do país, retorna a Brasília para cursar Letras. Foi assessor parlamentar da primeira bancada do PT na Câmara dos Deputados e chegou a trabalhar com Florestan Fernandes. Com a chegada do PT ao poder, Cerqueira assumiu o cargo de assessor do líder do governo, Aloísio Mercadante. Hoje escreve regularmente artigos de opinião. 

Florestan Fernandes: vida e obra - Laurez Cerqueira - Editora Expressão Popular


Capítulo 01 - De "Vicente" a Florestan

Segundo o próprio Florestan, ele não seria o sociólogo que foi sem as experiências que passou durante sua vida. Por conta das dificuldades financeiras, ele acabou tornando-se um "aprendiz de sociólogo", sofrendo na pele as mazelas sociais de um país subdesenvolvido. Nascido em julho de 1920, Florestan foi oriundo de uma família pobre. Sua mãe, imigrante portuguesa, chegou ao Brasil para trabalhar nas lavouras no interior paulista. O pai de Florestan morreu cedo, vítima de uma gripe espanhola, mas foi um colono português que casou com a ainda muito jovem Maria Fernandes. Com filho e sem marido, Maria decidiu sair do interior e arriscar a vida na cidade grande. Em São Paulo, passou a prestar serviços domésticos para a família Bresser, da alta classe média paulista. 

Após alguns desentendimentos, Maria decide sair da casa dos Bresser. Mesmo assim, Florestan recebia visitas da madrinha (a ex-patroa de sua mãe) e chegou a morar um período na casa dessa família, mas logo sairia de lá após a família Bresser propor a Maria que entregasse Florestan. Sua saída da casa dos Bresser marcou uma nova etapa na vida de Florestan, o trabalho infantil. Ele engraxou sapatos, encerou pisos, trabalhou em uma fábrica de colchões, entregou compras em domicílio etc. Em suma, trabalhou em diversas atividades, privando-se do direito de ser criança. 

Seu trabalho na infância, chegando a adolescência e idade adulta, fez Florestan alargar sua socialização e entender in loco a dura realidade vivida pelo povo brasileiro. Essas experiências repercutiu na sua produção teórica. Mesmo longe das salas de aula, Florestan alimentava o hábito pela leitura. E foi exercendo a profissão de garçom que, após incentivo de um cliente que o indicou para um curso supletivo (chamado de madureza), servindo de preparatório para à faculdade.

Florestan começou no madureza como garçom, mas terminaria o curso como funcionário de uma empresa de produtos químicos, a Novoterápica. Após a conclusão do curso, foi promovido para o cargo de chefe de sessão de vendas de artigos dentários, então o cargo mais alto que poderia alcançar na empresa. O fato interessante é que ele escolheu o curso de Ciências Sociais por falta de opção, pois seu desejo era cursar Química. Porém, por ser um curso realizado em período integral, Florestan não teria condições financeiras de se manter. Em sua escolha por Ciências Sociais, a fala de um professor que o chamou de "reformador social" por seu jeito quieto, compenetrado e isolado; pesou e ele acabou realizando sua inscrição para o curso. 

Prestando vestibular em 1941, na época, o processo seletivo incluía um sorteio de assuntos com o candidato tendo que responder perguntas dos professores. O texto sorteado para Florestan foi um de Durkheim, chamado "Da Divisão do Trabalho Social". As perguntas eram feitas em francês (na banca de dois professores, um deles era Roger Bastide), o que fez Florestan solicitar que fosse em português, pois não entendia outra língua. A solicitação foi aceita e Florestan foi aprovado de uma seleção com 29 candidatos e apenas 06 exitosos. Começava ali a carreira de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. 

Capítulo 02 - Construir a sociologia científica e interpretar o Brasil

Por sua origem de classe, Florestan sofreu dificuldades e discriminações na USP. Com trajes simples, precisava conciliar os estudos com o trabalho em que andava pela cidade vendendo produtos. Sua principal amizade no período foi com Antonio Candido que conheceu Florestan em 1944 onde ele era assistente da cadeira de Sociologia e Florestan aluno. No mesmo ano, Florestan se formou em Ciências Sociais e tornou-se segundo assistente da cadeira de Sociologia. Com o tempo, a hierarquia entre os assistentes foi retirada e eles passaram a ter que atuar de forma integral, aprofundando os estudos com os alunos. 

Candido lembra da rigidez de Florestan nessa época, sempre visando debater com profundidade os textos. Pontual, lia mais de 10 horas por dia e conseguia absolver com facilidade o conteúdo. No final do expediente, enquanto Candido ia para casa, Florestan rumava para a Biblioteca Municipal onde estudava até às 23 horas. Nessa época em que era assistente, Florestan iniciou a sua amizade com Fernando Henrique Cardoso, quem ele convenceu a seguir carreira acadêmica em Sociologia. 

A partir daí, a ascensão de Florestan no meio acadêmico foi meteórica. Em 1953 passou para a livre-docência, substituindo o professor Roger Bastide. Logo nomeou FHC como seu assistente. Preocupado com seu pupilo, Florestan criticava as atuações de FHC no movimento estudantil, pedindo foco nas atividades acadêmicas. Naquela época, o futuro marxista era bastante influenciado pela sociologia funcionalista de Durkheim. 

Retornando ao assunto da militância política, Florestan se mostrou afastado durante basicamente toda sua juventude. Seu foco maior era em seu crescimento enquanto acadêmico. Apesar disso, manteve relações pontuais com o universo político da sua época. Crítico do sectarismo do PCB, aproximou-se de Hermínio Sacchetta, militante comunista trotskista, próximo da IV Internacional. Durante o Estado Novo, passou a militar no Partido Socialista Revolucionário (PSR). Mas diante de sua fraca participação, se afastou das atividades partidárias sob anuência do Sacchetta, então principal liderança do partido. Sua militância só será vista no final de sua carreira. 

Sobre o "primeiro Florestan", influenciado pelo funcionalismo durkheiminiano, ele tornou-se mestre em 1947 com a obra A organização social dos Tupinambás e doutor em 1951 com a tese A função social da guerra na sociedade Tupinambá. Como vimos acima, se tornaria professor da USP em 1953. Sobre seu mestrado e doutorado, as produções receberam elogios do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sobre a importância de tais obras, diz Laurez: 
Florestan conseguiu realizar essa pesquisa a partir do relato dos cronistas e viajantes reconstituindo a organização e o funcionamento da sociedade Tupinambá, extinta no século 17. Até então, um trabalho dessa natureza era considerado impossível de ser feito, segundo o consenso geral da Antropologia. Alguns antropólogos conseguiram estudar certos aspectos dos Tupinambá, como a religião, a cultura material, mas a organização social sequer era cogitada. Com métodos científicos disponíveis e recursos desenvolvidos por ele, resgatou a organização daquela sociedade a partir do mesmo material utilizado pelos paleontólogos, biólogos e antropólogos que estudavam aspectos particulares dela (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 48).
Já o "segundo Florestan" surge a partir dos anos de 1950, após os estudos raciais desenvolvidos sob parceria com Roger Bastide. A pesquisa, patrocinada pela Unesco, causou impacto na USP, pois os pesquisadores buscaram trazer os próprios negros para dentro da universidade. Com Bastide, escreveu Brancos e negros em São Paulo, em 1953. E em 1964, após o golpe militar, escreveu A integração do negro na sociedade de classes. Sobre essa obra, diz Laurez:
Surgido dessa fase de intenso labor intelectual de Florestan e do debate que ocorreu na época, principalmente sobre a obra de Gilberto Freyre e outros autores da mesma linhagem teórica, este livro colocou em evidência a violência, o preconceito e a segregação contra os negros como elementos fundamentais na formação da sociedade brasileira. Florestan subverteu a visão contemplativa sobre a escravidão que havia a partir da "casa grande" em relação à "senzala", uma visão que colocava em relevo a miscigenação como fator indutor da "democracia racial". Ele contestou essa tese, colocou a questão racial na perspectiva do oprimido, a partir da "senzala" em relação à "casa grande" sem, contudo, mistificar a senzala (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 53).
Esse trabalhou passou a ser uma referência no debate sobre raça no Brasil. Essas pesquisas sobre as relações raciais no país, tirou a neutralidade que Florestan procurava em sua "primeira fase" funcionalista. A partir daí, Florestan deixou cada vez mais claro a influência do marxismo em suas produções. Seus posicionamentos políticos de cunho marxista, fez Florestan ser um ferrenho defensor da autonomia da universidade, recusando financiamentos privados a suas pesquisas como as propostas pela organização Rockefeller. Assim como rechaçava financeiros privados, Florestan recusava formar seguidores. Sua intenção era desenvolver um sólido grupo de intelectuais que pensassem o Brasil sob um olhar científico e sociológico. 

O segundo Florestan, passou a ter uma grande preocupação em entender a nossa formação histórica. Do resultado dessa procura, temos o conceito de "capitalismo dependente", ideia chave para o entendimento do seu pensamento. Essa ideia foi melhor desenvolvida na obra Sociedade de classes e subdesenvolvimento onde Florestan: "desorganizou toda uma visão elitista e senhorial da sociedade e mostrou que a sociedade brasileira não era formada só de classes, mas de estamentos, classes e castas. Mostrou também que o subdesenvolvimento, nas sociedades capitalistas dependentes, não é apenas fruto de uma contingência ou uma condição transitória. As universidades, por exemplo, dizia Florestan, foram montadas pelas oligarquias para as oligarquias e elas, na sua grande maioria, ainda reproduzem "o modelo autocrático-burguês"" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 61). 

Para chegar a tais ideias, Florestan foi estudar a nossa formação histórica e dela retirou os seguintes pontos: a) a colonização brasileira foi parte do desenvolvimento capitalista na Europa, sendo a sociedade brasileira uma "parte da expansão do mundo ocidental e do papel que nela tomaram os portugueses" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 62); b) a independência em 1882 não significou mudanças profundas no país, logo, "Os laços coloniais apenas mudaram de caráter e sofreram uma transferência: deixaram de ser jurídico-político, para se secularizarem e se tornarem puramente econômicos; passaram da antiga Metrópole lusitana para o principal centro de poder do imperialismo econômico nascente" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 63). Na política, a independência representou mudanças ao extinguir a expropriação colonial que dominava de fora o excedente econômico; assim como entregou para as elites nativas o que Florestan chamou de "poder político administrativo". Entretanto, no plano econômico, as estruturas coloniais permaneceram praticamente intactas, mesmo assim, "O controle colonial puramente econômico tinha de basear-se na existência, no funcionamento regular e no crescimento progressivo de instituições novas. Por essa razão, a Independência, malgrado seu significado ambíguo no plano econômico, inaugura a Idade Moderna do Brasil  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 63-64); c) o choque desses dois tipos de colonialismos que existiam no Brasil, impediam que a independência tivesse um caráter autônomo, do ponto de vista econômico. Porém, ao mesmo tempo, as antigas e arcaicas instituições da sociedade colonial, entravam em declínio. 

Como conclusão de tais análises, Florestan afirma que não é possível o desenvolvimento pleno do capitalismo em países subdesenvolvidos pois, "as nações politicamente 'livres' mas economicamente 'dependentes', que surgiram como produtos históricos da 'expansão do mundo ocidental moderno', não evoluíram para o capitalismo por causa das estruturas econômicas vinculadas à economia exportadora das plantações"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 65). Logo, a modernização vista em países como o Brasil tem um teor superficial. Um exemplo dessa modernização superficial dado por Florestan é o caso do liberalismo no Brasil, modificado internamente para atender a defesa da escravidão e de práticas patrimonialistas, herdadas da antiga estrutura colonial. É por isso que, segundo ele, formamos uma sociedade genuína e singular que une aspectos modernos com práticas antigas. 

Outra importante obra de Florestan citada pelo autor desta biografia, é A revolução burguesa no Brasil, onde o principal objetivo do sociólogo paulista era analisar o perfil da classe dominante brasileira. Para ele, a burguesia local era parte e estava associada a burguesia internacional, sendo a autonomia política dos "de baixo" o único caminho para transformar o país. Por fim, Laurez traz a atuação política de Florestan em defesa da escola pública. Nos anos de 1960, junto com intelectuais como Anísio Teixeira, Fernando Azevedo etc., ele defendeu as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LBD), aprovada pelo presidente Jango. Esse projeto, segundo Florestan, obrigava o "Estado burguês" a assumir suas próprias contradições, tendo a tarefa de investir e garantir educação pública e gratuita para todos os brasileiros. Sobre suas ideias relativas à educação, encerra Laurez: 
Florestan defendia teses inovadoras, queria a universidade autônoma, democratizada, aberta ao aproveitamento dos talentos, com garantia de acesso a todos; produção de ciência e tecnologia para promoção do desenvolvimento econômico e modernização da sociedade, de forma justa. Na campanha, Florestan alertava em suas palestras a não se confiar na competência dos "populistas" no cumprimento da função do "Estado educador". Dizia-se convencido da importância decisiva da universidade no processo de democratização da sociedade, na reestruturação do país e afirmação da soberania nacional  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 75).
Capítulo 03 - 1964: um golpe no sonho, um corte na produção intelectual acadêmica

Neste terceiro capítulo, Laurez Cerqueira debate a vida de Florestan após o golpe militar de 1964. Essa intervenção golpista, acabou representando uma derrota para o projeto de universidade que Florestan imaginara para o país. Suas ideias iam em direção de uma autonomia universitária, visando o desenvolvimento da pesquisa científica. 

Segundo Cerqueira, o nome de Florestan esteve presente na primeira lista de professores que deveriam ser expulsos da universidade. Ademar de Barros, então governador de São Paulo e responsável pela publicação e execução desta lista, não expôs o nome de Florestan. Porém, meses depois, o sociólogo paulista seria preso nas dependências da USP por proferir falas de protesto à ditadura. Ao coronel responsável pela operação que o prendeu, teria dito: "A principal virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é a rebeldia crítica; por isso, eu não devo aceitar essa situação passivamente"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 94).

Em 9 de setembro de 1964, Florestan divulga uma carta, então estampada nos jornais, em que criticava o golpe militar e reafirmava seus posicionamentos. Se defendendo das acusações espúrias sobre atividades científicas, disse: "Não somos um bando de malfeitores. Nem a ética universitária nos permitiria converter o ensino em fonte de pregação político-partidária" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 95). E concluiu:
Como no passado, continuo e continuarei fiel às mesmas normas que sempre orientaram o meu labor intelectual, como professor, como pesquisador e como cientista. Não existem dois caminhos na vida universitária e na investigação científica. A liberdade intelectual, a objetividade e o amor à verdade resumem os apanágios do universitário e do homem de ciência autênticos. Estamos permanentemente empenhados numa luta sem fim pelo aperfeiçoamento incessante da natureza humana, da civilização e da sociedade, o que nos leva a perquirir as formas mais eficientes para aumentar a capacidade de conhecimento do Homem e para elevar sua faculdade de agir como crescente autonomia moral (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 97).
Florestan permanece no Brasil, criticando a reforma universitária proposta pelo MEC em consonância com o sistema universitário norte-americano, até a instauração do AI-5, quando teve sua aposentadoria decretada pelos militares. Assim, Florestan parte para o exílio no Canadá, onde tornou-se professor-titular da Universidade de Toronto. Após três anos de exílio em solo canadense, ele decide retornar ao Brasil para continuar sua luta contra à ditadura. 

De volta, Florestan viu um verdadeiro boicote ao seu trabalho. Chegou a receber, em 1972, um convite para integrar o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), mas por conta do financiamento da Ford Foundation pelo grupo, recusou a contribuir. Os anos de 1970 representou para Florestan um exílio dentro do próprio país, sendo isolado do ambiente acadêmico sem exercer suas atividades docentes, até que Dom Paulo Evaristo Arns o convidou para lecionar da PUC-SP. 

Foi nesta fase que o acadêmico e professor se misturou com o militante; fato impensável no início de sua carreira. Após seu retorno do exílio, Florestan se aproxima cada vez mais do espectro político da esquerda, sendo uma das figuras a lutar pela redemocratização do Brasil. A partir dos anos de 1970, várias obras foram publicadas pelo Florestan cientista, professor e militante atuante. Entre essas obras, podemos citar: O negro no mundo dos brancos (1972); A universidade brasileira: reforma ou revolução? (1975); Da guerrilha ou socialismo: a Revolução Cubana (1979). É também dessa fase mais radical que Florestan passa a escrever artigos e ensaios sobre conjuntura política internacional; tendo escrito sobre a América Latina, a África, a URSS, a Albânia, a Espanha franquista e Portugal salazarista. Com tais análises internas e externas, ele passa a ser uma das referências intelectuais dos movimentos de esquerda no Brasil. 

Capítulo 04 - O cientista militante e a esperança no socialismo

No final dos anos de 1970, surge o PT, sob liderança de Luiz Inácio Lula da Silva. O partido logo causou simpatias em Florestan que logo se filiaria à organização. Antes que entrasse, teria conversado pessoalmente no Lula afirmando que só entraria no partido, caso o mesmo definisse com clareza um programa tendo como núcleo a classe trabalhadora. Apesar de não achar o PT como um partido dos seus sonhos, Florestan adentrou no partido com a esperança de que ele renovasse a cultura política do país. Em sua obra O PT em movimento - contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores, citado por Laurez, diz o sociólogo sobre as condições que deram origem a esse novo partido:
O que deu origem ao PT? A inexistência de um partido dos de baixo que pudesse atuar, simultaneamente: na criação de uma democracia que conferisse peso e voz aos trabalhadores e aos oprimidos na atual sociedade de classes, realizando tarefas políticas monopolizadas pelos de cima; abria a ordem existente para reformas sociais de interesse específico dos trabalhadores e os oprimidos; formar as premissas históricas de uma revolução socialista. O PT, desprendeu-se quer do populismo dos partidos das classes dominantes, quer do oportunismo de partidos de esquerda, que se conformavam com os papéis de cauda da política da burguesia, pseudoprogressista e pseudodemocrática (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 121).
Sobre Lula, principal liderança do partido, Florestan nutria grande respeito; considerando-o a maior liderança dos de baixo na histórica recente do Brasil. Apesar da ausência de formação acadêmica, considerava o líder sindical pernambucano um intelectual orgânico da classe trabalhadora, sendo um operário construtor de ideias. E foi Lula o responsável por convencê-lo a trocar a atividade docente pela atuação política formal. Em 1986, Florestan aceita ser candidato a deputado constituinte, inaugurando uma nova fase de sua vida. Sua candidatura recebeu apoio de diversas personalidades do universo acadêmico e político como: Luiz Carlos Prestes, Jacob Gorender, Miza Boito, Octavio Ianni e Vladimir Sacchetta (filho de Hermínio Sacchetta, histórico militante trotskista e amigo de Florestan desde os anos de 1940). Com o apoio desses e outros nomes, o desempenho de Florestan foi excepcional:
No final, Florestan foi eleito com 50.024 votos, o quarto deputado mais votado do partido. O mapa eleitoral dele mais parece uma constelação. Apareceram votos espalhados por todo o Estado, em localidades onde não se imaginava haver apoiadores (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 127).
O capítulo é encerrado com Laurez relatando uma história interessante: as dívidas que Florestan contraiu por causa da campanha, foram pagas pelo amigo Antonio Candido, que fez questão de ajudar seu antigo e leal amigo.

Capítulo 05 - O professor Florestan Fernandes no Congresso Constituinte

Em 1º de fevereiro de 1987, Florestan assume o cargo de deputado constituinte em Brasília, herdando o gabinete de Eduardo Suplicy, eleito senador. Laurez descreve a atmosfera daquele momento como apreensiva para aqueles que retornavam das lutas, do exílio ou dos cárceres; mas tranquilidade para aqueles parlamentares alinhados ao governo Sarney. Diante disso,
Nas reuniões que precederam a instalação do Congresso Constituinte, o campo da esquerda chegou à conclusão de que a "transição lenta, gradual e segura", conduzida pelos setores aliados aos militares, dava sinais claros de que havia risco de o Brasil vir a ter uma Constituição muito aquém das necessidades reais. Os conservadores eram maioria no Congresso e o campo chamado "progressista", que agregava forças dos partidos da esquerda e de parte do centro era, numericamente, bastante inferior. Havia uma convicção generalizada de que a Assembléia se inclinaria por construir, não uma ordem democrática, mas um regime, uma ordem jurídica, para dar cobertura ao modelo econômico e político vigente. A saída vislumbrada por esse grupo seria garantir, no regimento da Constituinte, a participação direta do movimento social. Sem a pressão popular, havia risco de não se conseguir as conquistas desejadas (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 131-132).
A transição democrática deveria ser observada pelos militares, esse era o posicionamento do governo Sarney e dos parlamentares conservadores na Assembleia Constituinte. Segundo Paulo Brossard, então ministro da Justiça, as Forças Armadas deveriam manter seu papel na manutenção da ordem interna e com isso esperava "uma Constituinte para o Brasil de sempre, partindo do Brasil de hoje" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 132). Um dia após assumir seu cargo, Florestan escreveu um artigo para o jornal Folha de S. Paulo, intitulado "Os trabalhadores e a Constituição", em que denunciava as negociações do governo para deter o controle da elaboração da nossa constituição. Como um dos deputados de esquerda com maior destaque, Florestan sempre destacou a falta de representatividade dos de baixo no Congresso Constituinte. Por essa razão, estava preparado para os embates e não alimentava ilusões com o processo. Entretanto, acreditava que o momento era importante, pois abria espaço para que os históricos dilemas da sociedade brasileira fossem debatidos sendo uma boa oportunidade de expor as contradições da elite nacional.

Apesar de achar que a Constituinte dava a chance da burguesia brasileira substituir o "capitalismo atrasado" vigente no país, antes que esse entrasse em colapso e a crise econômica levasse o país para a barbárie; Florestan atestava a incompetência desta mesma burguesia em lidar com os problemas-chaves do país. Segundo ele:
Há uma tradição brasileira de manipulação que, nesses momentos, sempre conjuga conciliação e reforma. Mas nunca há reforma, é sempre conciliação conservadora. Há muita retórica, os que detém o poder fazem concessões e, assim, respiram e seguram as rédeas do poder (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 138).
Para combater essa conciliação conservadora, o campo progressista tinha que prezar pela união. Essa aliança progressista abarca siglas como o PT, o PCdoB, o PSB, o PDT, o PMDB e o PCB (que se transformaria em PPS). Ele logo percebeu que, apesar dessa união, os setores progressistas não conseguiriam vencer facilmente as forças da reação que se encontravam bem articuladas. Daí sua denuncia sobre a real natureza ideológica da burguesia brasileira:
O nosso capitalista é um capitalista ainda submetido ao imperialismo, nossa burguesia é uma burguesia covarde, nesse plano, e ela é aliada ao grande capital estrangeiro, ela é serviçal do imperialismo e, portanto, ela não tem coragem de enfrentar as grandes revoluções sociais que o capitalismo permite  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 139).
Diante desse cenário, Florestan começa a perceber e a escrever a importância de combinar reformas e revoluções; tendo a atuação parlamentar o papel de incitar reformas sociais bloqueadas pelas classes proprietárias. É por isso que a atuação parlamentar de Florestan era no sentido de não ficar preso ao nicho petista, alargando o diálogo com outros partidos e figuras políticas. Sua atuação em Brasília foi marcada pela crítica a superficialidade dos debates e consequente profundidade que buscava tratar os assuntos, o que o deixou perplexo em como a lógica da esperteza imperava nas relações políticas entre os parlamentares.  Ainda sobre sua atuação, afirma Laurez:
Deu atenção especial ao movimento nacional pela educação pública e gratuita, participando ativamente da articulação do Fórum Nacional da Educação, que se transformou na base de apoio para garantir as reivindicações do movimento de professores e estudantes. Florestan não só foi o porta-voz do movimento no Congresso Constituinte, mas também um militante ativo que se desdobrou em discursos, artigos de combate nos jornais e palestras nos mais variados fóruns em viagens pelo país  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 143).
Florestan foi árduo defensor da educação pública, laica, gratuita e com qualidade. Além disso, defendeu com afinco a autonomia universitária. Apresentou 96 emendas constitucionais, sendo 34 aprovadas. Laurez cita algumas emendas dele aprovadas, como a que definia a educação como um direito inalienável do cidadão brasileiro, sendo um dever do Estado garanti-lo. Outra foi a que garantia atendimento em creches e pré-escolas a todas as crianças de zero a seis anos de idade.

O ensino em língua portuguesa, mas respeitando as línguas nativas utilizadas por comunidades indígenas, também foi obra de sua atuação parlamentar; assim como a garantia constitucional da autonomia universitária que abarcava "autonomia didático-científica, administrativa e financeira, associa o ensino à pesquisa, à extensão e - o mais importante - à democratização efetiva da universidade, através da autogestão, do estabelecimento de critérios públicos e transparentes, com a participação dos docentes, alunos e funcionários"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 154). A emenda que igualava o direito ao lazer ao direito à educação, foi outra defendida por Florestan.

Como cientista de exitosa carreira, "Florestan conseguiu aprovar uma emenda que assegurou aos Estados e Distrito Federal a vinculação de parcelas das receitas orçamentárias a entidades públicas de fomento à pesquisa científica e tecnológica para o desenvolvimento dessas áreas. Uma outra de sua autoria, também aprovada, incumbe o Estado da promoção do desenvolvimento científico, da autonomia e capacitação tecnológica"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 155). Reivindicação histórica, o 13º salário para aposentados e pensionistas foi outra emenda dele aprovada, quebrando o preconceito contra os idosos. A emenda que garantia direitos iguais a filhos adotivos, também foi criação de Florestan. Em suma, a atuação parlamentar de Florestan estava em diálogo com demandas históricas de variados movimentos sociais, principalmente, os envolvidos com a defesa da educação. Aprovada a nova constituição em 1988, as atenções se voltavam para as eleições presidenciais do ano seguinte.

Apoiando a frente de esquerda em torno da candidatura Lula, viu Fernando Collor de Melo vencer o pleito no segundo turno após forte apoio recebido pelos principais veículos de comunicação de massa do país. Ainda em 1989, polemizou em Brasília ao sair em defesa da China no caso envolvendo a Praça da Paz Celestial, em Pequim. Disse, em profundo discurso em plenário, que os chineses estavam buscando superar suas contradições e alertou para o fato de que em uma situação revolucionária não se deveria excluir os meios de autodefesa, podendo esses ser pacíficos ou violentos. Tais meios, diria ele, são vistos tanto entre os defensores da revolução, quanto entre os da contra-revolução. Assim Florestan concluiu seu discurso em plenário:
A China com a vinculação que possui, poderá ou não se manter comunista. Não cabe à esquerda tomar a posição da direita. Eu estava indignado com os colegas, inclusive do PT, que foram rivais ali e piedosamente iam atrás da ordem. Ou você é socialista ou você não é socialista, o que vale tanto para socialista reformista quanto para socialista revolucionário", concluiu Florestan em seu discurso  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 164).
Capítulo 06 - Compromisso e coerência

Neste último capítulo, Laurez traz o segundo mandato de Florestan na Câmara dos Deputados até sua morte, em 1995. Mesmo com a saúde já debilitada, Florestan aceita o desafio de lutar pela elaboração da LDB. Foi eleito para o cargo novamente com 27.676 votos, tendo novamente à educação como trincheira principal. Sobre o plebiscito que envolvia o sistema de governo a ser escolhido pela população, afirmou:
Minha posição é difícil porque, como socialista, sou, teoricamente, parlamentarista. Agora, como sociólogo, e especialmente como sociólogo que estudou a sociedade brasileira desde a ocupação portuguesa, sou levado a pensar que o presidencialismo ainda representa uma esperança entre nós e que o parlamentarismo seria, ao contrário do que sucedeu na Europa, um regime de governo que iria facilitar ainda mais a concentração do poder político (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 171).
Porém, sua atuação parlamentar foi tímida por conta da piora do seu quadro clínico, obrigando-o a realizar procedimentos cirúrgicos. Necessitado de um transplante de fígado, Florestan o realizou no Hospital das Clínicas, após recusar a proposta de FHC em se tratar nos EUA. Seis dias após o transplante, Florestan veio a óbito após um erro médico que colocou ar em vez de sangue em seus vasos sanguíneos dos pulmões, coração e cérebro. Foi velado no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Seu velório reuniu familiares, intelectuais, lideranças petistas e a primeira-dama, Ruth Cardoso, sua ex-aluna nos anos de 1950, que representou o então presidente FHC. Ao lado do seu caixão, duas bandeiras vermelhas: uma do PT e outra do MST, simbolizando as lutas dos de baixo que Florestan tanto defendeu durante sua vida.




























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