domingo, 29 de março de 2020

Iniciação à História da Filosofia - Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein



  • Sobre o autor: Danilo Marcondes, doutor em Filosofia pela Universidade de St. Andrew, Grã-Bretanha, é professor titular do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) que dirigiu entre 1986-1989 e professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi também vice-reitor acadêmico da da PUC-RJ (1999-2007). Com mais de trinta anos de experiência no magistério, é autor de sucessos editoriais como: a) Textos básicos de Filosofia; b) Dicionário básico de Filosofia (com Hilton Japiassú) e c) Textos básicos de ética, entre outras obras. 



Iniciação à História da Filosofia - Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein - Danilo Marcondes - Editora Zahar


Parte I - Filosofia Antiga - 1. O surgimento da Filosofia na Grécia antiga; 2. Os filósofos pré-socráticos; 3. Sócrates e os sofistas; 4. Platão; 5. Aristóteles e o sistema aristotélico; 6. O helenismo e suas principais correntes: estoicismo, epicurismo e ceticismo. 

Capítulo 01 - O surgimento da Filosofia na Grécia Antiga -  A. A passagem do pensamento mítico para o filosófico-científico; B. Noções fundamentais do pensamento filosófico-científico.

É a Tales de Mileto que é dado a alcunha de primeiro filósofo. Aristóteles, no livro I da Metafísica, que atribui o título de filósofo a Tales. Mas isso significa que antes de Tales as pessoas não pensavam? Obviamente que não. Entretanto, o conhecimento científico de que somos herdeiros remonta suas origens da Grécia Antiga de Tales. Contextualizar o nascimento da Filosofia na Grécia Antiga é uma das tarefas desse capítulo, a outra é mostrar o que existe de específico nesse tipo de conhecimento fundado a partir de Tales. Para realizar tal objetivo, Danilo Marcondes coloca em oposição o então nascente conhecimento filosófico-científica e o pensamento mitológico, então dominante até então.

Mas o que seria esse pensamento mitológico? O pensamento mitológico ou mítico se caracteriza como uma tentativa de explicação da realidade (origem do mundo, funcionamento da natureza e seus devidos processos naturais) com base num discurso imaginário e/ou ficcional. Por isso a origem dos mitos não se baseia numa cronologia determinada. O pensamento mítico não é fruto de uma obra individual mais sim fruto de uma tradição cultural de um determinado povo. Por isso sua transmissão se faz comumente de forma oral, necessitando do receptor sua adesão e/ou aceitação. Blindado de críticas e questionamentos, o pensamento mítico transmite uma visão de mundo onde o indivíduo precisa aceitar para ser membro daquela determinada cultura. Desse tipo de pensamento surgem as explicações de mundo cercadas pelo sobrenatural, onde deuses, espíritos existem imaginativamente e exercendo uma governança sobre os homens e a natureza. É daí que surgem os sacerdotes, aquelas pessoas responsáveis pela intermediação entre o mundo humano e o divino, sendo os cultos religiosos uma espécie de evento que busca ligar o homem as forças divinas. Por fim, o mito com sua lógica acaba caindo num paradoxo conceitual, ou seja, apesar de pretender explicar a realidade acaba tornando-a obscura por jogá-la nas mãos de entes sobrenaturais e/ou divinos que não podem ser explicados pela mente humana.

E qual o contexto do surgimento do pensamento filosófico-científico que vem romper com o mitológico descrito anteriormente? Antes de mais nada, faz-se necessário adiantar: apesar de ser um tipo de conhecimento diferente do mítico, os primeiros filósofos gregos não rompem totalmente com o pensamento mítico e por isso acabam carregando em suas reflexões algumas características desse tipo de pensamento. Dito isso, o período histórico de surgimento do pensamento filosófico remonta do Século VI a.C. na Grécia. Na época, a sociedade grega passava por importantes transformações como: a) decadência da civilização micênico-cretense, baseada num regime monárquico; b) surgimento das Cidades-Estados graças as invasões de tribos dóricas vindas da Ásia central; c) desenvolvimento das atividades comerciais. Esses três principais fatores, atrelados a outros, gerou uma sociedade mais afastada da religião e também rica em contatos humanos por conta do forte comércio marítimo que colocava povos de diferentes culturas sob contato. Não é por acaso que as cidades de Mileto e Éfeso serão pioneiras no desenvolvimento da Filosofia, vide seu importante papel como porto e entreposto comercial. É desse ambiente cosmopolita, multicultural e relativizador que temos a base para o surgimento do que conhecemos hoje como filósofos pré-socráticos, os primeiros a desenvolverem o conhecimento filosófico.

Antes de entrar especificamente sobre o pensamento e as correntes existentes entre os filósofos pré-socráticos, vale destacar a importância em conceituar alguns alguns conceitos chaves para seu entendimento. Entre eles, destaca Danilo:

  • Physis: significa o mundo natural em que habitamos e que será fonte de preocupação para os primeiros filósofos; 
  • Causalidade: a causalidade é a explicação característica dos filósofos pré-socráticos que pensavam na dualidade causa/efeito no entendimento do mundo natural. Em suma, "Explicar é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e o determina. Explicar é, portanto, reconstruir o nexo causal existente entre os fenômenos da natureza, é tomar um fenômeno como efeito de uma causa" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 24)
  • Arqué: significa o elemento primordial ou o princípio de tudo onde os filósofos pré-socráticos vão buscar para evitar uma explicação causal infinita; 
  • Cosmo: significa o mundo natural gerido por princípios racionais, leis, ordem hierárquica que se contrapõe a ideia de caos;
  • Logos: significa literalmente um discurso racional de teor argumentativa e que por isso está sujeito a críticas e/ou discussões. 
Por fim, "as teorias aí formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades absolutas e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de suscitarem divergências e discordâncias, de permitirem formulações e propostas alternativas. Como se trata de construções do pensamento humano, de ideias de um filósofo - e não de verdades reveladas, de caráter divino ou sobrenatural -, estão sempre abertas à discussão, à reformulação, a correções" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 27)

Capítulo 02 - Os Filósofos Pré-Socráticos - A. Apresentação geral da filosofia dos pré-socráticos; B. Escola Jônica; C. Escolas Italianas (pitagórica e a eleática); D. Segunda fase do pensamento pré-socrático (atomista); E. Monismo x Mobilismo: Heráclito x Parmênides.

Os filósofos pré-socráticos são assim denominados por existirem antes de Sócrates, pensador que marca uma fronteira na Filosofia. Antes de Sócrates, as reflexões giravam mais em torno dos fenômenos da natureza, visando encontrar a essência desta; já a partir da filosofia socrática, o fazer filosófico se transporta para questões humanas e sociais como a ética e a política. Como podemos ver, trata-se de uma divisão cronológica.

Entre as duas principais fontes de que dispomos sobre o pensamento dos pré-socráticos, Marcondes destaca a existência de duas. São elas: a) os fragmentos de escritos dos próprios filósofos; b) a doxografia, sínteses do pensamento desses filósofos escritos por pensadores posteriores como Aristóteles, por exemplo.

A diferença entre tais fontes é que a primeira se baseia em escritos próprios desses autores, enquanto a segunda fonte se baseia em interpretações de terceiros sobre o pensamento dos pré-socráticos. Marcondes afirma que a ideia do capítulo é apresentar uma visão ampla e geral dos principais filósofos pré-socráticos, focando em dois que ele acredita ser de maior repercussão: trata-se dos filósofos Heráclito e Parmênides.

Danilo Marcondes enxerga a existência de três escolas filosóficas no período pré-socrático. São elas:

  1. Escola Jônica: "caracteriza-se sobretudo pelo interesse pela physis, pelas teorias sobre a natureza" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 31). Dentre os filósofos que compõe essa escola, temos: a) Tales de Mileto; b) Anaximandro de Mileto; c) Anaxímedes de Mileto; d) Xenófanes de Colofon; e) Heráclito de Éfeso. Os três primeiros compõe o que o autor chama de Escola de Mileto. 
  2. Escola Italiana: "caracteriza-se por uma visão de mundo mais abstrata, menos voltada para uma explicação naturalista da realidade, prenunciando em certo sentido o surgimento da lógica e da matefísica, sobretudo no que diz respeito aos eleatas" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 31). Dentre os filósofos que compõe essa escola, temos: a) Pitágoras de Samos; b) Alcmeon de Crotona; c) Filolau de Crotona; d) Parmênides de Eleia; e) Zenão de Eleia; f) Melisso de Samos. Os três primeiros formam o que Marcondes chama de Escola Pitagórica, já os três últimos compõe a chamada Escola Eleática. 
  3. Escola Pluralista: essa escola contém os seguintes filósofos: a) Anaxágoras de Clazômena; b) Leucipo de Abdera; c) Demócrito de Abdera; d) Empédocles de Agrigento. Leucipi e Demócrito formam o que Marcondes chama de Escola Atomista. 
Sobre a Escola Jônica, Marcondes não explica inicialmente o pensamento de Heráclito, prometendo discorrer sobre ele adiante, junto com Parmênides. Mas sobre Tales de Mileto, considerado como o primeiro filósofo, ele discorre que sua diferença para os outros é que se enxerga nele a tentativa de explicar a natureza com base em elementos presentes nela própria. No caso, o elemento natural escolhido como princípio da physis foi a água. Outro ponto que torna Tales uma proeminente figura, foi o incentivo dado a seus discípulos para que esses desenvolvessem outros pontos de vista, adotando pensamentos próprios e diferente dos seus. 

Seu discípulo, Anaximandro, propôs que o princípio da physis se encontra no que ele denomina de apeiron. Esse apeiron seria ilimitado e indeterminado, o que "pode ser considerada um esforço na direção de uma explicação mais abstrata ou genérica do real, uma primeira versão da noção de matéria" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 32). Já Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, adota o ar como princípio da physis. Ele é considerado um elemento incorpóreo e presente em tudo, aqui também vemos a tentativa de explicar as coisas de forma abstrata e fora da realidade material. 

Sobre a Escola Italiana, Marcondes trata primeiramente dos pitagóricos que para ele são responsáveis pelo seguinte legado na Filosofia: 
Uma das principais contribuições dos pitagóricos à filosofia e ao desenvolvimento da ciência encontra-se na doutrina segundo a qual o número é o elemento básico explicativo da realidade, podendo-se constatar uma proporção em todo o cosmo, o que explicaria a harmonia do real garantindo o seu equilíbrio. Os pitagóricos tiveram grande importância, portanto, no desenvolvimento da matemática grega, sobretudo na geometria.  (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 33)
Assim como Heráclito na Escola Jônica, Marcondes explica o pensamento de Parmênides (e da Escola Eleática que ele funda) mais na frente do capítulo.  Em seguida, ele segue para a explicação da Escola Pluralista. Os filósofos dessa escola são marcados por receberem forte influência dos pensadores precedentes que vimos acima. Foi a partir dessas influências que eles formaram suas teorias, combinando ideias de diferentes escolas, o que justifica seu nome de "pluralista".

O primeiro filósofo dessa escola a ser discutido é o Anaxágoras de Clazômena, pensador considerado discípulo de Péricles, então a maior personalidade política de Atenas. Anaxágoras baseia sua teoria na ideia de nous (ou espírito) que seria a causa da existência do cosmo. O nous ordena todas as coisas presentes no universo. Já Empédocles de Agrigento foi o responsável pela criação da teoria dos quatro elementos (fogo, água, terra e ar), que busca sintetizar as reflexões feitas pelos filósofos anteriores a ele. Por sua capacidade de unificação, as ideias de Empédocles exerceria bastante influência por toda a Antiguidade, chegando a respingar no Renascimento e no início da era Moderna. Já a escola atomista, fundada por Leucipo e desenvolvida por Demócrito, é outra tradição filosófica presente entre os pluralistas. Sobre a importância dos atomistas, diz Marcondes:
A doutrina atomista sustenta que a realidade consiste em átomos e no vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso os fenômenos naturais e o movimento. A atração e repulsão dos átomos devem-se às suas formas geométricas, sendo que átomos de formas semelhantes se atraem e os de forma diferente se repelem. Os átomos são imperceptíveis e existem em número infinito. Podemos destacar aí o avanço em relação às teorias anteriores na formulação do átomo como elemento primordial, sobretudo quanto à noção de partículas imperceptíveis que compõem os objetos materiais e dão origem aos fenômenos e ao movimento (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 35)
Por fim, Marcondes encerra o capítulo debatendo os dois filósofos que ele considera os mais importantes do período pré-socrático. Trata-se de Heráclito, um dos representantes da Escola Jônica, e Parmênides, um dos representantes da Escola Italiana e fundador da Escola Eleática. A oposição entre o pensamento dos dois é denominado pelo autor de Monismo versus Mobilismo.

Heráclito é um dos pré-socráticos que mais se encontram fragmentos de seus escritos, apesar de ser chamado de "o Obscuro" na Antiguidade, por conta da complexidade que expressava seus pensamentos. Ele é o principal representante do que Marcondes chama de Mobilismo, ou seja, a ideia de que a realidade (a physis e o cosmo, por exemplo) é caracterizada pelo movimento. Ele pensava o seguinte:
Segundo o famoso fragmento 50, "Dando ouvidos não a mim, mas ao logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma única coisa." Assim, tudo é movimento, tudo está em fluxo, mas a realidade possui uma unidade básica, uma unidade na pluralidade. Esta "unidade na pluralidade" pode ser entendida também como a unidade dos opostos. Heráclito vê a realidade marcado pelo conflito (pólemos) entre os opostos (fr. 53, 126, 80), conflito que todavia não possui um caráter negativo, sendo a garantia do equilíbrio, através da equivalência e reunião dos opostos (fr. 10) (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 24)
E continua Marcondes:
Assim, dia e noite, calor e frio, vida e morte são opostos que se complementam (fr. 67, 126). A existência do movimento e da pluralidade do real é parte de nossa experiência das coisas, e Heráclito parece ser um filósofo que valoriza a experiência sensível (fr. 55). O fogo (pyr) é tomado como elemento primordial (fr. 30, 31, 66, 90) ou, pelo menos enquanto chama, energia que queima e se autoconsome, simbolizando o caráter dinâmico da realidade (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 36)
Heráclito é por isso considerado o pai da dialética, ao enxergar uma unidade entre os opostos que se integram, formando uma realidade movimentada pelo constante conflito. O pensamento dele, segundo Marcondes, representaria uma espécie de "dialética da natureza".

Parmênides (e os eleatas que o seguem) será o principal opositor do mobilismo de Heráclito, formando uma outra perspectiva, chamada por Marcondes de monismo. A crítica monista aos mobilistas, se fundamentam em dois argumentos. O primeiro diz que a mudança vista pelos mobilistas, aparentemente existente quando analisamos as coisas sob um aspecto superficial, guarda consigo uma essência. Assim, "Se, no entanto, formos além de nossa experiência sensível, de nossa visão imediata das coisas, descobriremos, através do pensamento, que a verdadeira realidade é única, imóvel, eterna, imutável, sem princípio, nem fim, contínua e indivisível" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 36). Já o segundo argumento é uma consequência do primeiro, pois só é possível compreender a mudança das coisas se encontrarmos nela aquilo de essencial e/ou estável. Em suma, "Através do pensamento devemos buscar então aquilo que permanece na mudança: só posso entender a mudança se há algo de estável que permanece e me permite identificar o objeto como o mesmo. Portanto, podemos dizer que o segundo argumento contra o mobilismo é um argumento de caráter lógico, sustentando que a noção de movimento pressupõe a noção de permanência como mais básica" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 36).

Melisso de Samos e Zenão de Eleia são dois seguidores de Parmênides, tendo suas reflexões o foco de combater o pensamento mobilista. No caso de Zenão, por exemplo, ele é considerado por Aristóteles como o criador da dialética enquanto uma técnica argumentativa; isso porque para combater o mobilismo ele utilizava de paradoxos, chamados de redução ao absurdo, em que "Parte assim da posição do adversário, procurando mostrar que tal posição leva ao absurdo; com isso, ela é refutada" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 37).

Enfim, o destaque dado a Heráclito e Parmênides é que suas ideias acabam fundando o grande paradigma da filosofia, encontrando ecos até os dias atuais. Mas qual a natureza deste choque entre mobilistas versus monistas? Diz Marcondes, encerrando o capítulo:
A primeira valoriza a pluralidade do real, a oposição e o conflito entre os elementos dessa realidade que constatamos a partir dessa experiência, os quais, longe de ser algo problemático, caracterizam a própria natureza dessa realidade. A segunda busca aquilo que é único, permanente, estável, nosso pensamento após uma longa experiência de reflexão. Trata-se, no entanto, de um conflito insolúvel, pois não temos um critério externo às teorias, independente delas, que nos permita dizer quem tem razão. De certa forma isso se tornará um traço característicos da filosofia: tudo pode ser posto em questão; a discussão filosófica está permanentemente em aberto (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 38)
Capítulo 03 - Sócrates e os Sofistas - A. Os sofistas; B. Sócrates.

O pensamento socrático se mostra tão importante que sua existência acaba marcando a cronologia do pensamento filosófico. Todos os pensadores que vieram antes dele, são chamados de Pré-Socráticos e a partir de suas reflexões, um novo tipo de fazer filosófico é desenvolvido. Os filósofos sofistas são contemporâneos a Sócrates, mas apesar de adversários é possível encontrar semelhanças entre suas reflexões. Isso porque tanto Sócrates quanto os sofistas, se distanciam das preocupações com a natureza (ou physis), vista entre os Pré-Socráticos, e passam a refletir sobre questões relativas ao homem como aquelas envolvendo a ética ou a política, por exemplo.

O contexto histórico em que Sócrates e os sofistas estão inseridos, também é o mesmo. Eles vivenciaram um período em que a sociedade grega estava se estabilizando, o desenvolvimento comercial na região estava a pleno vapor e a consequência principal disto foi a consolidação das chamadas cidades-Estado. A Grécia passou a ter uma classe mercantil bastante rica e influente. Assim como crescia a prosperidade, também crescia a ânsia de criar conciliação entre diferentes opiniões.

No esplendor da democracia ateniense, as conciliações eram feitas nas assembleias onde a imposição da força dava lugar ao poder da persuasão. A razão passa a prevalecer sobre a truculência e assim as discussões passam a ter uma elevação qualitativa. Marcondes destaca que nesse período, três questionamentos são vitais. São eles: a) o que é a verdade?; b) Quais os princípios da razão?; c) Com base em que critérios se pode justificar aquilo que se diz? Como podemos observar, temos a existência da procura pela natureza do conhecimento e a necessidade de construir argumentos sólidos na defesa daquilo que acreditamos ser a verdade.

Como retrata Marcondes, tais transformações não vão afetar apenas no desenvolvimento filosófico. Outras formas de conhecimento são desenvolvidas no período, valendo aqui nosso destaque. No teatro, por exemplo, tivemos as tragédias em que virtudes morais e políticas são exaltadas em uma espécie de cerimônia cívica. Dentre os criadores dessas tragédias, o autor cita Ésquilo e Sófocles, tendo esse último produzido clássicos como Édipo rei e Antígona. Na História e Geografia, figuras como Heródoto, Tucídides e Xenofonte são importantíssimas. Os três representam a passagem das antigas narrativas míticas pelos testemunhos e relatos de viagens de eventos históricos como a Guerra do Peloponeso. Na Medicina, Hipócrates representou a passagem das práticas mágicas pelas explicações racionais dos fenômenos.

Enfim, é diante deste cenário que surgem Sócrates e os filósofos sofistas. Marcondes começa explicando o pensamento dos sofistas. Segundo ele, os sofistas surgiram exatamente no esplendor da democracia grega. Eram pensadores itinerantes, ou seja, andavam por diversas cidades-Estados com o intuito de vender seus conhecimentos, técnicas e habilidades aos governantes e políticos em geral. Entre os principais sofistas destacados por Marcondes, temos: a) Protágoras de Abdera; b) Górgias de Leontinos; c) Hípias de Élis; d) Licofron; e) Pródicos (mestre de Sócrates); f) Trasímaco. Marcondes foca, especificamente, nas ideias de Protágoras e Górgias.

Protágoras de Abdera foi o filósofo que proferiu a seguinte frase: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das não são como não são." Duas ideias são essenciais nessa frase, assim como para todos os sofistas; trata-se do humanismo e do relativismo. O humanismo se encontra na explicação das coisas baseadas no entendimento do próprio homem, sem interferências externas como os deuses. O homem é, como diz a frase, "a medida de todas as coisas". Já o relativismo se encontra na tese de que é através da percepção individual do homem que a realidade é construída, sem uma essência fundadora como pensavam os filósofos Pré-Socráticos que estavam constantemente em busca da arché. E esse percepção é sempre relativa, pois como diz a frase, o homem pode perceber as coisas que "são como são" ou "das não são como não são". Vejamos o que diz Marcondes:
Protágoras parece assim valorizar um tipo de explicação do real a partir de seus aspectos fenomenais apenas, sem apelo a nenhum elemento externo ou transcendente. Isto é, as coisas são como nos parecem ser, como se mostram à nossa percepção sensorial, e não temos nenhum outro critério para decidir essa questão. Portanto, nosso conhecimento depende sempre das circunstâncias em que nos encontramos e pode, por isso mesmo, variar de acordo com a situação (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 43).
Em seguida, Marcondes visa desmistificar a ideia de que os sofistas eram meros vendedores de conhecimento, sem ter uma base filosófica concisa por trás de suas reflexões. Diz ele:
Portanto, pode-se dizer que sofistas como Protágoras não eram meros manipuladores da opinião, mestres sem escrúpulos que vendiam suas habilidades retóricas a quem pagassem mais, mas, ao contrário, acreditavam não haver nenhuma outra instância além da opinião a que se pudesse recorrer para as decisões na vida prática, as quais deveriam ser tomadas com base na persuasão a fim de produzir um consenso em relação às questões políticas. Tipicamente, em uma discussão na Assembleia ninguém detinha a verdade em um sentido completo e absoluto, simplesmente porque isso não seria possível; mas todos tinham suas razões, seus interesses, seus objetivos, procurando defendê-los da melhor forma possível. O processo decisório envolvia, entretanto, a necessidade de superação das diferenças e a convergência de interesse e objetivos, para que se pudesse produzir um consenso, e era para que esse fim que a retórica e a dialética deveriam contribuir (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 43).
Já Górgias em seu tratado Do não-ser, defende a ideia de que nenhum conhecimento pode ser estável e definitivo. Ele afirma o seguinte: "Nada existe que possa ser conhecido; se pudesse ser conhecido não poderia ser comunicado, se pudesse ser comunicado não poderia ser compreendido". Assim, Górgias se coloca crítico do logos como uma explicação definitiva das coisas. Para ele, o alcance das essências é impossível e por isso o único recurso que dispomos é o discurso. Como podemos perceber, a preocupação com a linguagem e com o discurso são parte das reflexões sofistas e seu principal legado para a filosofia passa a ser o interesse pela retórica e oratória.

Debatido os sofistas, o capítulo é encerrado com a análise do pensamento socrático. Como se sabe, Sócrates não deixou nada escrito e tudo o que sabemos de sua figura se baseiam em escritos de terceiros. Três pessoas escreveram sobre Sócrates, são elas: a) Platão, seu principal discípulo e onde podemos encontrar o pensamento filosófico de Sócrates; b) Xenofonte, contendo mais um perfil biográfico de Sócrates; c) Aristófanes, crítico de Sócrates.

Para Marcondes, a filosofia socrática pode ser vista como um método de análise conceitual. Ou seja, através da pergunta "O que é...?", Sócrates visa buscar a definição de uma determinada coisa, geralmente ideias vistas como virtudes ou qualidades morais. Sendo assim,
O método socrático envolve um questionamento do senso comum, das crenças e opiniões que temos, consideradas vagas, imprecisas, derivadas de nossa experiência, e portanto parciais, incompletas, o que se reflete nos exemplos dados. É exatamente neste sentido que a reflexão filosófica vai mostrar que, com frequência, não sabemos aquilo que pensamos saber. Temos talvez um entendimento prático, intuitivo, imediato, que contudo se revela inadequado no momento em que deve ser tornado explícito. O método socrático revela a fragilidade desse entendimento e aponta para a necessidade e a possibilidade de aperfeiçoá-lo através da reflexão. Ou seja, partindo de um entendimento já existente, ir além dele em busca de algo mais perfeito, mais completo (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 47).
A busca desse "algo mais perfeito", só pode ocorrer através de um processo reflexivo individual. Ou seja, "Trata-se de um exercício intelectual em que a razão humana deve descobrir por si própria aquilo que busca" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 47). É por isso que Sócrates nunca termina seus diálogos dando uma resposta categórica e definitiva sobre nada, ele apenas mostra a ignorância e superficialidade do interlocutor.

O método utilizado por Sócrates para alcançar tais objetivos é a maiêutica, que significa parto. O parto a ser realizado é o de novas ideias, entendendo nossas limitações daquilo que acreditamos conhecer. A tarefa do filósofo, pois, não é dar respostas definitivas, mas incentivar o interlocutor a refletir sobre seu próprio conhecimento. A dialética é uma ferramenta importantíssima da maiêutica, pois visa questionar o interlocutor sobre suas crenças individuais. Incentivando o interlocutor a emitir respostas, Sócrates utiliza-se da ironia para problematizar essas afirmações, fazendo esse interlocutor entrar em contradição. O objetivo de expor tais contradições é fazer com que o interlocutor perceba a insuficiência de seus argumentos, reconheça enfim sua ignorância e a partir daí reflita para dar origem a novas ideias. Logo,
É este o sentido da célebre fórmula socrática "Só sei que nada sei", a ideia de que o reconhecimento da ignorância é o princípio da sabedoria. A partir daí, o indivíduo tem o caminho aberto para encontrar o verdadeiro conhecimento (episteme) afastando-se do domínio da opinião (doxa) (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 48).
É a procura dessa episteme que faz Sócrates se distanciar dos sofistas, sendo seu mais fervoroso crítico. Segundo o pensamento socrático, a filosofia não pode ser mera técnica que facilite habilidades argumentativas, visando convencer o oponente. Pelo contrário, seu objetivo é ir em busca do verdadeiro conhecimento. A busca pelo simples convencimento, deixando relegado a tarefa de buscar aquilo que é verdadeiro, acarretaria em decisões políticas tomadas não com base no saber, mas na perspicácia dos mais hábeis na retórica. E ser habilidoso na retórica não significa, necessariamente, virtude ou sabedoria. Dessa forma, "Os sofistas não ensinavam portanto o caminho para o conhecimento, para a verdade única que resultaria desse conhecimento, mas para a obtenção de uma "verdade consensual", resultado da persuasão" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 48). Eis então a diferença que Sócrates enxerga entre seu pensamento e os reproduzidos pelos sofistas, então não considerados filósofos para pensadores como Platão e Aristóteles.

Capítulo 04 - Platão - A. Contexto de surgimento da filosofia de Platão; B. Platão e a teoria das ideias; C. Análise de textos da República.

Antes de penetrar nas ideias de Platão, Danilo Marcondes busca primeiro contextualizar sua obra. Do ponto de vista histórico, a Grécia Antiga vivia o seu apogeu com o pleno vigor da democracia ateniense. No fazer filosófico, seguindo o que foi iniciado pelos sofistas e por Sócrates, o pensamento platônico se diferencia dos pré-socráticos pois sua preocupação estava direcionada para problemáticas como: a epistemologia, a ontologia e questões ético-política. Os pré-socráticos, como vimos, estão preocupados em compreender os fenômenos da natureza e o princípio que deu origem ao cosmo. Sócrates e Platão, pelo contrário, se ligam a problemáticas envolvendo os seres humanos.

Dentro dessa problemática envolvendo os homens, a que se liga à natureza do conhecimento (ou epistemologia) acaba tendo um espaço maior nas reflexões feitas por Platão. Com isso, Danilo Marcondes enumera quatro questionamentos que Platão buscou responder em sua filosofia: 

  1. Questão da possibilidade do conhecimento, ou seja, é possível conhecer a realidade?  
  2. Questão do método a ser utilizado, ou seja, como é possível conhecer? 
  3. Questão dos instrumentos do conhecimento, ou seja, qual o sentido e a razão do conhecimento?
  4. Questão do objeto do conhecimento, ou seja, o que devemos conhecer?
Platão está preocupado com a produção do conhecimento e seus desdobramentos, seu objetivo é definir o papel da filosofia. Para ele a filosofia desempenharia o papel de um árbitro e/ou legislador de uma cultura e de uma sociedade. Como ele desempenharia tal função? Desempenharia ao avaliar determinadas pretensões de conhecimento, julgando-as. Logo, "A filosofia adquire então uma função de análise crítica dos fundamentos, do discurso legitimador, uma vez que a cultura é precisamente o conjunto dessas pretensões ao conhecimento" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 51). A epistemologia, com sua capacidade de refletir sobre a produção de conhecimento, surge em Platão como o ponto de partida do seu projeto filosófico. 

Os questionamentos sobre a decadente sociedade ateniense, criticando seus valores e ideais, seria a expressão prática do projeto filosófico platônico. A morte de Sócrates, seu mestre, exemplifica a preocupação em julgar as pretensões de conhecimento daquela sociedade; apontando seus equívocos. Em suma,
A filosofia corresponderia a um método para se atingir o ideal em todas as áreas pela superação do senso comum, estabelecendo o que deve ser aceito por todos, independente de origem, classe ou função. É isso que significa a universalidade da razão. A prática filosófica envolve assim, em certo sentido, o abandono do mundo sensível e a busca do mundo das ideias (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 51).
O entendimento da natureza desse "mundo das ideias", leva Platão a acreditar que o conhecimento mais elevado identifica-se com a visão do bem. Sua visão binária em que põe em choque senso comum versus razão; mundo sensível versus mundo das ideias acarreta as seguintes oposições:

  1. Opinião x Verdade; 
  2. Desejo x Razão; 
  3. Interesse Particular x Interesse Universal; 
  4. Senso Comum x Filosofia. 
Essas oposições descritas acima, fazem parte do que Danilo Marcondes chama de Dialética Platônica. Partindo do senso comum, ela objetiva reexaminar o conhecimento que temos como verdadeiro. Logo, a tarefa do filósofo não é invocar um Ser Superior com sua autoridade, mas induzir o interlocutor a descobrir a verdade por ele próprio. É por isso que o diálogo em Platão é tão representativo, pois é através dele que é feito esse reexame e/ou autocrítica. Seguindo seu mestre Sócrates, ele se opunha aos sofistas, pois esses usariam o diálogo não para buscar o verdadeiro conhecimento, mas sim para manipular crenças e atingir interesses particulares. Se opondo ao relativismo dos sofistas, Platão pensava o seguinte sobre a natureza do fazer filosófico:
A filosofia não deve apenas dizer e afirmar, mas preocupar-se em chegar à verdade, à certeza, à clareza, através da razão. Constitui um discurso que se funda na legitimidade, que deve ser aceito por todos (tendo portanto um caráter universal), que se impõe pela argumentação racional, que produz um consenso legítimo, que se opõe à violência do poder e à ilusão e mistificação ideológicas que caracterizam o discurso dos sofistas. A filosofia, segundo o modelo platônico, vai ser esse discurso legítimo que se instaura como juiz, como critério de validade de todos os discursos (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 52).
Dito isso, a filosofia platônica também se mostra um projeto político em oposição à prática sofista que dava sustentação à degeneração da sociedade ateniense. Neste projeto, a filosofia seria antagônica da democracia, pois esta instiga as paixões e a opinião em oposição ao conhecimento que visa alcançar à verdade. Porém, ela também se mostra antagônica à tirania e à oligarquia, pois ambas não se fundam no conhecimento verdadeiro. Tendo em vista tal impasse, ele propõe o advento da aristocracia do saber que se oponha ao domínio da opinião e caminhe para a busca da verdade.

O objetivo do projeto político de Platão é desmascarar aqueles que baseiam seus discursos na opinião, tendo o diálogo socrático um papel primordial. Fundado no conhecimento verdadeiro e racional, tal diálogo busca a resolução dos conflitos entre as diversas opiniões e interesses. E como desmascarar tais opiniões e interesses? Simples, basta submetê-los às regras da inteligibilidade. Ou seja, é necessário buscar definições e desenvolver significados do que se diz conhecer. Questionado sobre essas definições, o interlocutor passa a compreender as limitações de sua opinião, enxergando suas contradições e invalidades. Afirma Danilo Marcondes,
O método dialético não substitui de início a certeza da opinião por uma outra certeza, mas é um método negativo, exigindo uma atitude crítica, mostrando a necessidade de uma interrogação, e um questionamento dessa própria opinião, de sua origem, de seus fundamentos (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 53).
O diálogo socrático e o método dialético se unem. Só a partir da radicalização da discussão é que se vai chegar a essência daquilo que se discute, sendo assim, o diálogo se opõe tanto à violência física e suas imposições quanto a manipulação sofística. Enfim, o diálogo baseado no método dialético, "Procura estabelecer: o que se diz; por que se diz; o que significa aquilo que é dito" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 53). E mais:
Ao aceitar as regras do diálogo, os interlocutores abandonam progressivamente a opinião. Instaura-se entre eles uma nova relação, não mais baseada em interesses, desejos e inclinações particulares que dão origem a antagonismos. Trata-se agora da busca da universalidade, e o discurso que tem a pretensão de ser universal, capaz de superar as divergências de opinião e ter um caráter legislador, legitimador, é a filosofia (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 53).
A possibilidade de alcançar a universalidade do conhecimento, seria para Platão a busca pela verdade. Tal conhecimento verdadeiro só pode ser explicado corretamente através do entendimento de uma realidade que não seja apenas a sensível e material. Podemos enxergar a influência de Parmênides em tais reflexões, pois esse filósofo pré-socrático é o que aponta para a unicidade e/ou universalidade do ser, assim como aponta as limitações de teorias fundamentadas na realidade sensível.

Após essa explicação geral do contexto e do objetivo da filosofia platônica, Danilo Marcondes destaca o foco do capítulo: compreender a sua Teoria das Formas e das Ideias. Antes disso ele traça um quadro cronológico dos escritos de Platão, assim como uma breve biografia do filósofo grego. Vamos abaixo descrever a cronologia da obra de Platão, segundo Danilo Marcondes:

  1. Diálogos considerados autênticos (diálogos socráticos entre 399 a.C. até o falecimento de Sócrates), nesta fase se destacam textos como: Apologia de SócratesLaques ou sobre a coragem; Críton ou sobre o dever; República livro I; Lisis ou sobre a amizade etc; 
  2. Diálogos da fase intermediária (diálogos escritos entre sua primeira viagem à Sicília até 389-388 a.C.), nesta fase Platão desenvolve ideias como a Teoria das Formas, elaborando o platonismo e fundando a Academia em 387 a.C; tais textos se destacam: Protágoras ou sobre os sofistas; O Banquete ou sobre o bem; Fédon ou sobre o amor; A República ou sobre a justiça; Fedro ou sobre a alma etc; 
  3. Diálogos da maturidade (crítica à Teoria das Formas), nesta fase se destacam textos como: Teeteto ou sobre o conhecimento; Parmênides ou sobre as formas; O Político ou sobre a monarquia etc; 
  4. Diálogos da fase final destacando-se textos como: Timeu ou sobre a natureza e As leis
  5. Diálogos de autenticidades discutível como: Hiparco, Mino, O Filósofo etc. 
Danilo Marcondes faz uma breve descrição da biografia de Platão, sendo importante destacar aqui alguns poucos pontos. Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., pertencendo a uma família da aristocracia. Inicialmente foi discípulo de Crátilo, um seguidor de Heráclito, e em seguida de Sócrates; convivendo com este nos seus últimos dez anos de vida. Após o falecimento de Sócrates, ele fez viagens para a Sicília e também para Siracusa (aqui com idas e vindas), tendo contato com as filosofias pitagóricas e eleáticas. 

Danilo divide o pensamento platônico em três fases, são elas: 1) Fase inicial em que Platão escreve os chamados "diálogos socráticos", apresentando as ideias de seu mestre; 2) Fase intermediária, quando Platão desenvolve sua própria filosofia com base nas influências que recebeu dos pitagóricos e dos eleáticos, formulando a famosa Teoria das Formas e das Ideias; 3) Fase da maturidade ou final, onde Platão começa a questionar suas próprias ideias após as reflexões construídas na Academia com seus discípulos, apresentando também críticas e distanciamentos do pensamento socrático. Segundo o autor do livro, pode-se afirmar que Platão continuou à filosofia socrática. 

Mas quais as diferenças entre o mestre e o discípulo? A grande diferença entre Sócrates e Platão diz respeito a visão de filosofia e quais as suas potencialidades e/ou limitações. Para Sócrates, a filosofia seria um método de análise onde através do exercício da maiêutica se alcançaria a natureza essencial das coisas. Porém, Platão enxerga limitações na filosofia e que o método da maiêutica por si só não elucida em definitivo a natureza essencial das coisas. A construção de um método deve ser acrescentada pela criação de critérios, segundo os quais tal método deve obediência. O problema é que a natureza essencial das coisas só pode ser conhecida através do desenvolvimento de uma teoria que se preocupe com a natureza dos conceitos e esse teoria seria a das formas e das ideias. Resumindo tais diferenças, podemos afirmar: 
Assim, enquanto Sócrates considerava a filosofia como um método de reflexão que levaria o indivíduo a uma melhor compreensão de si mesmo, de sua experiência e da realidade que o cerca, passando por um processo de transformação intelectual e de revisão e reavaliação de suas crenças e valores, para Platão a filosofia é essencialmente teoria, isto é, a capacidade de ver, através de um processo de abstração e de superação de nossa experiência concreta, a verdadeira natureza das coisas em seu sentido eterno e imutável, de conhecer a verdade portanto (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 57).
E mais,
O conhecimento teórico é necessário e indispensável para o método de análise, precedendo-o e tornando-o possível. É nele que o método se fundamenta. Para Platão é necessário, assim, uma metafísica, entendida como doutrina sobre a natureza última e essencial da realidade, para que se possa definir o tipo de compreensão e de conhecimento que se possa ter desta realidade. A teoria do conhecimento pressupõe portanto a teoria sobre a natureza da realidade a ser conhecida (a metafísica, ou segundo uma terminologia posterior, a ontologia) (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 57).
A consequência imediata de tais ideias é colocar o fazer filosófico distante das experiências imediatas e concretas, aproximando-as de uma perspectiva contemplativa em que a teoria se dirige para o entendimento do abstrato e do ideal. Tais preocupações com o abstrato e o ideal, chamado posteriormente de metafísica, serão vistas em escolas filosóficas posteriores como o Helenismo (especialmente sua corrente Neoplatônica e também no Platonismo Cristão). "Daí se origina o sentido vulgar que o termo "platônico" possui ainda hoje, com a conotação de "contemplativo", como na expressão "amor platônico"" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 57).

Mas ao mesmo tempo que essa filosofia tem um caráter abstrato, ela também tem uma faceta objetiva, prática e/ou universalista. Platão, assim como Sócrates, se preocupa e dedica muito tempo de suas reflexões com a dimensão ética e política do ser. Tais dimensões devem sempre ter um caráter universalista, pois à filosofia deve obediência ao conhecimento verdadeiro. Por exemplo, toda ação humana é movida por escolhas. Ou seja, pode-se ou não aceitar um convite, praticar ou não um ato etc. Mas para Platão, toda escolha humana envolve uma decisão, onde escolhemos uma de várias alternativas. Essa decisão só foi possível ser tomada com base em critérios que adotamos, onde foi preferível optar por uma escolha mais econômica, mais rápida, mais viável etc. E o que fundamenta os critérios que tomamos para avaliar nossas escolhas? Para Platão, o conhecimento. Se o conhecimento determina nossos critérios, decisões e consequentemente escolhas; ele deve ter um caráter universal e não particular. E por quê?
Devem ser universais, isto é, gerais, abstratos, permanentes, para que possam realmente orientar nossa ação, sem que precisemos refazer todo o processo a cada nova decisão. Além disso, os princípios servem para justificar nossas decisões e os atos que realizamos. É este o sentido do racionalismo, que Platão é um dos primeiros a inaugurar. Uma ação é justificada, legítima portanto, quando baseada numa decisão que por sua vez obedeceu a certos critérios que se fundamentam em princípios gerais, em normas de ação. É por serem gerais, universais, por se aplicarem a todos os casos de um determinado tipo e a todos os indivíduos em circunstâncias equivalentes, que são justificados, isto é, estão de acordo com a normal racional, têm um fundamento teórico, e não são arbitrários, aleatórios, casuais, nem estão apenas a serviço do mero interesse individual e imediato. Se assim o fosse, a ação humana seria caótica, incompreensível e seus resultados imprevisíveis (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 58).
Então o objetivo de Platão é a criação de uma teoria que seja um princípio geral regulando, com isso, as nossas ações. A teoria se mostra como uma condição da ação racional humana, visando estabelecer contato com as nossas práticas. Ao mesmo tempo, só se pode avaliar sobre a prática, indo até a teoria. É por isso que a reflexão teórica visa sempre a prática como objeto. Tais questões nortearam Platão na construção da sua principal ideia: a teoria das formas e das ideias.

Antes de entrar na análise da teoria das formas e das ideias, Danilo Marcondes comenta sobre a doutrina da reminiscência. Essa doutrina foi desenvolvida com base na seguinte pergunta: Como conhecer? A doutrina da reminiscência faz parte da tradição inatista da filosofia, ou seja, ela defende a tese de que os homens guardam consigo um conhecimento inato e é justamente ele que norteia o processo de conhecimento. Em suma, "A solução platônica consiste em supor que temos um conhecimento prévio que a alma traz consigo desde o seu nascimento e que resulta da contemplação das formas, às quais contemplou antes de encarnar no corpo material e mortal", sendo "O papel do filósofo, através da maiêutica socrática, é despertar esse conhecimento esquecido, fazendo assim com que o processo tenha início e o indivíduo possa aprender por si mesmo" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 59).

Analisada a doutrina da reminiscência, Danilo Marcondes parte para o entendimento da teoria das formas e das ideias. Para fundamentar sua explicação, ele se baseia em dois textos da obra República, são eles: o Mito da Linha Dividida e Alegoria ou Mito da Caverna. Ambos os textos seguem o mesmo caminho, "a discussão do mesmo tema, o conhecimento, seus diferentes graus ou tipos e o processo pelo qual pode ser alcançado através da ascensão da alma a uma realidade superior, visando com isso caracterizar o governante ideal como aquele que conhece a ideia de Justiça" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 60).

A dialética é vista em ambos os textos pois, para Platão, a realidade a ser refletida é vista sob uma perspectiva dualista, incluindo o mundo das ideias ou formas e o mundo concreto ou físico. A relação entre esses dois mundos será o objeto das reflexões platônicas. O mito da linha dividida, consiste em um diagrama composto de duas linhas paralelas, com a primeira representando o real e a segunda o ideal. Platão visa classificar qualitativamente os vários tipos de conhecimento, seriam eles:

  1. Mundo Inteligível (A) - Aa: conhecimento (noesis) das formas pelo dialético; Ab: conhecimento (dianoia) dos objetos matemáticos pelo geômetra. 
  2. Mundo Material (B) - Ba: conhecimento (pistis) dos objetos naturais; Bb: visão (eikasia) de imagens das coisas concretas pelo homem comum. 
O Bb, segundo Platão, representaria o mundo material ou visível que é composto de objetos naturais, concretos, mutáveis e imperfeitos. Nossa relação com o mundo Bb seria por intermédio de imagens, sombras, reflexos que o homem comum tem do mundo natural. E mais, "Do ponto de vista da atitude do homem comum, e para o seu dia, talvez esse tipo de contato com a realidade natural seja suficiente, mas não constitui propriamente conhecimento, exceto se o entendermos em um grau muito inferior" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 61), tratando-se do domínio da opinião (doxa) e por isso imperfeita e parcial. Já o Ba consiste em um "conhecimento" mais elaborado sobre o mundo material, incluindo as chamadas ciências naturais como a botânica e a zoologia. Trata-se de uma relação mais elaborada com o mundo material em comparação com o Bb, sendo possível a construção de classificações que tornam as coisas mais claras. Entretanto, ainda se trata de uma esfera imperfeita do conhecimento, pois é dependente da percepção sensível e material dos homens. 

Vamos agora para a análise do mundo inteligível. A esfera Ab, representa uma ruptura com a Bb e a realidade natural passa a ser explicada com base em formulações abstratas, eternas, imutáveis etc. O principal conhecimento desenvolvido pela esfera Ab é a geometria. Porém, embora seja um conhecimento abstrato da realidade natural, a geometria ainda guarda relação com o mundo sensível. Isso porque, segundo Danilo Marcondes, "As figuras geométricas são imagens que traçamos das entidades ideais: o triângulo, o quadrado, o círculo. São contornos, formas abstratas de figuras concretas, assim como a planta de um arquiteto representa abstratamente um prédio concreto. Portanto, já atingimos um nível de abstração, mas ainda mantemos alguma relação com o sensível. Platão dava grande valor à geometria como preparação para a filosofia, caminho para o raciocínio puramente abstrato que é o do filósofo" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 61). Foi por isso que Platão mandou escrever na porta da sua Academia, o seguinte dizer: "Não passe destes portões quem não tiver estudado geometria". Por fim, a esfera Aa seria a etapa superior do conhecimento. É quando o homem passa a conhecer a realidade inteligível, quando o conhecimento sobre a realidade torna-se abstrato, genérico e básico. Nesta etapa, finalmente, podemos compreender o todo. Mas "Platão é deliberadamente vago ao caracterizar essa realidade e nosso modo de apreendê-la, como se não fosse possível explicitar isso no discurso comum; mas precisasse ser vivido" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 62).

O mito da caverna complementa e exemplifica o mito da linha dividida. Danilo Marcondes divide a explicação sobre o mito da caverna em três partes. Na primeira parte, ela descreve o fundo da caverna, visto como o mundo material e sensível. No fundo da caverna se encontram prisioneiros, acorrentados e imóveis. Desde a infância, estão todos presos por hábitos, costumes e preconceitos dos mais diversos; enxergando a realidade através de sombras. Os prisioneiros mostrados por Platão somos nós, homens imersos na imperfeição, incompletude e limitação. Ou seja, é "O homem condicionado e limitado, pelo seu modo de vida repetitivo, que não o deixa pensar por si próprio, só consegue ver as sombras" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 65)

Ainda temos a atividade dos sofistas, sendo suas ideias representadas pela fogueira que se localiza do outro lado da caverna. Nessa fogueira, fonte de luz que projeta sombras para o fundo da caverna, se encontram homens que carregam objetos nas mãos projetando a imagem desses objetos para o fundo da caverna. Seria uma espécie de teatro dos fantoches, onde "Esses homens no outro lado da caverna são os sofistas e políticos atenienses que manipulam as opiniões dos homens comuns e são os produtores de ilusão tal como Platão os caracteriza no diálogo O Sofista(MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 65).

A segunda parte examina o processo de libertação de um prisioneiro. A pergunta central que se faz é: o que possibilitou sua libertação? Essa libertação para Platão é um processo difícil e até mesmo doloroso, onde o homem não é forçado a sair da sua condição de prisioneiro, mas sim opta pela saída após uma luta interna entre duas forças: a força do hábito versus a força do eros. Ou seja, o prisioneiro é libertado por ele mesmo e não por uma força externa. Vejamos como Danilo Marcondes explica o conflito entre essas duas forças: 
A força do hábito faz com que o prisioneiro se sinta confortável na situação em que se encontra desde sempre e que lhe é mais familiar. A força do eros, entretanto, faz com que ele se sinta insatisfeito, frustrado, infeliz, e busque uma situação nova. Esse conflito é o motor da dialética, ou seja, do processo de mudança e transformação que resulta da oposição entre as duas forças e que faz com que o prisioneiro saia da situação em que se encontra (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 66).
O prisioneiro vai adaptando seu olhar e caminha em direção à luz, saindo da caverna. Antes, ele perpassa todo circuito das etapas do conhecimento vistas no mito da linha dividida, até sair por completo da caverna e enxergar o sol. O sol em Platão representa o bem, ou seja, o grau máximo e universal da realidade. Sendo assim,
O sol seria assim fonte de toda a luz, ou seja, de toda a realidade, e mesmo as sombras na caverna dependem, em última instância, da luz do Sol: sem luz não haveria sombra. Ao chegar à visão do Sol o prisioneiro completa o processo de transformação de sua situação inicial, passa a possuir o saber porque vê diretamente a fonte de toda a luz: o ser, a realidade. Compreende assim a totalidade, e do ponto de vista da dialética isso significa que agora possui o saber, pois tem a visão do todo, superando portanto a visão parcial das etapas anteriores (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 66-67).
Ademais, a terceira e última parte do texto exemplifica o papel pedagógico do filósofo. Segundo Danilo, "Essa é a terceira parte do texto, em que Platão descreve a chamada dialética descendente, a volta à caverna, contraponto da parte inicial, a dialética ascendente, em que o prisioneiro sai da caverna para a região superior" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 67). Mas podemos indagar: por que o prisioneiro recém-liberto, deve retornar para a caverna? Eis então o papel pedagógico do filósofo (ex-prisioneiro), pois não se contentando a conhecer o saber absoluto e universal, decide aceitar sua missão político-pedagógica ao rumar de volta a caverna com o intuito de esclarecer seus antigos companheiros de prisão. O papel do filósofo é, detendo o conhecimento verdadeiro, instigar outras pessoas a procurarem o mesmo caminho; mesmo correndo risco de vida, como foi o caso de Sócrates. Essa missão político-pedagógica, termo usado por Danilo Marcondes, seria seguir o dilema de "comportar-se com sabedoria, seja na vida prada, seja na vida pública" (MARCONDES, Danilo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 67).

Capítulo 05 - Aristóteles e o sistema aristotélico - A. A crítica a Platão; B. A metafísica de Aristóteles como concepção de realidade; C. O sistema aristotélico; D. Análise de texto da Metafísica.




















quarta-feira, 18 de março de 2020

Florestan Fernandes: vida e obra



  • Sobre o autor: Laurez Cerqueira é um baiano nascido em uma família humilde de camponeses. Até os 18 anos trabalhou na lavoura e após terminar o ginásio, rumou para a cidade de São Paulo onde trabalhou na construção civil. Depois, transferiu-se para Brasília onde exerceu diversas atividades como: faxineiro, datilógrafo, auxiliar administrativo etc. Depois de anos militando politicamente fora do país, retorna a Brasília para cursar Letras. Foi assessor parlamentar da primeira bancada do PT na Câmara dos Deputados e chegou a trabalhar com Florestan Fernandes. Com a chegada do PT ao poder, Cerqueira assumiu o cargo de assessor do líder do governo, Aloísio Mercadante. Hoje escreve regularmente artigos de opinião. 

Florestan Fernandes: vida e obra - Laurez Cerqueira - Editora Expressão Popular


Capítulo 01 - De "Vicente" a Florestan

Segundo o próprio Florestan, ele não seria o sociólogo que foi sem as experiências que passou durante sua vida. Por conta das dificuldades financeiras, ele acabou tornando-se um "aprendiz de sociólogo", sofrendo na pele as mazelas sociais de um país subdesenvolvido. Nascido em julho de 1920, Florestan foi oriundo de uma família pobre. Sua mãe, imigrante portuguesa, chegou ao Brasil para trabalhar nas lavouras no interior paulista. O pai de Florestan morreu cedo, vítima de uma gripe espanhola, mas foi um colono português que casou com a ainda muito jovem Maria Fernandes. Com filho e sem marido, Maria decidiu sair do interior e arriscar a vida na cidade grande. Em São Paulo, passou a prestar serviços domésticos para a família Bresser, da alta classe média paulista. 

Após alguns desentendimentos, Maria decide sair da casa dos Bresser. Mesmo assim, Florestan recebia visitas da madrinha (a ex-patroa de sua mãe) e chegou a morar um período na casa dessa família, mas logo sairia de lá após a família Bresser propor a Maria que entregasse Florestan. Sua saída da casa dos Bresser marcou uma nova etapa na vida de Florestan, o trabalho infantil. Ele engraxou sapatos, encerou pisos, trabalhou em uma fábrica de colchões, entregou compras em domicílio etc. Em suma, trabalhou em diversas atividades, privando-se do direito de ser criança. 

Seu trabalho na infância, chegando a adolescência e idade adulta, fez Florestan alargar sua socialização e entender in loco a dura realidade vivida pelo povo brasileiro. Essas experiências repercutiu na sua produção teórica. Mesmo longe das salas de aula, Florestan alimentava o hábito pela leitura. E foi exercendo a profissão de garçom que, após incentivo de um cliente que o indicou para um curso supletivo (chamado de madureza), servindo de preparatório para à faculdade.

Florestan começou no madureza como garçom, mas terminaria o curso como funcionário de uma empresa de produtos químicos, a Novoterápica. Após a conclusão do curso, foi promovido para o cargo de chefe de sessão de vendas de artigos dentários, então o cargo mais alto que poderia alcançar na empresa. O fato interessante é que ele escolheu o curso de Ciências Sociais por falta de opção, pois seu desejo era cursar Química. Porém, por ser um curso realizado em período integral, Florestan não teria condições financeiras de se manter. Em sua escolha por Ciências Sociais, a fala de um professor que o chamou de "reformador social" por seu jeito quieto, compenetrado e isolado; pesou e ele acabou realizando sua inscrição para o curso. 

Prestando vestibular em 1941, na época, o processo seletivo incluía um sorteio de assuntos com o candidato tendo que responder perguntas dos professores. O texto sorteado para Florestan foi um de Durkheim, chamado "Da Divisão do Trabalho Social". As perguntas eram feitas em francês (na banca de dois professores, um deles era Roger Bastide), o que fez Florestan solicitar que fosse em português, pois não entendia outra língua. A solicitação foi aceita e Florestan foi aprovado de uma seleção com 29 candidatos e apenas 06 exitosos. Começava ali a carreira de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. 

Capítulo 02 - Construir a sociologia científica e interpretar o Brasil

Por sua origem de classe, Florestan sofreu dificuldades e discriminações na USP. Com trajes simples, precisava conciliar os estudos com o trabalho em que andava pela cidade vendendo produtos. Sua principal amizade no período foi com Antonio Candido que conheceu Florestan em 1944 onde ele era assistente da cadeira de Sociologia e Florestan aluno. No mesmo ano, Florestan se formou em Ciências Sociais e tornou-se segundo assistente da cadeira de Sociologia. Com o tempo, a hierarquia entre os assistentes foi retirada e eles passaram a ter que atuar de forma integral, aprofundando os estudos com os alunos. 

Candido lembra da rigidez de Florestan nessa época, sempre visando debater com profundidade os textos. Pontual, lia mais de 10 horas por dia e conseguia absolver com facilidade o conteúdo. No final do expediente, enquanto Candido ia para casa, Florestan rumava para a Biblioteca Municipal onde estudava até às 23 horas. Nessa época em que era assistente, Florestan iniciou a sua amizade com Fernando Henrique Cardoso, quem ele convenceu a seguir carreira acadêmica em Sociologia. 

A partir daí, a ascensão de Florestan no meio acadêmico foi meteórica. Em 1953 passou para a livre-docência, substituindo o professor Roger Bastide. Logo nomeou FHC como seu assistente. Preocupado com seu pupilo, Florestan criticava as atuações de FHC no movimento estudantil, pedindo foco nas atividades acadêmicas. Naquela época, o futuro marxista era bastante influenciado pela sociologia funcionalista de Durkheim. 

Retornando ao assunto da militância política, Florestan se mostrou afastado durante basicamente toda sua juventude. Seu foco maior era em seu crescimento enquanto acadêmico. Apesar disso, manteve relações pontuais com o universo político da sua época. Crítico do sectarismo do PCB, aproximou-se de Hermínio Sacchetta, militante comunista trotskista, próximo da IV Internacional. Durante o Estado Novo, passou a militar no Partido Socialista Revolucionário (PSR). Mas diante de sua fraca participação, se afastou das atividades partidárias sob anuência do Sacchetta, então principal liderança do partido. Sua militância só será vista no final de sua carreira. 

Sobre o "primeiro Florestan", influenciado pelo funcionalismo durkheiminiano, ele tornou-se mestre em 1947 com a obra A organização social dos Tupinambás e doutor em 1951 com a tese A função social da guerra na sociedade Tupinambá. Como vimos acima, se tornaria professor da USP em 1953. Sobre seu mestrado e doutorado, as produções receberam elogios do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sobre a importância de tais obras, diz Laurez: 
Florestan conseguiu realizar essa pesquisa a partir do relato dos cronistas e viajantes reconstituindo a organização e o funcionamento da sociedade Tupinambá, extinta no século 17. Até então, um trabalho dessa natureza era considerado impossível de ser feito, segundo o consenso geral da Antropologia. Alguns antropólogos conseguiram estudar certos aspectos dos Tupinambá, como a religião, a cultura material, mas a organização social sequer era cogitada. Com métodos científicos disponíveis e recursos desenvolvidos por ele, resgatou a organização daquela sociedade a partir do mesmo material utilizado pelos paleontólogos, biólogos e antropólogos que estudavam aspectos particulares dela (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 48).
Já o "segundo Florestan" surge a partir dos anos de 1950, após os estudos raciais desenvolvidos sob parceria com Roger Bastide. A pesquisa, patrocinada pela Unesco, causou impacto na USP, pois os pesquisadores buscaram trazer os próprios negros para dentro da universidade. Com Bastide, escreveu Brancos e negros em São Paulo, em 1953. E em 1964, após o golpe militar, escreveu A integração do negro na sociedade de classes. Sobre essa obra, diz Laurez:
Surgido dessa fase de intenso labor intelectual de Florestan e do debate que ocorreu na época, principalmente sobre a obra de Gilberto Freyre e outros autores da mesma linhagem teórica, este livro colocou em evidência a violência, o preconceito e a segregação contra os negros como elementos fundamentais na formação da sociedade brasileira. Florestan subverteu a visão contemplativa sobre a escravidão que havia a partir da "casa grande" em relação à "senzala", uma visão que colocava em relevo a miscigenação como fator indutor da "democracia racial". Ele contestou essa tese, colocou a questão racial na perspectiva do oprimido, a partir da "senzala" em relação à "casa grande" sem, contudo, mistificar a senzala (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 53).
Esse trabalhou passou a ser uma referência no debate sobre raça no Brasil. Essas pesquisas sobre as relações raciais no país, tirou a neutralidade que Florestan procurava em sua "primeira fase" funcionalista. A partir daí, Florestan deixou cada vez mais claro a influência do marxismo em suas produções. Seus posicionamentos políticos de cunho marxista, fez Florestan ser um ferrenho defensor da autonomia da universidade, recusando financiamentos privados a suas pesquisas como as propostas pela organização Rockefeller. Assim como rechaçava financeiros privados, Florestan recusava formar seguidores. Sua intenção era desenvolver um sólido grupo de intelectuais que pensassem o Brasil sob um olhar científico e sociológico. 

O segundo Florestan, passou a ter uma grande preocupação em entender a nossa formação histórica. Do resultado dessa procura, temos o conceito de "capitalismo dependente", ideia chave para o entendimento do seu pensamento. Essa ideia foi melhor desenvolvida na obra Sociedade de classes e subdesenvolvimento onde Florestan: "desorganizou toda uma visão elitista e senhorial da sociedade e mostrou que a sociedade brasileira não era formada só de classes, mas de estamentos, classes e castas. Mostrou também que o subdesenvolvimento, nas sociedades capitalistas dependentes, não é apenas fruto de uma contingência ou uma condição transitória. As universidades, por exemplo, dizia Florestan, foram montadas pelas oligarquias para as oligarquias e elas, na sua grande maioria, ainda reproduzem "o modelo autocrático-burguês"" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 61). 

Para chegar a tais ideias, Florestan foi estudar a nossa formação histórica e dela retirou os seguintes pontos: a) a colonização brasileira foi parte do desenvolvimento capitalista na Europa, sendo a sociedade brasileira uma "parte da expansão do mundo ocidental e do papel que nela tomaram os portugueses" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 62); b) a independência em 1882 não significou mudanças profundas no país, logo, "Os laços coloniais apenas mudaram de caráter e sofreram uma transferência: deixaram de ser jurídico-político, para se secularizarem e se tornarem puramente econômicos; passaram da antiga Metrópole lusitana para o principal centro de poder do imperialismo econômico nascente" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 63). Na política, a independência representou mudanças ao extinguir a expropriação colonial que dominava de fora o excedente econômico; assim como entregou para as elites nativas o que Florestan chamou de "poder político administrativo". Entretanto, no plano econômico, as estruturas coloniais permaneceram praticamente intactas, mesmo assim, "O controle colonial puramente econômico tinha de basear-se na existência, no funcionamento regular e no crescimento progressivo de instituições novas. Por essa razão, a Independência, malgrado seu significado ambíguo no plano econômico, inaugura a Idade Moderna do Brasil  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 63-64); c) o choque desses dois tipos de colonialismos que existiam no Brasil, impediam que a independência tivesse um caráter autônomo, do ponto de vista econômico. Porém, ao mesmo tempo, as antigas e arcaicas instituições da sociedade colonial, entravam em declínio. 

Como conclusão de tais análises, Florestan afirma que não é possível o desenvolvimento pleno do capitalismo em países subdesenvolvidos pois, "as nações politicamente 'livres' mas economicamente 'dependentes', que surgiram como produtos históricos da 'expansão do mundo ocidental moderno', não evoluíram para o capitalismo por causa das estruturas econômicas vinculadas à economia exportadora das plantações"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 65). Logo, a modernização vista em países como o Brasil tem um teor superficial. Um exemplo dessa modernização superficial dado por Florestan é o caso do liberalismo no Brasil, modificado internamente para atender a defesa da escravidão e de práticas patrimonialistas, herdadas da antiga estrutura colonial. É por isso que, segundo ele, formamos uma sociedade genuína e singular que une aspectos modernos com práticas antigas. 

Outra importante obra de Florestan citada pelo autor desta biografia, é A revolução burguesa no Brasil, onde o principal objetivo do sociólogo paulista era analisar o perfil da classe dominante brasileira. Para ele, a burguesia local era parte e estava associada a burguesia internacional, sendo a autonomia política dos "de baixo" o único caminho para transformar o país. Por fim, Laurez traz a atuação política de Florestan em defesa da escola pública. Nos anos de 1960, junto com intelectuais como Anísio Teixeira, Fernando Azevedo etc., ele defendeu as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LBD), aprovada pelo presidente Jango. Esse projeto, segundo Florestan, obrigava o "Estado burguês" a assumir suas próprias contradições, tendo a tarefa de investir e garantir educação pública e gratuita para todos os brasileiros. Sobre suas ideias relativas à educação, encerra Laurez: 
Florestan defendia teses inovadoras, queria a universidade autônoma, democratizada, aberta ao aproveitamento dos talentos, com garantia de acesso a todos; produção de ciência e tecnologia para promoção do desenvolvimento econômico e modernização da sociedade, de forma justa. Na campanha, Florestan alertava em suas palestras a não se confiar na competência dos "populistas" no cumprimento da função do "Estado educador". Dizia-se convencido da importância decisiva da universidade no processo de democratização da sociedade, na reestruturação do país e afirmação da soberania nacional  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 75).
Capítulo 03 - 1964: um golpe no sonho, um corte na produção intelectual acadêmica

Neste terceiro capítulo, Laurez Cerqueira debate a vida de Florestan após o golpe militar de 1964. Essa intervenção golpista, acabou representando uma derrota para o projeto de universidade que Florestan imaginara para o país. Suas ideias iam em direção de uma autonomia universitária, visando o desenvolvimento da pesquisa científica. 

Segundo Cerqueira, o nome de Florestan esteve presente na primeira lista de professores que deveriam ser expulsos da universidade. Ademar de Barros, então governador de São Paulo e responsável pela publicação e execução desta lista, não expôs o nome de Florestan. Porém, meses depois, o sociólogo paulista seria preso nas dependências da USP por proferir falas de protesto à ditadura. Ao coronel responsável pela operação que o prendeu, teria dito: "A principal virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é a rebeldia crítica; por isso, eu não devo aceitar essa situação passivamente"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 94).

Em 9 de setembro de 1964, Florestan divulga uma carta, então estampada nos jornais, em que criticava o golpe militar e reafirmava seus posicionamentos. Se defendendo das acusações espúrias sobre atividades científicas, disse: "Não somos um bando de malfeitores. Nem a ética universitária nos permitiria converter o ensino em fonte de pregação político-partidária" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 95). E concluiu:
Como no passado, continuo e continuarei fiel às mesmas normas que sempre orientaram o meu labor intelectual, como professor, como pesquisador e como cientista. Não existem dois caminhos na vida universitária e na investigação científica. A liberdade intelectual, a objetividade e o amor à verdade resumem os apanágios do universitário e do homem de ciência autênticos. Estamos permanentemente empenhados numa luta sem fim pelo aperfeiçoamento incessante da natureza humana, da civilização e da sociedade, o que nos leva a perquirir as formas mais eficientes para aumentar a capacidade de conhecimento do Homem e para elevar sua faculdade de agir como crescente autonomia moral (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 97).
Florestan permanece no Brasil, criticando a reforma universitária proposta pelo MEC em consonância com o sistema universitário norte-americano, até a instauração do AI-5, quando teve sua aposentadoria decretada pelos militares. Assim, Florestan parte para o exílio no Canadá, onde tornou-se professor-titular da Universidade de Toronto. Após três anos de exílio em solo canadense, ele decide retornar ao Brasil para continuar sua luta contra à ditadura. 

De volta, Florestan viu um verdadeiro boicote ao seu trabalho. Chegou a receber, em 1972, um convite para integrar o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), mas por conta do financiamento da Ford Foundation pelo grupo, recusou a contribuir. Os anos de 1970 representou para Florestan um exílio dentro do próprio país, sendo isolado do ambiente acadêmico sem exercer suas atividades docentes, até que Dom Paulo Evaristo Arns o convidou para lecionar da PUC-SP. 

Foi nesta fase que o acadêmico e professor se misturou com o militante; fato impensável no início de sua carreira. Após seu retorno do exílio, Florestan se aproxima cada vez mais do espectro político da esquerda, sendo uma das figuras a lutar pela redemocratização do Brasil. A partir dos anos de 1970, várias obras foram publicadas pelo Florestan cientista, professor e militante atuante. Entre essas obras, podemos citar: O negro no mundo dos brancos (1972); A universidade brasileira: reforma ou revolução? (1975); Da guerrilha ou socialismo: a Revolução Cubana (1979). É também dessa fase mais radical que Florestan passa a escrever artigos e ensaios sobre conjuntura política internacional; tendo escrito sobre a América Latina, a África, a URSS, a Albânia, a Espanha franquista e Portugal salazarista. Com tais análises internas e externas, ele passa a ser uma das referências intelectuais dos movimentos de esquerda no Brasil. 

Capítulo 04 - O cientista militante e a esperança no socialismo

No final dos anos de 1970, surge o PT, sob liderança de Luiz Inácio Lula da Silva. O partido logo causou simpatias em Florestan que logo se filiaria à organização. Antes que entrasse, teria conversado pessoalmente no Lula afirmando que só entraria no partido, caso o mesmo definisse com clareza um programa tendo como núcleo a classe trabalhadora. Apesar de não achar o PT como um partido dos seus sonhos, Florestan adentrou no partido com a esperança de que ele renovasse a cultura política do país. Em sua obra O PT em movimento - contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores, citado por Laurez, diz o sociólogo sobre as condições que deram origem a esse novo partido:
O que deu origem ao PT? A inexistência de um partido dos de baixo que pudesse atuar, simultaneamente: na criação de uma democracia que conferisse peso e voz aos trabalhadores e aos oprimidos na atual sociedade de classes, realizando tarefas políticas monopolizadas pelos de cima; abria a ordem existente para reformas sociais de interesse específico dos trabalhadores e os oprimidos; formar as premissas históricas de uma revolução socialista. O PT, desprendeu-se quer do populismo dos partidos das classes dominantes, quer do oportunismo de partidos de esquerda, que se conformavam com os papéis de cauda da política da burguesia, pseudoprogressista e pseudodemocrática (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 121).
Sobre Lula, principal liderança do partido, Florestan nutria grande respeito; considerando-o a maior liderança dos de baixo na histórica recente do Brasil. Apesar da ausência de formação acadêmica, considerava o líder sindical pernambucano um intelectual orgânico da classe trabalhadora, sendo um operário construtor de ideias. E foi Lula o responsável por convencê-lo a trocar a atividade docente pela atuação política formal. Em 1986, Florestan aceita ser candidato a deputado constituinte, inaugurando uma nova fase de sua vida. Sua candidatura recebeu apoio de diversas personalidades do universo acadêmico e político como: Luiz Carlos Prestes, Jacob Gorender, Miza Boito, Octavio Ianni e Vladimir Sacchetta (filho de Hermínio Sacchetta, histórico militante trotskista e amigo de Florestan desde os anos de 1940). Com o apoio desses e outros nomes, o desempenho de Florestan foi excepcional:
No final, Florestan foi eleito com 50.024 votos, o quarto deputado mais votado do partido. O mapa eleitoral dele mais parece uma constelação. Apareceram votos espalhados por todo o Estado, em localidades onde não se imaginava haver apoiadores (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 127).
O capítulo é encerrado com Laurez relatando uma história interessante: as dívidas que Florestan contraiu por causa da campanha, foram pagas pelo amigo Antonio Candido, que fez questão de ajudar seu antigo e leal amigo.

Capítulo 05 - O professor Florestan Fernandes no Congresso Constituinte

Em 1º de fevereiro de 1987, Florestan assume o cargo de deputado constituinte em Brasília, herdando o gabinete de Eduardo Suplicy, eleito senador. Laurez descreve a atmosfera daquele momento como apreensiva para aqueles que retornavam das lutas, do exílio ou dos cárceres; mas tranquilidade para aqueles parlamentares alinhados ao governo Sarney. Diante disso,
Nas reuniões que precederam a instalação do Congresso Constituinte, o campo da esquerda chegou à conclusão de que a "transição lenta, gradual e segura", conduzida pelos setores aliados aos militares, dava sinais claros de que havia risco de o Brasil vir a ter uma Constituição muito aquém das necessidades reais. Os conservadores eram maioria no Congresso e o campo chamado "progressista", que agregava forças dos partidos da esquerda e de parte do centro era, numericamente, bastante inferior. Havia uma convicção generalizada de que a Assembléia se inclinaria por construir, não uma ordem democrática, mas um regime, uma ordem jurídica, para dar cobertura ao modelo econômico e político vigente. A saída vislumbrada por esse grupo seria garantir, no regimento da Constituinte, a participação direta do movimento social. Sem a pressão popular, havia risco de não se conseguir as conquistas desejadas (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 131-132).
A transição democrática deveria ser observada pelos militares, esse era o posicionamento do governo Sarney e dos parlamentares conservadores na Assembleia Constituinte. Segundo Paulo Brossard, então ministro da Justiça, as Forças Armadas deveriam manter seu papel na manutenção da ordem interna e com isso esperava "uma Constituinte para o Brasil de sempre, partindo do Brasil de hoje" (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 132). Um dia após assumir seu cargo, Florestan escreveu um artigo para o jornal Folha de S. Paulo, intitulado "Os trabalhadores e a Constituição", em que denunciava as negociações do governo para deter o controle da elaboração da nossa constituição. Como um dos deputados de esquerda com maior destaque, Florestan sempre destacou a falta de representatividade dos de baixo no Congresso Constituinte. Por essa razão, estava preparado para os embates e não alimentava ilusões com o processo. Entretanto, acreditava que o momento era importante, pois abria espaço para que os históricos dilemas da sociedade brasileira fossem debatidos sendo uma boa oportunidade de expor as contradições da elite nacional.

Apesar de achar que a Constituinte dava a chance da burguesia brasileira substituir o "capitalismo atrasado" vigente no país, antes que esse entrasse em colapso e a crise econômica levasse o país para a barbárie; Florestan atestava a incompetência desta mesma burguesia em lidar com os problemas-chaves do país. Segundo ele:
Há uma tradição brasileira de manipulação que, nesses momentos, sempre conjuga conciliação e reforma. Mas nunca há reforma, é sempre conciliação conservadora. Há muita retórica, os que detém o poder fazem concessões e, assim, respiram e seguram as rédeas do poder (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 138).
Para combater essa conciliação conservadora, o campo progressista tinha que prezar pela união. Essa aliança progressista abarca siglas como o PT, o PCdoB, o PSB, o PDT, o PMDB e o PCB (que se transformaria em PPS). Ele logo percebeu que, apesar dessa união, os setores progressistas não conseguiriam vencer facilmente as forças da reação que se encontravam bem articuladas. Daí sua denuncia sobre a real natureza ideológica da burguesia brasileira:
O nosso capitalista é um capitalista ainda submetido ao imperialismo, nossa burguesia é uma burguesia covarde, nesse plano, e ela é aliada ao grande capital estrangeiro, ela é serviçal do imperialismo e, portanto, ela não tem coragem de enfrentar as grandes revoluções sociais que o capitalismo permite  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 139).
Diante desse cenário, Florestan começa a perceber e a escrever a importância de combinar reformas e revoluções; tendo a atuação parlamentar o papel de incitar reformas sociais bloqueadas pelas classes proprietárias. É por isso que a atuação parlamentar de Florestan era no sentido de não ficar preso ao nicho petista, alargando o diálogo com outros partidos e figuras políticas. Sua atuação em Brasília foi marcada pela crítica a superficialidade dos debates e consequente profundidade que buscava tratar os assuntos, o que o deixou perplexo em como a lógica da esperteza imperava nas relações políticas entre os parlamentares.  Ainda sobre sua atuação, afirma Laurez:
Deu atenção especial ao movimento nacional pela educação pública e gratuita, participando ativamente da articulação do Fórum Nacional da Educação, que se transformou na base de apoio para garantir as reivindicações do movimento de professores e estudantes. Florestan não só foi o porta-voz do movimento no Congresso Constituinte, mas também um militante ativo que se desdobrou em discursos, artigos de combate nos jornais e palestras nos mais variados fóruns em viagens pelo país  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 143).
Florestan foi árduo defensor da educação pública, laica, gratuita e com qualidade. Além disso, defendeu com afinco a autonomia universitária. Apresentou 96 emendas constitucionais, sendo 34 aprovadas. Laurez cita algumas emendas dele aprovadas, como a que definia a educação como um direito inalienável do cidadão brasileiro, sendo um dever do Estado garanti-lo. Outra foi a que garantia atendimento em creches e pré-escolas a todas as crianças de zero a seis anos de idade.

O ensino em língua portuguesa, mas respeitando as línguas nativas utilizadas por comunidades indígenas, também foi obra de sua atuação parlamentar; assim como a garantia constitucional da autonomia universitária que abarcava "autonomia didático-científica, administrativa e financeira, associa o ensino à pesquisa, à extensão e - o mais importante - à democratização efetiva da universidade, através da autogestão, do estabelecimento de critérios públicos e transparentes, com a participação dos docentes, alunos e funcionários"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 154). A emenda que igualava o direito ao lazer ao direito à educação, foi outra defendida por Florestan.

Como cientista de exitosa carreira, "Florestan conseguiu aprovar uma emenda que assegurou aos Estados e Distrito Federal a vinculação de parcelas das receitas orçamentárias a entidades públicas de fomento à pesquisa científica e tecnológica para o desenvolvimento dessas áreas. Uma outra de sua autoria, também aprovada, incumbe o Estado da promoção do desenvolvimento científico, da autonomia e capacitação tecnológica"  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 155). Reivindicação histórica, o 13º salário para aposentados e pensionistas foi outra emenda dele aprovada, quebrando o preconceito contra os idosos. A emenda que garantia direitos iguais a filhos adotivos, também foi criação de Florestan. Em suma, a atuação parlamentar de Florestan estava em diálogo com demandas históricas de variados movimentos sociais, principalmente, os envolvidos com a defesa da educação. Aprovada a nova constituição em 1988, as atenções se voltavam para as eleições presidenciais do ano seguinte.

Apoiando a frente de esquerda em torno da candidatura Lula, viu Fernando Collor de Melo vencer o pleito no segundo turno após forte apoio recebido pelos principais veículos de comunicação de massa do país. Ainda em 1989, polemizou em Brasília ao sair em defesa da China no caso envolvendo a Praça da Paz Celestial, em Pequim. Disse, em profundo discurso em plenário, que os chineses estavam buscando superar suas contradições e alertou para o fato de que em uma situação revolucionária não se deveria excluir os meios de autodefesa, podendo esses ser pacíficos ou violentos. Tais meios, diria ele, são vistos tanto entre os defensores da revolução, quanto entre os da contra-revolução. Assim Florestan concluiu seu discurso em plenário:
A China com a vinculação que possui, poderá ou não se manter comunista. Não cabe à esquerda tomar a posição da direita. Eu estava indignado com os colegas, inclusive do PT, que foram rivais ali e piedosamente iam atrás da ordem. Ou você é socialista ou você não é socialista, o que vale tanto para socialista reformista quanto para socialista revolucionário", concluiu Florestan em seu discurso  (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 164).
Capítulo 06 - Compromisso e coerência

Neste último capítulo, Laurez traz o segundo mandato de Florestan na Câmara dos Deputados até sua morte, em 1995. Mesmo com a saúde já debilitada, Florestan aceita o desafio de lutar pela elaboração da LDB. Foi eleito para o cargo novamente com 27.676 votos, tendo novamente à educação como trincheira principal. Sobre o plebiscito que envolvia o sistema de governo a ser escolhido pela população, afirmou:
Minha posição é difícil porque, como socialista, sou, teoricamente, parlamentarista. Agora, como sociólogo, e especialmente como sociólogo que estudou a sociedade brasileira desde a ocupação portuguesa, sou levado a pensar que o presidencialismo ainda representa uma esperança entre nós e que o parlamentarismo seria, ao contrário do que sucedeu na Europa, um regime de governo que iria facilitar ainda mais a concentração do poder político (CERQUEIRA, Laurez. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 171).
Porém, sua atuação parlamentar foi tímida por conta da piora do seu quadro clínico, obrigando-o a realizar procedimentos cirúrgicos. Necessitado de um transplante de fígado, Florestan o realizou no Hospital das Clínicas, após recusar a proposta de FHC em se tratar nos EUA. Seis dias após o transplante, Florestan veio a óbito após um erro médico que colocou ar em vez de sangue em seus vasos sanguíneos dos pulmões, coração e cérebro. Foi velado no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Seu velório reuniu familiares, intelectuais, lideranças petistas e a primeira-dama, Ruth Cardoso, sua ex-aluna nos anos de 1950, que representou o então presidente FHC. Ao lado do seu caixão, duas bandeiras vermelhas: uma do PT e outra do MST, simbolizando as lutas dos de baixo que Florestan tanto defendeu durante sua vida.




























sábado, 14 de março de 2020

Caio Prado Júnior - Uma Biografia Política



  • Sobre o autor:  Luiz Bernardo Pericás nasceu no Rio de Janeiro, em junho de 1969. É formado em História pela Universidade George Washington, concluiu doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e o pós-doutorado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Entre suas obras, podemos citar: a) Che Guevara e o debate econômico em Cuba; b) José Carlos Mariátegui: Revolução Russa, história, política e literatura; c) Caio Prado Júnior: uma biografia política. Com essa última obra, Pericás ganhou o prêmio Jabuti em 2017 na categoria biografia. Também graças a essa obra, ganhou o prêmio Juca Pato de intelectual do ano em 2016. Atualmente é professor de História Contemporânea da USP. 


Caio Prado Júnior - Uma Biografia Política - Editora Boitempo


Introdução - Nesta introdução, Pericás busca traçar uma história da inserção e/ou desenvolvimento do pensamento marxiano nas Américas. A chegada dos correligionários de Marx e Engels na América, remonta dos anos após as revoluções liberais que ocorreram na Europa a partir de 1848. Os primeiros chegaram nos EUA e eram emigrados alemães em busca de outros ares. Entre os primeiros homens preocupados em analisar a América, com base no pensamento marxiano, Pericás destaca: Joseph Weydemeyer, Adolph Cluss, Friedrich Sorge, Friedrich Kamm e Albrech Komp. Essas figuras, "tiveram um papel importante em difundir e assentar as bases que posteriormente serviriam como ferramenta para os teóricos e dirigentes do movimento operário norte-americano vários lustros depois" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 11).

Esses homens foram responsáveis pela fundação das primeiras organizações marxistas nos EUA, como: a Proletarierbund, constituída em 1852; a American Workers League ou Amerikanische Arbeiterbund, fundada em 1953; e o Clube dos Comunistas, organizado a partir de 1857. Além da fundação dessas organizações, o autor lembra o seguinte:
Não custa recordar que a própria Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), fundada em Londres em 1872, ganhou uma seção em Nova York poucos anos depois. E que, em 1872, foi aprovada, no Congresso de Haia, a transferência de sua sede para aquela cidade (com Sorge como secretário do Conselho Geral), onde permaneceu até 1876, quando foi finalmente dissolvida, após decisão tomada na conferência de Filadélfia (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 11)
Dentre os nomes citados acima, Pericás destaca o de Weydemeyer, amigo pessoal de Marx e um dos editores do jornal Nova Gazeta Alemã. Ele teve um papel pioneiro na difusão do marxismo nos EUA, recebendo e organizando operários compatriotas que aportavam em Manhattan. Já seu filho, Otto Weydemeyer, foi responsável pela primeira tradução popular do livro O Capital para a língua inglesa, em 1878. A versão britânica só sairia, por exemplo, em 1887.

Apesar do pioneirismo, esses emigrados alemães tinham limitações no que tange ao desenvolvimento de uma teoria marxista para os EUA. Infelizmente, eles ainda estavam presos ao seu continente de origem e não tiveram a capacidade de aplicar o marxismo na realidade concreta dos norte-americanos. Assim sendo, "O ideário marxiano, portanto, fora transplantado para aquele entorno, mas ainda servia basicamente como apêndice e auxiliar externo, forâneo, às lutas políticas internas. Para todos os efeitos, ainda não se mesclara organicamente aos sindicatos e partidos de caráter essencial nacional" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 12). Sobre essas limitações, o autor cita a visita feita por Engels aos EUA, em 1888, onde observou um movimento operário enérgico, mas atrasado em termos teóricos.

Engels chega a afirmar que obras básicas como O Manifesto Comunista, era pouco estudado e entendido pelos norte-americanos que eram essencialmente "práticos" e tendiam a analisar as coisas com base em resultados concretos. O principal parceiro intelectual de Marx, também buscou mostrar caminhos que superassem essas barreiras, orientando que os emigrados alemães deveriam se despir da realidade europeia e buscassem o entendimento dos EUA com base na peculiaridade do país. "Em outras palavras, teriam de inserir-se nas lutas populares, não impor direcionamentos doutrinários (que eles próprios não entendiam, transformando-os num "credo", em vez de usá-los como um "guia para a ação"), livrar-se de suas "roupagens" europeias e aprender com a experiência dos ativistas nacionais" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 12).

A primeira tentativa de aplicar o pensamento marxiano no entendimento dos EUA, foi vista na obra de Daniel De Leon. Nascido na ilha caribenha de Curaçao, De Leon se mudou já adulto para Nova York e passou a trabalhar na Universidade de Columbia. Suas ideias exerceram influência na fundação do Partido Socialista do Trabalho (PST), fundado em 1876 e primeiro de orientação socialista a ser erguido nos EUA. De Leon atuou politicamente e intelectualmente antes da Revolução Russa de 1917, tendo exercido influência sobre Lênin, como demonstra John Reed na célebre obra "Dez dias que abalaram o mundo". Sobre suas ideias:
Para ele, a primeira revolução socialista ocorreria nos Estados Unidos e de lá se espalharia para outros países. De Leon foi o único dos pioneiros do marxismo do Novo Mundo a influenciar os socialistas na Europa, especialmente o movimento operário da Irlanda e da Escócia (e, em menor escala, de outras partes, como o Canadá e Austrália). Entre 1890 e 1914, não houve nenhum outro pensador de sua envergadura entre os seguidores de tendência "revolucionária" do autor de O Capital em toda região. Suas ideias causaram impacto em intelectuais e dirigentes conhecidos, como o italiano Antonio Gramsci e o galês Aneurin Bevan (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 13).
Principal propagador da teoria revolucionária nos EUA, De Leon traduziu importantes obras para a língua inglesa como "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte" e "Crítica do Programa de Gotha, de Marx. Também traduziu obras de Engels, Karl Kautsky, August Bebel, Eugène Sue e Ferdinand Lassalle. Buscou que o PST formulasse uma explicação nacional da realidade norte-americana, mesmo que ancorada no pensamento marxiano, e foi opositor do então nascente imperialismo ianque que investia suas forças nos conflitos na América Central, tomando para si antigas colônias espanholas. Ainda sobre o seu pensamento:
Para De Leon, povos de regiões atrasadas não precisariam necessariamente se desenvolver a partir do sistema capitalista. Isso significa que, se o socialismo triunfasse na Europa e nos Estados Unidos, países com economias "pré-capitalistas" poderiam mais rapidamente dar um salto em direção à "civilização" socialista sem passar por agressões, invasões ou penetração política e econômica estrangeira, que supostamente levariam o "progresso" para aquelas partes do mundo (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 14)
Além de De Leon, outros nomes foram importantes na difusão do pensamento marxiano nos EUA, principalmente após a fundação do Partido Comunista dos EUA e de suas variadas cisões. Após a fundação do PC norte-americano em 1919, nomes se destacaram nessa empreitada como os de Bertham Wolfe, Louis Boudin, Louis Fraina e Jay Lovestone. Pericás lembra que o órgão teórico do partido, o The Communist, já foi fundado sob o objetivo de "americanizar" a teoria marxiana.

Feita essa exposição sobre o desenvolvimento das ideias socialistas nos EUA, o autor passa para a América Central e do Sul, marcada pela língua espanhola. O pioneiro na divulgação das ideias de Marx/Engels na América Latina foi o poeta Georg Weerth que passou por cidades como Lima, Buenos Aires, Havana e até o Rio de Janeiro. Apesar do seu pioneirismo e importância, Weerth não desenvolveu análises específicas sobre as realidades dos países que passou. Mas três acontecimentos foram vitais para a difusão da teoria marxiana na América Latina: a) a fundação em 1872 da primeira seção da AIT em Buenos Aires, capital argentina; b) tradução do Manifesto Comunista para o espanhol, em 1874, pelo periódico mexicano El Socialista; c) tradução do livro O Capital para o espanhol em 1898. E,
Ainda que o marxismo crescesse no começo do século XX, pelos esforços de militantes como o cubano Carlos Baliño, o uruguaio Emilio Frugoni e o chileno Luis Emilio Recabarren, os seguidores de Bakunin, Malatesta e Kropotkin continuavam a ter força no movimento operário da região. De qualquer forma, iniciativas como a criação do Partido Socialista do Chile, o Clube de Propaganda Socialista em Havana e o Centro Socialista Carlos Marx, em Montevidéu, juntamente com experiências como o Centro de Estudos Carlos Marx na Argentina e o Partido Obrero colombiano, mostram que as ideias dos "pais do materialismo histórico ganhavam cada vez mais espaço na América Latina (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15)
Mas foi após a Revolução de Outubro de 1917 e, principalmente, após a constituição do Comintern em março de 1919 que os partidos comunistas na América começaram a surgir e lutar por um espaço maior no movimento operário da região. Já em 1918, ou seja, antes da constituição do Comintern, era fundado na Argentina o Partido Socialista Internacional que, em dezembro de 1920, mudaria seu nome para Partido Comunista Argentino. No México, o PC local foi fundado em 1919. No mesmo ano, eram fundados nos EUA o Partido Comunista Operário e o Partido Comunista da América que se fundiram em seguida. No Uruguai, o Partido Socialista transformou-se em Comunista em 1920. Em seguida, em 1922, foi a vez do Brasil fundar o PCB. Por último, em 1925, a Agrupación Comunista de La Habana se une a forças de esquerda locais e fundam o Partido Comunista Cubano.

Junto com a fundação dos PC's, surgiu a tentativa de explicar teoricamente as realidades nacionais de cada país. Entre os primeiros teóricos a realizarem tal empreitada, o autor destaca Octávio Brandão no Brasil e Ricardo Paredes no Equador. O fato é que o Comintern tinha uma atuação tímida na região, pelo menos nos seus primeiros anos. Os principais partidos da região eram os PC's dos EUA, da Argentina e do México. No II congresso mundial da Internacional Comunista (IC), dedicou-se debates sobre o caráter da revolução nos países considerados como "semicolôniais" e "semifeudais", tendo essas discussões a liderança de Lênin e do indiano Manabendra Nath Roy. Ficou decidido a partir dali o apoio as lutas de libertação nacional, o combate a teses eurocêntricas dentro dos PC's etc. Mas se nos quatro primeiros congressos da IC, os PC's locais tinham certa mobilidade de ação, tudo mudou a partior do V congresso, realizado em 1924.
A primeira grande reestruturação da IC ocorreu a partir do Quinto Congresso, em 1925, ampliando a centralização em relação às seções nacionais, possibilitando a "bolchevização" dos demais PC's e subordinando-os diretamente ao Comitê Executivo do Comintern (mais tarde, a Conferência de Buenos Aires de 1929 seria a última tentativa de chegar a formulações teóricas e políticas mais livres, originais, baseadas na realidade local, feitas pelos intelectuais revolucionários da América Latina). Foram impostas linhas de pensamento muitas vezes divorciadas da realidade concreta (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 16)
O VI congresso, realizado em 1928, reforçará a hegemonia stalinista na condução da IC e a política da "classe contra classe" prevalecerá, assim como os expurgos daqueles que fossem de orientações contrárias como o trotskismo. Nesse congresso, se destacou Paredes que visava uma interpretação mais livre das diferentes realidades nacionais. Ele "teve participação ativa naquela instância, especialmente em relação ao papel das massas rurais no processo revolucionário, defendendo também, na ocasião, a utilização da categoria "países dependentes" para aqueles que "foram penetrados economicamente pelo imperialismo, mas que ainda retêm certa independência política", algo similar ao que já apontara o próprio Lênin alguns anos antes. Ele discordava da ideia de expropriação de terras de latifúndios para que fossem distribuídas aos pobres em pequenas parcelas privadas e insistia na utilização de um modelo baseado no coletivismo das comunidades indígenas tradicionais para a construção do socialismo, enfatizando o potencial revolucionário dos povos originários na luta contra o jugo capitalista" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 16). Outros nomes se destacaram na defesa de uma análise peculiar da região, como Sergei Ivanovich Gusev e Jules Humbert-Droz. Mas, de maneira geral, a atuação da URSS na América Latina durante os anos de 1920 foi bastante tímida.

Terminando essa primeira parte da introdução, Pericás destaca o legado do peruano José Carlos Mariátegui, considerado por ele como o teórico marxista mais original na região nas primeiras décadas do século XX. Após a Revolução de Outubro, Mariátegui se aproximou do movimento operário peruano. Sua atuação política contra o governo de Augusto Leguía, teve como consequência seu exílio do país em 1919. Na Europa, teve contato com a literatura marxiana e com partidos comunistas europeus como o italiano. Retornando ao Peru em 1923, Mariátegui permaneceu com uma intensa atuação política, escreveu obras e ajudou a fundar o Partido Socialista e a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru. Sobre sua importância e legado:
Tanto a forma como via o desenvolvimento histórico peruano e o papel dos camponeses indígenas e do proletariado urbano quanto suas ideias sobre as tarefas revolucionárias do momento, a organização do proletariado, os aspectos da educação, da cultura popular e da estrutura do partido foram temas que causaram polêmica e discordância entre JCM e o Comintern. Era um pensador demasiado independente para os padrões da IC na época. Por isso, foi muito criticado, inclusive por correligionários (entre os quais seu sucessor, Eudocio Ravines), e seu legado foi atacado durante anos. Mais tarde, seria considerado a grande personalidade do marxismo em seu país (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 18).
Pericás acredita que Caio Prado está presente entre esses pensadores pioneiros que trataram de utilizar do marxismo para explicar a realidade nacional em que estava inserido, sendo um companheiro de Mariátegui, De Leon, Baliño etc. Essa busca por uma independência intelectual, mas sem desvalorizar os preceitos básicos do marxismo, fez de Caio um dos maiores nomes quando o assunto é a inserção e/ou desenvolvimento desta linha teórico/política na região.

Feita essa explanação geral, o autor se aprofunda na vida pessoal de Caio Prado, iniciando pelas origens de sua família. A família dos Silvas Prados chegaram no Brasil no início do século XVIII e tiveram participação ativa nos acontecimentos políticos do país nos séculos seguintes. Dentre os nomes da família mais notáveis, está o de Antonio da Silva Prado que como descreve Pericás, chegou a ser: senador, deputado-geral, líder do Partido Conservador, ministro da Agricultura, deputado constituinte etc. Além disso, chegou a ser prefeito da cidade de São Paulo por quatro mandatos seguidos, sendo o responsável pela remodelação da cidade. A construção do Theatro Municipal de São Paulo é um dos legados de sua gestão municipal. Antonio Prado também foi responsável pela fundação da Casa Prado-Chaves, quebrando a exclusividade das companhias britânicas na exportação do café. Em suma, a família foi responsável pelo desenvolvimento econômico do estado de São Paulo, sendo uma das referências na produção cafeeira. Vale lembrar que o café representava cerca de 60% das exportações brasileiras na época da República Velha, o que demonstra a grandeza da família. Ainda sobre sua robustez:
Só para se ter uma ideia do poder deles, a família Silva Prado era dona de 226 do total das 1.000 ações inicialmente subscritas pelo Banco do Brasil, quando este fora criado. Outras 256 ações eram de famílias relacionadas, ou seja, quase metade das ações do principal banco do país estava em seu poder (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 19).
Caio Prado cursou o ensino primário em casa com professores particulares, prática comum entre a maioria das crianças abastadas. Conviveu com escritores, artistas e pensadores diversos que frequentavam a sua casa. Vale lembrar que a atividade intelectual na família, não começou com Caio. Paulo Prado, primo de seu pai, foi um dos principais nomes da Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo. "Durante os anos de formação de CPJ, o Brasil ainda era um país eminentemente agrícola, embora a imigração e a industrialização começassem a mostrar os novos contornos sociais da nação. São Paulo, a cidade onde o futuro historiador nasceu, tinha um forte componente estrangeiro, com a participação do proletariado em diversas greves e protestos" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 21). A cidade de São Paulo do jovem Caio, crescia a cada ano para se tornar o principal estado do país no tocante ao desenvolvimento econômico.

Após os estudos particulares, Caio frequentou o Colégio São Luís (de formação jesuíta) e o Chelmsford Hall, situada na Grã-Bretanha. Na vida universitária, estudou ciências jurídicas e sociais na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde ingressou em 1924 e saiu em 1928. Nesse período, ingressou no Partido Democrático (PD), antes de ingressar no PCB, partido que permaneceu pelo resto da vida. Assim como De Leon e Mariátegui, foi um intelectual que soube unir reflexões teóricas com atividade política. "Mas, se De Leon e Mariátegui eram as principais personalidades de suas agremiações, Caio, mesmo tendo papel de destaque em alguns momentos de sua história (como na época em que se tornou presidente regional da ANL em São Paulo ou quando foi líder da bancada do PCB na Assembleia Legislativa de São Paulo), nunca teve a mesma proeminência ou protagonismo dos dirigentes do SLP e do PSP (Partido Socialista do Peru) - ainda que, como o colega peruano, fosse criticado por correligionários (ou lideranças comunistas de sua época), que discordavam das análises e soluções que propunha (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 23).

Apesar de que De Leon, Mariátegui e Caio atuaram em contextos históricos diferentes como bem aponta o autor. De Leon teve atuação em um país com desenvolvimento industrial e sindical e em um período anterior a Revolução de 1917, não tendo o movimento comunista internacional um modelo a ser seguido. Logo, sua atuação intelectual foi marcada pela total liberdade e flexibilidade. Por sua vez, Mariátegui produziu numa época em que Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo eram referências e a Revolução Russa era tida como modelo. O Comintern já estava presente na América Latina, porém, as amarras ideológicas de alguma corrente de pensamento hegemônica ainda não se fazia presente. Já Caio começou a atuar a partir dos anos de 1930, quando não só a URSS era tido como modelo, como também as amarras ideológicas desenvolvidas pelos stalinismo já se mostrava presente no movimento comunista.

Já se encaminhando para o final dessa introdução, Pericás afirma que normalmente se apresenta Caio Prado como um "intérprete do Brasil", assim como outras figuras. Porém, o autor acredita que essa visão da obra do Caio, esquece ou omite sua intensa atuação política que acaba tendo total vinculação com a sua produção teórica. Em suma, "Mas Caio Prado Júnior é um personagem que vai muito além desse tipo de abordagem, que, por sinal, comumente se reproduz em novos textos sobre ele. Assim, seu estofo político é esvaziado e dá lugar a análises "imanentes", "secas" e até mesmo "academicistas" de sua obra. Na realidade, para Caio, o marxismo, o engajamento social e partidário e as experiências socialistas não eram acessórios, mas elementos essenciais em sua trajetória e visão de mundo; não eram apenas ferramentas para compreender o processo histórico nacional, mas aspectos primordiais de sua vida e de sua luta por mudanças estruturais no país" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 24).

Importantes ações foram feitas na valorização do seu pensamento e uma delas é citada por Pericás: trata-se da fundação do Instituto Caio Prado Júnior pelo atual PCB, divulgando seu legado e instigando debates sobre a realidade nacional. Seguindo essa linha de valorização do seu legado, Pericás traz material até então inéditos como cartas e diários políticos pessoais, nunca antes publicado. Elas desnudam, entre várias coisas, a relação que Caio tinha com intelectuais marxistas latino-americanos como Rodolfo Puiggrós, Benito Marianetti e Héctor Agosti. A conclusão de seu pensamento, pode ser assim resumido:
Mesmo que seu discurso nem sempre fosse, aparentemente, incendiário ou radical como o de vários de seus contemporâneos, continuava comprometido com mudanças estruturais profundas e com o desenvolvimento do país. Por outro lado, tinha a preocupação constante de aplicar remédios e soluções de acordo com a realidade concreta e os processos históricos específicos. Por não seguir determinadas cartilhas "pré-fabricadas" de ultraesquerda ou fraseologia inflamadas a favor de medidas mais drásticas na luta política em alguns momentos, foi acusado por setores progressistas de ser "reformista". A maneira sutil e ao mesmo tempo complexa com que encarava os casos particulares, contudo, mostra que sua intenção primordial era avaliar e interpretar corretamente o processo histórico e as características nacionais, para que só então se pudessem definir os melhores sendeiros para a atuação política, mesmo que suas conclusões fossem contrárias às da maioria de seus camaradas de partido ou outras agrupações de esquerda (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 26).
Enfim, o objetivo do que Pericás chama de "ensaio político-biográfico" é mostrar as relações entre Caio Prado e o chamado "mundo do socialismo". Esse "mundo do socialismo" busca ir além da experiência soviética, visando descrever as relações que o historiador paulista manteve com outras experiências socialistas como a cubana, a chinesa, a polonesa, etc., além de suas relações no PCB. Resume Pericás:
Este trabalho, portanto, tem como objetivo principal realizar uma discussão eminentemente política da trajetória do autor de Dialética do Conhecimento, mostrando sua militância, sua leitura de clássicos marxistas, suas viagens, sua atitude em relação ao golpe militar, os debates sobre a revolução brasileira, seus tempos na prisão, sua relação com intelectuais contemporâneos, assim como apresentar elementos teóricos de seu ideário e o desenvolvimento do pensamento caiopradiano ao longo das décadas (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 28).
Capítulo 01 - O Ingresso no PCB

A vida política de Caíto inicia em 1928 quando ele decide se filiar ao Partido Democrático (PD). O PD foi um partido fundado em 1926 por setores da classe média urbana e oligarcas rurais, dissidentes do atrasado Partido Republicano Paulista (PRP). O partido ganhou forte adesão de figuras próximas do jornal Folha de S. Paulo e de estudantes da Faculdade de Direito. Seu primeiro presidente foi Antônio Prado, tio-avô de Caio. Contestando práticas antiquadas do PRP, o PD chegou a ter 50 mil membros e seu órgão oficial, o Diário Nacional, chegou a alcançar a marca de 70 mil exemplares. O partido fez parte da Aliança Liberal que em outubro de 1930, colocou Getúlio Vargas no poder.

Mesmo assim, o PD era conhecido por sua moderação que ficou clara à oposição feita a movimentos políticos contestatórios mais incisivos como a Coluna Prestes. O partido não dialogava com os setores populares, não buscava inserir as elites imigrantes e era contrário a tomada violenta do poder. Porém, "o fato de a agremiação defender a reforma eleitoral, o voto secreto e a autonomia do Poder Judiciário era um elemento democratizante que teria apelo no jovem, cansado do velho estilo "politiqueiro" da Primeira República" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 30).

Esses elementos democratizantes presentes no PD, fez o partido receber apoio até do PCB. O comunicado do Bloco Operário e Camponês (BOC), frente eleitoral do PCB nas disputas de 1927 e 1930, de fevereiro de 1928 indicava voto no PD contra o retrocesso que representava o PRP. No PD, Caio foi um dos responsáveis pela organização do partido na capital paulista e no interior do estado. Ele ocupou cargos como o de "delegado revolucionário", foi membro da Comissão de Sindicância para o 10º Distrito em Ribeirão Preto e foi tesoureiro do diretório de Santa Cecília. Porém, seu rompimento com o partido teve início em 1931, ano em que o PD rompe com o interventor paulista João Alberto e se aproxima do PRP, constituindo com eles a Frente Única por São Paulo Unido. No dia 23 de outubro de 1931, Caio decide se afastar do PD, deixando uma carta de desfiliação para o presidente da agremiação.

Em 1931 também foi o ano em que Caio começou a ter relações com o PCB, partido que viria a se filiar em seguida. Sobre o contexto em que Caio decide se aproximar do partido, diz Pericás:
Caio Prado Júnior ingressa no PCB num momento em que o Comintern dava mais atenção a São Paulo em seus planos sindicais na América do Sul. Vale recordar que no Congresso das Seções Latinas da IC em Montevidéu, em 1931, deliberou-se que aquela metrópole serviria como base para as ações sindicais no continente. Como aponta Marcos Tarcísio Florindo, em virtude disso, os comunistas começaram a se concentrar na capital paulista, criando vínculos com as cidades do interior, constituindo células e iniciando a aplicação imediata das diretivas de Moscou (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 32).
Curiosamente, apesar da retórica obreirista que acompanhava o partido desde 1928, indo na esteira das expulsões dos "trotskistas" e "bukharinistas" do Comintern; o PCB começava a ter em suas fileiras intelectuais, militares e profissionais de classe média. Caio Prado foi apenas mais um desses não operários a adentrarem na organização. A partir da sua aproximação com os comunistas, Caio passou a ter problemas no seu círculo familiar, chegando a ter parentes que se recusavam a ir à mansão de seus pais. A partir daquele momento, ele passaria por um isolamento da classe social em que foi oriunda. Sobre sua decisão de tornar-se um militante comunista, afirma o autor dessa biografia:
Ele seria capaz de sacrificar sua vida pessoal em nome de ideias: expôs a si mesmo e à sua família à execração pública, foi constantemente vigiado pelos órgãos de segurança ao longo dos anos, teve de afastar-se daqueles que amava nas diferentes ocasiões em que foi detido e encarcerado, viu-se obrigado a autoexilar durante o governo Vargas e a ditadura militar e, ainda assim, recebeu críticas dos mais diferentes setores partidários, tanto da esquerda quanto da direita. Embora tivesse uma condição econômica confortável e sua liberdade de ir e vir em geral (mas nem sempre) fosse respeitada, o fato é que ele, sem dúvida, escolheu o caminho mais duro, o de um militante pecebista (tanto no trabalho dentro do partido como também no de intelectual marxista "independente"), sem nunca abandonar a luta (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 33-34).
Não se sabe a data exata em que Caio filiou-se ao PCB, mas segundo Pericás, provavelmente, ele fez uma espécie de "estágio" em organizações como a Cooperativa Internacional dos Trabalhadores e o Socorro Vermelho Internacional (SVI). O período em que Caio entra no PCB, foi o mesmo que o Brasil passou por intensas agitações sociais pós-revolução de 1930. O desemprego se encontrava em alta, assim como as greves, com isso, "houve 124 greves importantes no Brasil entre janeiro de 1931 e julho do ano seguinte. Em 1931, em média, 1.724 trabalhadores tomaram parte em cada greve, enquanto m 1932 essa cifra subiria para 4.031" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 35).

Já em 1932, meses após sua saída do PD, Caio ajudará a fundar a Cooperativa Internacional dos Trabalhadores e o Clube dos Artistas Modernos (CAM). A Cooperativa tinha como objetivo se solidarizar com presos políticos no Brasil e no mundo, assim como oferecia serviços médicos e alimentação a baixo custo para operários. Sua extinção já em abril de 1932 deve ter sido, provavelmente, ocasionou a entrada definitiva de Caio no PCB. Suas novas atividades políticas, com direito a defesa da URSS nas páginas do jornal Correio da Tarde dos dias 3 e 4 de maio de 1932, fez Caio largar o emprego em um escritório de advocacia; temendo represálias aos companheiros de trabalho. Além do jornal Correio da Tarde, Caio também publicou outros textos de tom obreirista (seguindo a tendência do PCB à época) no Diário da Noite.

No mesmo ano de 1932, eclodiu a chamada Revolução Constitucionalista, em que Caio decidiu não participar; assim como o PCB. Mesmo que contrário ao governo Vargas, Caio não era simpático as oligarquias paulistas que se levantavam. Defendia, sim, uma mobilização dos operários e camponeses rumo a uma revolução. O conflito entre Vargas e a oligarquia cafeeira de São Paulo, era visto por pecebistas como um embate entre os representantes do imperialismo inglês (as elites paulistas) versus os aliados do imperialismo ianque (visto na figura de Getúlio Vargas). Apesar da omissão dos comunistas no conflito, ele foi usado como pretexto para a intensificação da repressão ao movimento operário e ao PCB por conseguinte.

Sobre o CAM, foi uma sociedade considerada apolítica e que tinha como objetivo difundir a arte moderna. Caio foi um de seus fundadores e sobre sua ação, diz Pericás:
O CAM se destacou pelas apresentações musicais, cursos de pintura, peças de teatro e ciclos de palestras sobre psiquiatria, arte, dança e política. O intuito era trazer ao público paulista o que havia de mais moderno e ousado na época em termos estéticos e culturais. O cubismo, a arte dos loucos, o teatro da experiência e a Revolução Russa, portanto, eram temas em voga na entidade. Entre os frequentadores da agremiação estavam elementos tão diversos como o anarquista italiano Oreste Ristori, o trotskista Mário Pedrosa e os militantes pecebistas Joaquim Câmara Ferreira e Tito Barini. Após um ano sendo vigiado e reprimido pela polícia, com diversos sócios abandonando-o ou deixando de pagar as mensalidades, o CAM foi extinto em dezembro de 1933 (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 42).
Já em 1932, primeiro ano em que mantém contato e possivelmente ingressa no PCB, Caio entra em atrito com o partido. O Comitê Regional do PCB em São Paulo, o acusou de querer fundar um jornal "pequeno-burguês", de manter aproximações com trotskistas e também por organizar cursos marxistas sem a devida consulta aos dirigentes. Caio estavasendo acusado de colaborar com militantes que desejam dar um "golpe interno" dentro do partido. Essas acusações foram recebidas por Caio através de uma carta, datada do dia 29 de novembro, que dava um prazo de dois dias para que ele reavaliasse seus comportamentos. Caso contrário, seria publicamente acusado de trotskismo e, consequentemente, de inimigo da classe trabalhadora.

O historiador paulista respondeu a carta, enxergando como improcedente todas aquelas acusações. Sobre as acusações de trotskismo, Caio responde categoricamente que sua visão sobre a realidade brasileira se diferenciava tanto desses grupos, quanto do próprio PCB. Para os seguidores de León Trotsky, a Revolução de 30 se caracterizou como uma revolução burguesa; já os pecebistas enxergam a necessidade da eclosão dessa mesma revolução no país, aos moldes do que ocorreu na Rússia. Porém, Caio enxergava como errônea as duas perspectivas, já que não havia espaço no Brasil para uma revolução burguesa, pois o regime vigente era o que ele chama de "arquiburguês". Finalizando a resposta ao Comitê Regional, diz Caio Prado:
E o CR pode estar certo que lhe valem muito mais colaboradores conscientes e sinceros, que oportunistas sem opinião, que aceitam tudo, só pelo medo de discutir, e não porque estejam sinceramente convencidos. Estes podem qualquer dia virar as costas, porque sua colaboração não assenta na sua convicção. Mas os que procuram se esclarecer, e somente aceitam o que é provado - e tudo no marxismo-leninismo, que é ciência, pode ser provado - estes nunca faltarão na hora que forem chamados a lutar (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 45).
Caio desejava que o PCB superasse o discurso sectário e obreirista, visando tornar o partido uma organização de massas e não um grupo fechado no que ele chamava de "Olimpo proletário". Apesar do tom não passivo da sua resposta, ele não foi expulso do partido e muito menos teve sua imagem exposta publicamente pelos dirigentes partidários. Permaneceu sem realizar a solicitada autocrítica, defendendo até o último momento suas próprias convicções políticas. Sobre sua não expulsão do partido, destaca Pericás:
No caso das acusações, ele nunca fez uma "autocrítica" ou mea culpa. Pelo contrário. Defendeu até o fim todas as suas concepções políticas e procedimentos ao longo daquele ano. O fato é que ele tinha amigos no Comitê Central do PCB, com os quais se comunicava regularmente. E, mesmo que o CR desejasse sua saída, fica claro que instâncias superiores queriam que continuasse em seus quadros. O trânsito que CPJ possuía em diferentes setores sociais e as contribuições materiais (ou seja, financeiras) que poderia dar ao partido provavelmente pesaram nessa situação (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 46).
Apesar de enxergar o PCB como vanguarda do proletariado, defendendo a tese de que apenas os militantes comprometidos e disciplinados deveriam se manter na organização; Caio permaneceu exercendo sua militância política (chegando a entregar panfletos nas ruas paulistas) com autonomia intelectual. Isso foi motivo de elogios, como o de Florestan Fernandes que assim definiu a atuação de Caio nas fileiras pecebistas: "Essa independência fez dele um homem ímpar, entre os militantes do Partido Comunista, porque, sem romper a disciplina partidária, ele não correspondia a barreiras intelectuais que, posteriormente, se dissiparam" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 48).

Capítulo 02 - Leitores (e leituras) marxistas de Caio Prado Júnior

Autores como Carlos Nelson Coutinho e Guido Mantega, contestam a base marxista de CPJ, alegando que o mesmo teve pouco contato com as obras de Marx/Engels assim como de seus sucessores. Um dos argumentos utilizados são as escassas citações que Caio faz a autores marxistas em suas obras. Porém, Pericás acredita que o número de citações de Marx ou de autores marxistas, não definem se a obra de um intelectual do porte de Caio foi ou não alinhada a essa tradição política e teórica. O marxista, para o autor, seria aquele que soubesse utilizar corretamente o método histórico-dialético em suas análises e tal feito foi visto nas obras de Caio. Inclusive, ele seria o primeiro a utilizar esse método de forma refinada e não mecânica, como pode ser visto por autores que o precederam.

A literatura marxista encontrou dificuldades para ser difundida no Brasil e possivelmente só aportou no país após a Revolução Russa de 1917. A partir dessa esparsa difusão, surgiram divulgadores do marxismo como Octávio Brandão, Leôncio Basbaum, Mario Pedrosa e Lívio Xavier. Todos, pioneiramente, buscaram aplicar a nova teoria para o entendimento da realidade brasileira. A primeira obra publicada que buscou entender o Brasil pela ótica marxista foi Agrarismo e Industrialismo de Brandão, livro escrito em 1924 e publicado apenas em 1926; sob o pseudônimo de Fritz Mayer e com publicação de Buenos Aires, visando confundir os órgãos de repressão da República Velha. O livro aborda, pioneiramente, temas como: o papel do imperialismo no país, a força e o atraso que representava o latifúndio e analisava as revoltas tenentistas de 1922 (Copacabana) e 1924 (São Paulo). O principal embate que o país sofria naquele contexto, seria entre o imperialismo britânico e o imperialismo norte-americano, tendo os primeiros aliança com setores agrários e/ou "feudais", enquanto os segundos se aproximavam de setores urbanos.

A solução encontrada por Brandão era a organização da classe operária, através do Partido Comunista, e sua consequente aliança com setores igualmente oprimidos como os camponeses, a pequena burguesia e os tenentes revoltosos. O objetivo era criar um só movimento, com o intuito de derrubar os setores agrários e feudais, aliados do imperialismo britânico. O livro serviu de inspiração para o II Congresso do PCB, mas em seguida foi fortemente atacado pelo Comintern e seu autor acusado de utilizar o método dialético de forma mecânica. Os trotskistas Mario Pedrosa e Lívio Xavier, escreveram juntos a obra Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, escrito em 1930 e publicado no ano seguinte. O texto, considerado por Pericás mais como uma intervenção política do que um documento historiográfico consistente, defendia a tese de que o Brasil se formou baseado em uma forma peculiar de feudalismo que se assentava na grande propriedade rural.

Diferentes de outros países, a pequena propriedade não prosperou por aqui e a burguesia local detinha uma forte ligação com o meio rural (por ser oriunda do campo) e através da cultura do café, nos inseriu na economia mundial. Porém, inseriu dentro de um modelo dependente de dominação imperialista. Logo, a natureza da burguesia brasileira era instável e consequentemente incompatível com a construção de políticas progressistas que viessem a construir um verdadeiro e independente Estado nacional. Por fim, Pericás lembra de Basbaum como outro importante pioneiro. Sob o pseudônimo de Augusto Machado, ele escreveu em 1933 a obra A caminho da revolução operária e camponesa, publicada em 1934. Nessa obra, Basbaum defende a seguinte tese sobre o Brasil e sua formação:
Ele acreditava (como muitos em sua época) que o Brasil (caracterizado por ele como uma semicolônia do imperialismo estrangeiro) era dominado tanto pelo latifúndio como por uma burguesia agrária e por "proprietários feudais", com predominância de um regime "feudal" e "semiescravagista". O poder político, portanto, estaria nas mãos de um suposto "bloco feudal-burguês". A luta de então, na avaliação de Basbaum, se daria entre o sistema "feudal" e o "capitalista", que coexistiriam na mesma realidade nacional e, mesmo tendendo a destruir-se mutuamente, não podiam fazê-lo porque havia fortes interesses vitais entre ambos. O que mantinha essa coalização era a presença do imperialismo. A Revolução de 1930 representava, assim, um choque entre grupos antagônicos, cada qual vinculado a um país hegemônico distinto, com soluções diferentes para a crise no país (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 51).
A proposta de Basbaum para esse imbróglio era a insurreição das massas, sem ser meras quarteladas tenentistas. Mas esse levante popular deveria ser seguido pela defesa de um programa que contivesse as seguintes reivindicações: eliminação do latifúndio, expulsão dos imperialistas, não pagamento da dívida externa, nacionalização de empresas estrangeiras e socialização dos meios de produção e transportes. A classe social que deveria liderar tal movimento era a classe operária, aliada aos camponeses. Basbaum teve uma importância por debater questões de raça sob uma ótica marxista, enxergando que o negro sofria forte discriminação, porém, aparentemente não explícito como nos EUA. Pericás afirma que todas essas produções teóricas, apesar da importância pioneira, mantinham a mesma limitação no que tange ao uso do método histórico e dialético proposto pela teoria marxista.

Contemporânea a essas produções, mas muito mais refinada do ponto de vista teórico, surgiu em 1933 a obra Evolução Política do Brasil. O sub-título dado por CPJ a essa obra já diz muito sobre sua importância: "Ensaio de interpretação materialista da história do Brasil". Mesmo que a bibliografia utilizada por Caio fosse baseada em autores brasileiros não marxistas (como Joaquim Nabuco, Pereira da Silva e Felisbelo Freire), a obra não deixa de ter na sua essência a utilização do método histórico-dialético de Marx e Engels. Segundo Pericás:
Com ele, o jovem intelectual produzirá um verdadeiro marco nos estudos marxistas brasileiros: ele dá centralidade às massas populares e à importância de sua integração à realidade do país, assim como ao próprio decurso histórico, inserindo os estratos sociais menos privilegiados no processo de construção nacional, da Colônia ao fim do Império, como agentes ativos, que se expressam por meio de lutas populares, fossem reivindicatórias, fossem pela tomada efetiva do poder (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 53).
Nesta obra, Caio apresenta o povo como agente ativo que, mesmo excluído do processo decisório, buscou se manifestar em acontecimentos como a Cabanada, a Balaiada, a Revolução Praieira etc., sendo os fracassos desses acontecimentos um motivo para a necessidade de construção de instrumentos políticos que viabilizassem a participação política dos oprimidos. A obra também mostra como as demandas populares foram ignoradas pela classe dominante local que, da passagem da Colônia para o Império e do Império para a República, estiveram liderando os processos em benefício da manutenção de seus privilégios. A independência foi conquistada, por exemplo, mas a eliminação da opressão lusitana sobre o país não foi acompanhada de outras medidas como o fim da escravidão. Assim como a proclamação da República e o fim da escravidão, não representou mudanças estruturais significativas. O fato é que, assim como Mariátegui fez com os índios no Peru na obra Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, Caio buscou mostrar as massas como agente ativo na formação histórica do Brasil.

Sobre suas leituras marxistas, Pericás afirma que entre sua entrada no PCB a sua primeira viagem a URSS, Caio leu autores como: Lênin, Rosa Luxemburgo, Josep Stálin, Béla Kun, Georges Sorel etc. Em sua biblioteca pessoal, também marcava presença autores como Che Guevara, Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti, Gyorgy Lukács, Louis Althusser, Ernest Mandel etc. Entre os brasileiros: Basbaum, Brandão, Rui Facó, Carlos Marighella, Jacob Gorender, Nelson Werneck Sodré, Luiz Carlos Prestes, Heitor Ferreira Lima etc. E "Alguns teóricos marxistas serão mencionados esporadicamente em cartas ou livros, como Lukásc, pelo qual CPJ tinha o maior "apreço"; Sartre, a quem considerava como "um grande e até genial literato"; Stalin, que chegou a ser citado favoravelmente como uma autoridade sobre a Rússia soviética; e Althusser, o qual criticou duramente em um longo ensaio" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 57).

Graças a seu interesse pela América Latina, Caio manteve contato com diversos intelectuais da região. Seu objetivo era estudar as especificidades do Terceiro Mundo e assim ele manteve contato com autores como Norberto Frontini, Gregorio Bermann, Rodolfo Puiggrós, Hector Agosti etc. E recebeu elogios de estrangeiros como John Dulles.

Por fim, o capítulo se encerra com Pericás enxergando aproximações entre Caio e Nikolai Bukharin, revolucionário russo. O único livro traduzido por Caio foi Teoria do materialismo histórico de Bukharin, colocando-o entre os primeiros divulgadores da teoria marxista no Brasil. Um dos principais revolucionários no processo que culminou com a Revolução Russa em 1917, Bukharin foi leitura obrigatório nos primeiros anos do PCB. Seu prestígio no movimento comunista internacional começou a declinar após a ascensão de Stálin, sendo então acusado de "desviacionista". Seu prestígio começa a cair no início dos anos de 1930 e em 1937 ele é expulso do partido, sendo executado no ano seguinte. A partir daí um forte expurgo é realizado em todos os PC's ligados ao Comintern, com o intuito de eliminar militantes simpáticos as suas ideias. Nos EUA, militantes como Jay Lovestone e Bertram Wolfe foram expulsos; na Índia foi Manabendra Nath Roy e na Argentina, José Penelón.

Pericás enxerga uma aproximação teórica entre Bukharin e Caio, pois ambos desenvolveram interpretações que se chocavam com a posição hegemônica dos comunistas mais ortodoxos. Bukharin, por exemplo, enxergava a transição do capitalismo para o socialismo como um longo processo e não como o resultado imediato de uma revolução fulminante. No contexto russo, Bukharin foi um árduo defensor da NEP. Foi também contrário a coletivização forçada da terra e defendia uma aliança entre operários e camponeses. Defendia um sistema gradualista de desenvolvimento com a burguesia obtendo em mãos a indústria leve, enquanto o Estado soviética deteria a indústria pesada sob sua administração. Alertou para o perigo da constituição de uma "terceira classe", composta por burocratas; assim como teve participação ativa na formulação da Constituição Soviética de 1936, defendendo ideias como a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de credo. Outro ponto que marca seu pensamento é a valorização dada aos aspectos culturais e educacionais na construção do socialismo. Essa construção deveria ser feita de baixo para cima, mesmo que lentamente.

Assim como Bukharin, e talvez influenciado por ele, Caio também atentou para a importância dos aspectos culturais e educacionais na construção de um novo sistema. Em obras como Perspectivas da política progressista e popular brasileira Caio "insistirá na importância da promoção da educação popular e da pregação ideológica das massas para uma fecunda ação política no campo e nas cidades" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 79). Em A marcha da questão agrária, "defenderá que a melhoria no padrão de consumo da população rural ajudaria na superação dos "dilemas da nossa herança colonial". O processos econômico e cultural, portanto, deveriam estar articulados" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 79). Outra ideia presente em Bukharin e também em Caio é vista em A revolução brasileira, quando o historiador paulista "enfatizaria também o estímulo à maior produtividade na agricultural a partir do aperfeiçoamento do setor, utilizando para isso elementos qualitativos como maquinaria moderna, assim como o incremento na renda dos trabalhadores rurais, organizados em sindicatos e protegidos pela legislação" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 79).

Em suma, Pericás admite que entre Bukharin e Caio existe diferenças, também explicadas pelo contexto diferenciado em que os dois autores estão inseridos. Porém, ambos se unem em desenvolver interpretações autônomas, sendo consequentemente acusados por companheiros de partido como "reformistas" ou até "direitista". Esse certo afastamento e independência da chamada "linha oficial", tornam os autores próximos. Mas, o autor dessa biografia adverte que são apenas aproximações generalizantes, pois Caio nunca se declarou um bukharinista e sequer foi acusado de tal alcunha por membros da direção do PCB.

Capítulo 03 - Primeira viagem ao mundo do socialismo

A visão socialista de mundo defendida por Caio foi formada e consolidada pelas suas diversas viagens ao países socialistas, como a URSS, a China e Cuba. O primeiro país socialista que o historiador paulista veio a visitar, foi a URSS, em 1933. Naquele período, apesar da revolução socialista no país ter acontecido em 1917, ocorria um mar de desinformação sobre a realidade soviética tanto no Brasil quanto na América Latina.

Caio viajou para a URSS com sua esposa Baby e ficou por lá entre maio e junho de 1933. Para chegar no país, saiu de Paris para a Alemanha, passou pela Polônia e de lá rumou para Leningrado. Em solo soviético, conheceu o Kremlin e o Palácio de Inverno; navegou pelo rio Volga; presenciou cerimônias religiosas; e viu operários irem a teatros, cinemas, bibliotecas etc. Sobre o contexto em que vivia a URSS no período da visita de Caio, descreve Pericás:
O historiador chegou à URSS no início do Segundo Plano Quinquenal, que fora colocado em andamento naquele ano. O país se modificara rapidamente desde 1929. O fato é que, no final de 1933, aproximadamente 99% da indústria soviética já estava socializada. Os centros foram reorganizados, novos surgiram (como Dnieprostroi e Stalinsk) e o número de operários nas fábricas e usinas, que era de 11.599.000 em 1928, subiu quatro anos depois para 22.942.800. Juntamente com o processo intensivo de industrialização do país, ocorreu também a coletivização acelerada da agricultura, que resultou, em 1933, em cerca de 23 milhões de propriedades camponesas individuais, concentradas numa estrutura de fazendas coletivas ou estatais (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 84).
Caio testemunhou os resultados do Plano Quinquenal e da coletivização forçada, porém, não se mostrou desfavorável as medidas. "Para ele, a comuna era uma forma de cooperação superior, na qual a produção estaria integralmente socializada. Seria um "estágio avançado" da ideologia camponesa, constituído de indivíduos já libertos, em parte, da "herança individualista" dos regimes passados" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 84). Caio conheceu in loco uma dessas fazendas coletivas, a Comuna Seattle, bastante elogiada pelo historiador. Porém, Pericás lembra que a Comuna Seattle pode ser considerada uma espécie de exceção à regra. Essa comuna tinha mão de obra e tecnologia norte-americana, pois foi fundada por comunistas oriundos dos EUA. Além disso, essa comuna era formada por militantes experientes e com sólida consciência política, se diferenciando materialmente e ideologicamente da grande maioria que sofria com as dificuldades econômicas da URSS. Caio também visitou outra fazenda coletiva, conhecida como Verblud.

Após o seu retorno para Paris, em carta escrita para os pais, Caio assim descreveu a experiência socialista que acabara de presenciar: "De um lado o atraso de um povo mergulhado por séculos na ignorância e na miséria; doutro o esforço e a vontade de melhorar que existe na massa da população. São estes aspectos contraditórios que formam o quadro da Rússia de hoje" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 88). Segue Caio sobre suas impressões:
Vi e senti imediatamente que na URSS estava-se fazendo alguma coisa; que apesar do muito que ainda falta, muito já estava feito e, principalmente, todo mundo sabia o que ia fazer. Existe um programa, claramente traçado, que aos poucos vai sendo executado. Levará mais ou menos tempo, não sei; mas o que é mais importante, ele existe (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 88).
As suas observações sobre o país recém visitado, foram reunidas no livro URSS, um novo mundo em que Caio surge como um dos primeiros brasileiros a escreverem sobre a realidade soviética. Antes de publicar sua obra, Caio leu clássicos como Rússia de Maurício de Medeiros; Onde o proletariado dirige e Que é o Estado proletário? de Osório César e Como eu vi a Rússia de Carlos Afonso, além de anticomunistas como Émile Schreiber. Sua visita a URSS não lhe rendeu apenas a publicação do livro, mas também serviu de motivo para que proferisse palestras no CAM sobre a realidade soviética. A obra de Caio fez parte de um período em que vários escritos sobre a URSS foram publicados no Brasil. Além dos citados acima, outros buscaram escrever sobre o primeiro país socialista, como: Astrojildo Pereira em URSS, Itália e Brasil; Gondin da Fonseca com Bolchevismo; João Becker com O comunismo russo e a civilização dos soviets etc. Porém, sua obra tratou-se de uma resposta a escritos anticomunistas, como os de Octavio de Faria, Carvalho e Souza e Dionisio Napal.

Capítulo 04 - Os anos de fogo: da ANL ao cárcere

Após seu retorno da URSS, Caio ingressa na Universidade de São Paulo (USP), no curso de Geografia. Ele fez parte da primeira turma de alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), tendo contato com diversos professores estrangeiros como Pierre Deffontaines, Fernand Braudel, Pierre Monbeig etc. É durante esse período que Caio alarga sua visão sobre o Brasil, através das várias viagens de campo que realiza.

Na política, o ainda pequeno PCB vai ganhar mais força no cenário político nacional com o ingresso de Luiz Carlos Prestes no partido (em junho de 1934 e com imposição dos soviéticos) e a constituição da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em março de 1935. A criação da ANL, que teve Prestes como presidente de honra, fazia parte de um contexto em que a URSS dava mais liberdade as seções nacionais, graças ao VII Congresso do Comitern que previa a construção de frentes populares amplas em combate ao ascendente fascismo. A ANL se colocava como uma organização "nacional-libertadora" e "antifascista", visando a construção de um "governo popular nacional revolucionário".

Apesar da heterogeneidade da organização, "a "espinha dorsal" do movimento, de acordo com Marcos Del Roio, era o PCB, cujos membros representavam em torno de 10% de seus quadros (segundo o mesmo autor, haveria aproximadamente 8 mil membros da agremiação operando naquele momento)" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 100). Como comunista e militante do PCB, Caio participou da construção da ANL, principalmente em suas articulações no estado de São Paulo. Segundo o autor:
É nesse contexto que Caio Prado Júnior atuará. Ele terá papel de destaque como presidente regional do movimento em São Paulo, instalado no Cassino do Parque Antártica em 24 de abril, dando uma contribuição mensal, a partir daí, de 100 mil-réis à ANL. Pouco tempo mais tarde, Prestes sugeriria a Miguel Costa que se tornasse o dirigente máximo da organização no estado, aconselhando-o a tomar a direção local, caso a insurreição da ANL fosse vitoriosa, o que acabou não se efetivando (como afirma Dulles, Costa relutou em apoiar o levante e seria apenas o presidente "honorário" em São Paulo. Para o "cavaleiro da esperança", CPJ era conhecido apenas nos círculos intelectuais, ainda que fosse uma excelente pessoa. O futuro líder do "governo popular", na sua opinião, teria que ser alguém com origem "militar". Isso, contudo, não ocorreu. A questão é que, em última instância, Caíto não deixou de ser o presidente da seção da ANL no estado (inclusive foi ele quem, alguns meses mais tarde, convocou o dirigiu a manifestação contra a clausura da entidade)  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 100).
Segundo Pericás, a atuação política de Caio na ANL não era meramente de estruturação da entidade. Ele também financiou um grupo de espiões que, segundo o autor, se fez presente nas fileiras do PRP, no Partido Constitucionalista e na Ação Integralista Brasileira (AIB); além de contribuir para a criação de uma espécie de grupo paramilitar da ANL que tinha como objetivo entrar em conflito físico com os integralistas.

Mas já em julho de 1935, a ANL foi posta na ilegalidade pelo governo Vargas e seus militantes reprimidos. É neste contexto que eclode a Insurreição e/ou Levante Comunista (também chamada de Intentona), facilmente reprimida pelas forças do Estado. A partir daí foi instaurado um estado de sítio no país que duraria até julho de 1937. Detido brevemente em setembro de 1935, Caio foi preso em dezembro do mesmo ano no Rio Grande do Sul, sendo solto apenas em setembro de 1937. Por conta da instalação do Estado Novo em novembro de 1937, Caio se viu obrigado a exilar-se do país, rumando para a França. No período, o PCB foi totalmente desarticulado pelas forças estado-novistas. Sobre a situação jurídica de Caio, diz Pericás:
Caio Prado Júnior foi julgado à revelia pelo Tribunal de Segurança Nacional, no Rio de Janeiro, em audiência do juiz Raul Machado, em 29 de novembro de 1938, por processo em São Paulo, e, dois dias depois, pelo juiz Lemos Bastos, em uma segunda ação judicial. Em 1º de dezembro, foi condenado a um ano e três meses de prisão celular, mas no dia 19 do mesmo mês o TSN deu provimento à apelação n. 226, requerida no processo 237, absolvendo o acusado. Sendo assim, Caio Prado Júnior recebeu o alvará de soltura, estando, portanto, apto a voltar ao Brasil. E foi o que fez em seguida.  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 112).
Capítulo 05 - Novas Trincheiras de Luta

Após retornar ao país em 1939, Caio passa a atuar na Comissão Jurídica Popular de Inquérito, criado pelo PCB em defesa dos comunistas presos pelo Estado Novo. Já em 1942, isolado em um sítio batizado de Jurupeva (e situado em Campos do Jordão), escreveu sua mais célebre obra: Formação do Brasil Contemporâneo. Sobre o objetivo dessa obra, diz Pericás:
Seu objetivo original era produzir uma histórica do Brasil em vários volumes, Formação seria o primeiro e abordaria o período colonial. Ao defender a tese de que o Brasil havia sido estruturado, desde o início, para atender às necessidades externas (e não para alimentar seu mercado interno), ele definiu o "sentido da colonização", categoria fundamental que explicaria o processo histórico brasileiro "como linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa e dirigida sempre numa determinada orientação"  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 114).
E mais,
O livro (na época apontado numa enquete patrocinada pela revista Diretrizes como contribuição básica e fundamental para o conhecimento de nossa formação social e política), o autor revelou as relações, os processos e as estruturas sociais, econômicas e políticas que operavam na composição e nas transformações de nossa sociedade, indicando o fator de instabilidade, de falta de continuidade no decurso histórico do país, ou seja, uma evolução por ciclos, com fases sucessivas de progresso, seguido de decadência, resultando num sistema e num processo econômico em que a produção e o crescimento se subordinavam a contingências extrínsecas. O desenvolvimento, portanto, significaria a superação do passado colonial e a eliminação do que ainda restava dele (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 114).
O seu retorno ao Brasil não originou apenas a publicação dessa obra, também foi possível fundar a Editora Brasiliense, em 1943. A editora exerceria um papel importante de publicação e tradução de obras no país. Já sua militância política no PCB permanecia e agora com novas polêmicas. Completamente desarticulado pelo Estado Novo, o PCB rumava para um processo de reconstrução após a entrada do Brasil na guerra. O embate no partido envolvia as seguintes facções:
Alguns grupos, na época, iniciavam a articulação para reconstruir o PCB, um dos quais formado no Rio de Janeiro, a Comissão Nacional de Organização Provisória, encabeçada por Amarílio Vasconcelos e Maurício Grabois, e da qual também faziam parte os baianos liderados por Arruda Câmara, além de João Amazonas, Mário Alves, Pedro Pomar e Giocondo Dias. O CNOP apoiaria Luiz Carlos Prestes na secretaria-geral do partido e defenderia a "união nacional", num esforço comum na guerra contra o nazifascismo na Europa. Por outro lado, Caio Prado Júnior daria seu suporte aos Comitês de Ação, que não aceitavam de imediato a liderança prestista e mantinham uma postura crítica e até mesmo hostil à ditadura estado-novista  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 116).
Esse embate foi resolvido após a realização da II Conferência Nacional do PCB, conhecido como Encontro da Mantiqueira, em que as visões do CNOP saíram vencedoras. Os prestistas barravam a ânsia de vários comunistas, como Caio, de formar uma frente democrática ampla contra a ditadura do Estado Novo; apostando na ideia de "união nacional" visando um inimigo em comum. Mas, de forma autônoma, Caio não respeitou tanto essas ideias e no I Congresso Brasileiro de Escritores assinou um manifesto com outros intelectuais em combate ao autoritarismo estado-novista. Também se manifestou contra a ditadura Vargas no caso do assassinato dos estudantes Demócrito de Souza Filho e Manuel Elias do Santos, em Recife. Ambos foram mortos pelas forças policiais que buscavam reprimir uma manifestação em oposição ao Estado Novo.

Nessa mesma época, diz Pericás, Caio chegou a flertar com a União Democrática Nacional (UDN) que surgia como uma frente ampla contra a ditadura Vargas. A UDN reunia oligarcas que perderam espaço após a Revolução de 1930, liberais, antigos militantes da ANL e até comunistas. Diz o autor que Caio chegou a sugerir o nome da organização, acrescentando o termo "democrática". Porém, seu apoio a UDN foi apenas inicial, Caio não apoiou seus candidatos posteriores e nem os rumos que tomaram à organização.

Nesse período, Prestes sai da cadeia e surge como nome unificador e centralizador no PCB. Seu retorno as atividades políticas, representava a reconstrução do partido. Apesar de discordâncias com Prestes, principalmente a ideia de "união nacional" que buscava aproximar os comunistas de Vargas, Caio respeitou o centralismo democrático e defendeu o líder comunistas publicamente. Porém, em seus diários, chegou a tratar Prestes e seus partidários da seguinte maneira:
Em muitos aspectos, a campanha prestista-comunista assume o colorido das campanhas fascistas. A mesma idealização e quase deificação do chefe; o mesmo radicalismo que não se [sente] aliás bem dentro da linha oficial do partido; as mesmas explosões emotivas e irracionais coletivas  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 125).
Mas retornando as suas atividades intelectuais, Caio publica em 1945 outra célebre obra: Histórica Econômica do Brasil em que "discutia o desenvolvimento nacional a partir dos primórdios da colonização até o chamado "Império escravocrata" e a "República burguesa", passando pela ocupação do território e pela expansão da empresa portuguesa por aqui, e no final ampliando o debate para temas como o imperialismo e a industrialização"  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 127).

O tema do imperialismo é importantíssimo na obra, pois Caio analisa como suas ações estão entrelaçadas na estrutura econômica do país. E mais: "De acordo com o historiador, em opinião expressa mais tarde, o imperialismo seria responsável por oprimir "o conjunto do país" e não, propriamente, a burguesia nacional, que se favoreceria com os monopólios estrangeiros (a maior parte dos negócios imperialistas era realizada, a seu ver, em conluio com setores burgueses, para explorar o mercado interno). O interesse primordial do imperialismo no Brasil era colocar sua produção em circulação dentro do país; para isso, precisaria de um regime política e economicamente estável a seu favor. Nesse sentido, a penetração imperialista teria favorecido o desenvolvimento da burguesia local  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 129). Logo, a transição da colônia para a nação não foi completamente realizada no país.

No PCB, Caio seria candidato como Deputado Federal Constituinte, mas não conseguiu vencer o pleito, conseguindo um pouco mais de 9 mil votos em São Paulo. A votação o colocou apenas como terceiro suplente. Mas o partido cresceu nas eleições de 1945, elegendo Prestes para o Senado e nomes como Marighella e Gregório Bezerra para a Câmara. Porém, nas eleições estaduais em 1947, Caio foi eleito deputado estadual com um pouco mais de 5 mil votos, sendo também o líder do partido na Assembleia Legislativa. "Caio iniciou sua ativa participação parlamentar, apresentando ou subscrevendo 31 emendas ao projeto constitucional, das quais 16 foram rejeitadas, 4 aprovadas parcialmente e 9 aceitas plenamente"  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 132). Graças ao acirramento da Guerra Fria, o PCB retorna à ilegalidade em 1947 e no ano seguinte, Caio perde seu mandato de deputado estadual; sendo preso por quase três meses.

Em 1949, Caio participa do Congresso da Paz em Paris e tem a oportunidade de conhecer dois países socialistas: a Polônia e a Tchecoslováquia. Em carta escrita para a mãe, em junho de 1949, tratou assim sua experiência nesses dois países: " Não falta aliás o que aprender nesses países; como se constrói um novo mundo. E é o que estão fazendo lá. Não se trata apenas de melhorar materialmente a sorte de cada um e de todos, mas também, moralmente, de criar uma sociedade melhor, em que os homens não sejam inimigos uns dos outros, mas vivam em harmonia e trabalhando em conjunto para a felicidade de todos"  (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 142).

Capítulo 06 - A Batalha das Ideias

O presente capítulo vem debater a atuação política e intelectual de Caio, durante os anos de 1950. No campo intelectual, Caio desenvolve estudos sobre Filosofia e a Questão Agrária no Brasil. É nesse período que ele publica a obra Dialética do Conhecimento (1952). Suas reflexões no campo filosófico, sofreram duras críticas. Grande parte das críticas giravam em torno da forte influência marxista em seus escritos, sendo esses uma espécie de reprodução do que intelectuais soviéticos pensavam sobre o tema. As críticas vinham de antigos amigos como Sérgio Buarque de Holanda, até de outras figuras como Oswald de Andrade.

Mas também ele recebeu muitos elogios, entre esses, Pinto Ferreira e Jacob Bazarian; e entre críticos e apoiadores, sua obra Dialética do Conhecimento ganhou o prêmio Horácio Lafer, do Instituto Brasileiro de Filosofia. Apesar da forte influência marxista, o escrito não foi bem recebido pelo Comitê Central do PCB. Caio chegou a receber desaprovação externa, como do dirigente comunista argentino Benito Marianetti, que em cartas o avisou sobre o impacto negativo que a obra causou entre os militantes do PCA. As principais críticas giravam em torno de um questionamento feito por Caio, sobre a visão(para ele, incorreta) que Engels tinha de que as leis da dialética são fatos imanentes ao meio natural. Apesar de tais críticas, Caio não recuou em suas ideias.

Na política, Caio se posicionaria contra a intervenção imperialista dos EUA na Guatemala e, sob os impactos causados pelo XX Congresso do PCUS, "o historiador paulista admitiu que as falhas do dirigente soviético haviam retardado o avanço do socialismo na URSS e "que sem a ditadura de Stalin, o socialismo teria feito progressos mais rápidos". Ainda assim, acreditava que as novas diretrizes da era Kruschev permitiriam que o povo e as "massas" vivessem no país com segurança" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 153).

Em 1953, Caio tenta ingressar como professor na USP com a tese Diretrizes para uma política econômica, mas não obtém sucesso. Nessa tese, Caio defende a seguinte visão de Brasil:
O país continuava, segundo ele, essencialmente a produzir artigos primários, destinados ao mercado externo, enquanto a maior parcela dos itens para consumo interno era importada. Mesmo com a industrialização durante a Primeira Guerra Mundial, e principalmente ao longo da Segunda, quando o Brasil teve uma produção diversificada (aumentando, consequentemente, o nível de parte da população), o problema não havia sido resolvido (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 155).
Quais as soluções propostas por ele para a superação desses problemas? Segundo suas ideias:
Mister, nesse caso, seria ampliar a capacidade de criar esses artigos internamente e, ao mesmo tempo, constituir um mercado endógeno, a partir da elevação da qualidade de vida do homem do campo. Investidores brasileiros(ou forâneos "radicados" aqui) teriam a tarefa de impulsionar a industrialização, enquanto o Estado tomaria as mãos a prerrogativa de realizar macroempreendimentos que a iniciativa privada nacional não tivesse condições de levar a cabo (ou que fossem considerados fundamentais para estimular a economia privada). Caio Prado Júnior era a favor do monopólio estatal do comércio exterior e de uma reforma agrária com modificação do estatuto da propriedade fundiária, cujo titular deveria ser aquele que efetivamente investiria na exploração da terra, em seu trabalho e em seus recursos (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 155).
Para que essas reformas fossem instituídas no país, não se fazia necessário a implantação imediata do socialismo, segundo Caio. Elas poderiam ser realizadas por forças próprias do capitalismo. Porém, a empreitada mais importante de Caio nos anos de 1950 foi a criação da Revista Brasiliense em 1955. A revista foi fundada junto com alguns intelectuais do PCB, reunindo importantes escritos da esquerda brasileira da época. "A Revista Brasiliense, portanto, funcionaria como um veículo "extrapartidário", no qual as forças progressistas (desde nacionalistas de esquerda até marxistas) poderiam se expressar. Por um lado, o historiador paulista não tinha nenhuma posição de proeminência nas fileiras de seu partido, e queria ter sua voz ouvida. Por outro, continuava perseguindo um ativo trabalho político, mesmo que no mundo das ideias. A Revista Brasiliense seria esse instrumento" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 157).

Apesar de conter intelectuais do PCB em sua direção, como Caio e Elias Chaves Neto, a Revista Brasiliense mantinha independência do partido; tendo vida financeira própria. As publicações não precisariam, então, passar pelo crivo aprovatório dos dirigentes do PCB. A qualidade da revista causou simpatia até do PCUS que, pelo contrário, não enxergavam com bons olhos a revista Estudos Sociais, dirigida por Astrojildo Pereira. Mas ainda sobre a independência da revista em relação ao PCB, diz Pericás:
As posições da Revista Brasiliense e do PCB, de fato, eram bastante distintas em diversos pontos. Se o partido chegou a apoiar os governos de Kubitschek e Jango, a RB atacou duramente a ambos. Caíto acusou o primeiro como "certamente o mais entreguista" e "antipopular" da história do país, no qual "nunca a economia brasileira atingiu tamanha orgia imperialista"" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 159).
Caio atentava para a colaboração que o governo JK oferecia ao grande capital, afastando-se das demandas históricas das classes trabalhadoras e populares. "Segundo o historiador, o partido via o capitalismo no Brasil naquele momento como um sistema progressista, cabendo a ele ampará-lo e promovê-lo, o que resultaria, um última instância, no desenvolvimento e se encaixaria no "desenvolvimentismo" de Kubitschek. Essa seria, portanto, uma avaliação equivocada" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 160).

Já sobre o governo Jango, Caio enxergava que sua tentativa de controlar os déficit público e a nacionalização dos setores industriais era movida por um "populismo espúrio", que aliava o "capital burocrático" com a esquerda. Ele também enxergava continuidades entre Jango e JK como grande exploração da força de trabalho, aumento da dívida pública, grandes remessas de lucros para o exterior etc. Além disso, "O historiador chegaria a dizer, mais tarde, que Jango seria o responsável por demagogias tolas (citando, nesse sentido, o projeto de desapropriação de terras nas beiras de estradas) e por políticas superficiais, "sem nenhuma profundidade ou penetração" nas massas..." (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 161).

Críticos aos governos JK e Jango, os intelectuais que compunham a produção da revista, produziram críticas a teóricos próximos de tais governos como Celso Furtado. Em suma, as ideias cepalinas não pareciam muito simpáticas aos teóricos presentes na Revista Brasiliense. Os teóricos mais assíduos eram militantes comunistas, porém, afastados do poder decisório do PCB. No âmbito internacional, a revista se posicionou favorável aos processos revolucionários em Cuba, na China e na URSS de Kruschov. A revista abarcava temas diversos como industrialização, movimento operário, economia, filosofia, sociologia, luta anti-imperialista etc.

Na revista também se discutia sobre a questão agrária, tema que vinha ocupando muito tempo de Caio. Ele apontava para a alta concentração de terra, a presença da grande exploração rural como "empresa mercantil", apontava para os baixos salários pagos aos trabalhadores rurais e contestava possíveis soluções propostas pela Sudene. Pericás lembra que a questão agrária representava uma das principais divergências entre Caio e o PCB, pois a organização adotava desde 1928 a interpretação que enxergava o Brasil como um país marcado pelo modo de produção feudal; sendo necessária primeiro uma revolução democrático-burguesa para em seguida rumar para o socialismo. Caio contestava esse suposto passado feudal do país e "insistia em que, caso se quisesse considerar as origens "históricas" das relações de trabalho da agropecuária do país, seria mais correto falar de restos "escravistas", "semiescravistas" ou "servis", e não "feudais" ou "semifeudais", que, segundo ele, não correspondiam à realidade do país" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 165).

A revista também debatia literatura, dando espaço para autores como Monteiro Lobato. Lobato, sempre adversário de ditaduras e autoritarismos, foi reverenciado pela ANL nos anos de 1930 e chegou a fundar, junto com Jorge Amado e Tarsila do Amaral, o Instituto Cultural Brasil-URSS. Sempre denunciando o colonialismo cultural, Lobato foi amigo íntimo de Caio e foi a figura da literatura que mais teve espaço na revista. Outro tema caro para a revista era o nacionalismo, onde Caio enxergava uma importância primordial. Segundo Pericás:
Já para Caio Prado Júnior, o "nacionalismo" seria a "condição essencial" para o desenvolvimento. Afinal, no sistema capitalista mundial (que constituía um sistema de conjunto em que cada país ou grupos de nações mais ou menos homogêneos ocupavam situações "qualitativamente diversas", que representavam um complexo entrelaçamento de relações que dava a cada um deles uma "feição própria e exclusiva" e uma função econômica específica), o Brasil encontrava-se numa posição periférica, complementar, subordinada e dependente. A superação desse status no quadro mundial seria fundamental, o que se conseguiria somente com um câmbio estrutural (e não mudanças "aparentes" e "formais" do sistema), consistindo em organizar nosso quadro econômico a partir de bases "propriamente" nacionais e em função da massa da população, com uma indústria integrada à economia do país (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 167).
Em suma, a Revista Brasiliense terá uma atuação chave na produção intelectual do país nos anos de 1950, só encerrando suas atividades após o golpe militar imposto em 1964.

Capítulo 07 - De volta ao mundo do socialismo

O capítulo debate a volta de Caio a países socialistas, dessa vez visitando a China, além da URSS que já tinha conhecido outrora. A viagem a URSS ocorreu em 1960 e, no ano anterior, Caio se afastou oficialmente da União Cultural Brasil-Estados Unidos. E um mês antes de viajar, fundou a União Cultural Brasil-União Soviética, junto com figuras como Florestan Fernandes, Elias Chaves Neto, Mário Schenberg, Sérgio Milliet etc.

Caio encontraria uma Moscou bastante modificada em relação a sua primeira visita. A capital da URSS tornou-se o principal centro cultural do país, desenvolvendo-se também economicamente. Mas em carta endereçada ao filho, o historiador paulista destaca aspectos um tanto inusitados da URSS, como o futebol:
Quanto mais se vive mais se aprende, sobretudo viajando. Estou aprendendo muita coisa, e sobretudo que realmente o regime político e social deste país é o futuro de toda a humanidade. Mas aprendi outras coisas também, que o futebol igualmente aqui é o esporte mais popular. Visitamos ontem o estádio Lenin, o maior daqui, com capacidade para 100.000 pessoas. Havia um jogo importante, estava cheio. É menor que o Maracaña, mas muito mais limpo e bem tratado; uma perfeição em todos os sentidos. Você gostaria muito, e se estivesse aqui, teríamos assistido ao jogo. E você poderia julgar a técnica do futebol soviético. Todo mundo conhece aqui o Pelé, e sabe-se do Brasil sobretudo pelo seu futebol. [...] Agora vamos viajar um pouco pela URSS. Um grande abraço muito e muito afetuoso (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 174).
Mas Caio não viu apenas flores na URSS, também criticou a filosofia produzida no país, taxada por ele de idealista. Porém, em carta a Carlos Nelson Coutinho, acreditava em avanços futuros na filosofia soviética. Após um mês em solo soviético, Caio ruma para a China que desde 1958 estava sob impulso do chamado "grande salto adiante", conjunto de políticas que visavam amadurecer as condições para o triunfo do comunismo no país. Neste contexto,
Em 1960, ano em que Caio Prado Júnior visita o país, a reunião ampliada do Bureau Político do Comitê Central do PCCh, realizada em Xangai em janeiro daquele ano, havia previsto um novo "grande salto adiante", influenciando os projetos tanto para os meses seguintes quanto para os últimos três anos do Segundo Plano Quinquenal (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 176).
Na prática, afirma Pericás, apenas 77% das metas foram cumpridas. O único conhecimento que Caio tinha da realidade chinesa, baseava-se em um relatório feito pelo equatoriano Manuel Agostín Aguirre, mostrando as recentes transformações pelas quais passavam o país asiático. Além de Pequim, a capital chinesa, Caio conheceu outras cidades relevantes como Xangai e Wuhan. Sobre suas impressões, diria que "Há muito ainda por fazer, mas que a obra está sendo levada a cabo, não pode ter dúvidas: em dez anos no máximo, a China é o primeiro país do mundo" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 178).

Em seu retorno ao Brasil, Caio oferece uma palestra na Biblioteca Municipal de São Paulo, passando um pouco das suas impressões. Também escreve o artigo Convivência Pacífica, publicado na Revista Brasiliense, em que defende a política soviética de coexistência pacífica; fazendo coro a "Declaração de Moscou". Com esse escrito, segundo Pericás, Caio parece ainda desconhecer os conflitos sino-soviéticos que se desenvolverão de forma mais explícita nos anos seguintes. Além desse artigo, as experiências de Caio nessa segunda viagem a países socialistas, culminará na obra O Mundo do Socialismo. Porém, no artigo já citado, Caio defende a ideia kruschevista de coexistência pacífica, afirmando ser contrário tanto a exportação da revolução quanto da contrarrevolução. Segundo ele,
Entre o capitalismo e o socialismo somente há hoje, no plano internacional, uma forma admissível de contenda: a competição pacífica. Que se conceda a cada qual dos dois sistemas a oportunidade de exibir seus méritos respectivos, e sua capacidade de fazer frente aos angustiantes problemas econômicos, sociais, morais e culturais que se apresentam na atual conjuntura e fase da evolução histórica da humanidade. E que se deixe a essa humanidade o direito de julgar, isto é, decidir sem o recurso à imposição pela força de um povo sobre outro, qual dos dois sistemas ela prefere (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 179-180).
A obra O Mundo do Socialismo, publicada em 1962, também fazia a defesa dessa coexistência pacífica; rasgando elogios ao XXII Congresso do PCUS, de 1961, e do seu programa rumo ao comunismo. Contraditoriamente, a mesma obra tece elogios a figura de Che Guerava que que seguia uma linha política oposta a defendida por Kruschev e seus correligionários no PCUS. No mesmo ano do lançamento desta obra, o PCB foi palco de um racha interno, surgindo então o PCdoB; então mais próximo das teses defendidas pela China Maoísta. Em suma, a obra segue em uma defesa incondicional a URSS, assim como fizera em URSS - um novo mundo, lançado em 1934 após sua primeira viagem ao país. Talvez já entendendo um pouco do conflito sino-soviético, Caio fará esparsas citações sobre o socialismo chinês. Segundo Pericás, de forma ingênua, Caio defende a ideia de que a repressão política nos países socialistas era inicialmente necessária para garantir a vitória da revolução, entretanto, tais procedimentos não eram mais utilizados graças a simpatia popular para com o socialismo. Segundo CPJ:
A severidade e violência que acompanharam no passado a implantação do socialismo nada têm assim a ver com a natureza do regime. Apesar de ainda cercados de um mundo capitalista hostil que não se conforma com a existência e presença do socialismo, apesar das provocações de toda ordem de que são vítimas - a virulenta propaganda anticomunista generosamente subsidiada que se despeja nos países socialistas entre outros através do rádio e da infiltração de agentes sabotadores -, apesar disso, e de muito mais, os países socialistas já hoje consolidaram e estabilizaram inteiramente sua vida, e os aparelhos especiais de repressão interna desapareceram por completo (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 183).
Caio Prado Júnior também visitou a ilha de Cuba. Logo após a vitória dos rebeldes liderados por Fidel Castro e Che, o historiador se mostrou simpático a tal experiência política que acontecia no Caribe. Assim como o PCB e o PTB (pelo menos a seção paulista, segundo Pericás), Caio defendeu a Revolução Cubana. Em 1961, participou do Encontro Estadual de Amigos de Cuba; junto com figuras como Michael Lowy, Boris Fausto, Mário Shenberg, Elias Chaves Neto etc. No evento, trotskistas como o historiador Boris, defendeu a expansão da experiência cubana para o resto da América Latina e, se prestaria solidariedade a causa cubana caso o país instaurasse um poder operário. Já os demais comunistas, assim como outros anti-imperialistas presentes, defendiam uma maior moderação com a necessidade de um processo revolucionário etapista.

Caio visita Cuba em 1961. No país, se impressiona com as semelhanças com o Brasil, assim como se espanta com a campanha pelo fim do analfabetismo na ilha, mobilizando cerca de 300.000 voluntários. Mas apesar dessas impressões, não existe um escrito específico de Caio sobre sua experiência a ilha socialista. O que existem são apenas cartas e não obras como as que foram feitas sobre a realidade soviética. Mas a Revolução Cubana entusiasmou todo o continente e também o Brasil. A Revista Brasiliense foi palco de vários escritos sobre a ilha caribenha que se mostrava um exemplo a ser seguido pelos demais países latino-americanos. Mas o máximo que Caio produziu sobre Cuba pós-viagem, foi a participação em uma conferência chamada "A revolução e a realidade de Cuba", além de congressos em solidariedade ao país.

Caio enxergava com bons olhos a reforma agrária produzida pelos cubanos, principalmente porque a estrutura fundiária da ilha tinha semelhanças com a vista no Brasil. Por fim, Pericás destaca a viagem que Caio faz em 1963 a outro país socialista, desta vez trata-se da Alemanha Oriental. Defensor do Muro de Berlim, Caio enxergava como necessária a sua construção por conta do seguinte:
Caio, por sinal, defenderia a construção do Muro de Berlim, erigido em 1961. Numa carta escrita vários anos mais tarde (o que mostra que, nesse caso específico, suas opiniões não haviam mudado), o historiador justificaria a iniciativa de se levantar o muro, considerando-a "como correta e necessária". Para ele, tanto na Alemanha Oriental como nos outros países socialistas, havia um serviço social muito desenvolvido, que abrangeria desde o ensino gratuito (em todos os graus) até a assistência de saúde. Isso tudo atraía os alemães de Berlim Ocidental, que tinha circulação livre até então. Esses cidadãos trabalhavam e exerciam suas atividades produtivas na parte oeste da cidade, mas moravam no setor oriental para se beneficiar das vantagens que o lado socialista oferecia. Isso, segundo o historiador, criava um quadro complicado para a RDA, já que o governo estaria dando ampla assistência, subvencionando sua formação intelectual e técnica, a indivíduos que, na prática, não integravam de fato sua população, nem contribuíam em nada para o país. Essa situação se tornava a cada dia mais insustentável para a República Democrática Alemã: a única solução seria, nesse caso, isolar as duas áreas da cidade (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 198).
Essa seria sua última viagem para um país socialista e, no ano seguinte, um golpe militar seria deflagrado no país com nova prisão de Caio.

Capítulo 08 - Do golpe de 1964 aos debates sobre a revolução brasileira

Pericás relata a vida de Caio após o golpe militar em 1964. Logo após a deflagração do golpe, o historiador paulista saiu às ruas junto com Elias Chaves Neto e se surpreendeu com a normalidade da movimentação. Chegou até pensar em rumar para o sul do país, onde possivelmente poderia ocorrer uma resistência no Rio Grande do Sul, mas retornou antes mesmo de passar as fronteiras paulistanas. Já em abril, Caio foi preso junto com seu filho, Caio Graco, e passou seis dias em reclusão. Mesmo solto, Caio não deixou de ser observado e interrogado pelos militares que o acusavam de subversão.

Com a extinção da Revista Brasiliense, Caio ajudou a fundar uma nova: a Revista Civilização Brasileira que viria para substituir a RB, contando com importantes e renomados colaboradores como Octávio Ianni e Nelson Werneck Sodré. Em 1965, Caio sofre a segunda prisão pelos militares. Isso em abril, pois em junho seria preso pela terceira vez e dessa mais uma vez com seu filho, Graco. Mas qual a posição do PCB frente a nova conjuntura? A posição dos pecebistas foi de moderação, como retrata Pericás:
Ainda em maio daquele ano, 32 dirigentes comunistas participaram da primeira reunião plenária do Comitê Central do PCB desde o golpe, na qual foi aprovada a tática política de tentar isolar e derrotar os militares a partir do movimento de massas e assim conquistar um governo "amplamente representativo das forças antiditadura" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 205).
Tal posicionamento não agradou os setores mais radicais do partido que buscaram criar outras organizações, tentando combater os militares por intermédio da luta armada. Em 1966, Caio publica outra grande obra, trata-se da A Revolução Brasileira, que venceria o prêmio Juca Pato, concedido pela UBE e o jornal Folha de S. Paulo. O debate feito por Caio no livro não era grande novidade, pois diversas outras figuras escreveram sobre a natureza da revolução brasileira. Mesmo assim, sua obra causou um grande impacto na esquerda do país, pois "Nele, era possível encontrar críticas duras à ideia de existência de uma "burguesia nacional anti-imperialista", ao "reboquismo" pecebista nos governos JK e Jango, às teses sobre o "feudalismo" na história brasileira e às "sobrevivências feudais" no campo. Para ele, a agricultural no país era "capitalista", e as relações de trabalho na área rural, de regime assalariado" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 207). Caio também se mostrava crítico das táticas que apostavam na luta armada contra a ditadura, postura que fez muitos acusá-lo de "reformista". Sendo assim, Caio defendia as teses pecebistas da frente ampla e democrática contra os militares.

Mas a principal tese do livro, e que causaria maior repercussão, foi a de que a luta anti-imperialista deveria desmistificar a ideia da existência de uma burguesia nacional progressista versus uma burguesia mercantil que se vinculava aos interesses estrangeiros. Para ele, ambas as burguesias tinham alianças políticas e afinidades ideológicas. O livro recebeu elogios, como as realizadas pelo sociólogo Florestan Fernandes. Entre os críticos, encontram-se figuras como Wladimir Pomar, Paulo Cavalcanti, Ruy Fausto e Ruy Mauro Marini. Após seu lançamento, Caio fez várias palestras debatendo as teses expostas na obra. Seja para apoiá-la ou criticá-la, a obra se tornou a principal produção de Caio durante os anos de 1960 e segue incentivando debates sobre a natureza da revolução brasileira até os dias atuais.

Capítulo 09 - A hora das fornalhas

As transformações nos movimentos sociais mundo afora, afetou Caio. Oriunda do movimento estudantil, os protestos de Maio de 68 na França modificaram as bases da esquerda e dos setores progressistas a nível internacional. Junto com esses movimentos, surgiram as demandas por revisão e redefinição do chamado "socialismo real". Essa busca por oxigenação do marxismo ganhou força no Ocidente e respingou nos países da chamada "Cortina de Ferro" e Caio enxergava nesses movimentos uma legitimidade.

Porém, as respostas (ou não respostas) dadas pelos soviéticos, fizeram Caio se decepcionar com o país que considerava como "pátria do socialismo". Visitando o país duas vezes, publicou livros exaltando e defendendo a sociedade socialista que ali se estabelecia. Manteve ótimas relações com intelectuais soviéticos, ambiente onde era muito respeitado; e ajudou a fundar a União Cultural Brasil-União Soviética. A Revista Brasiliense que coordenou por anos, tinha vários exemplares em bibliotecas de Moscou. Fascinado que era pelo país, Caio fez assinatura de diversas revistas soviéticas, objetivando sempre se atualizar sobre as demandas e desafios do país.

Mas a partir de 1968, Caio passa a ter uma posição crítica da URSS, sendo a invasão da Tchecoslováquia o ponto inicial desta ruptura. A crítica se solidificou ainda mais com a posterior invasão da Polônia. Sobre o caso da Tchecoslováquia, descreve Pericás:
A democracia popular que protagonizou os mais importantes fatos naquele ano, contudo, foi a Tchecoslováquia. No primeiro semestre de 1968, Alexander Dubcek, que encabeçava o Partido Comunista da Eslováquia, apoiado por um grupo de reformistas (coo Josep Smrkovsky, Oldrich Cerník e Frantisek Kriegel), conseguiu, após fortes pressões, que o então primeiro-secretário do PCT e presidente do país, Antonín Novotný, renunciasse a ambos os cargos, com o intuito de implementar mudanças liberalizantes que, supostamente, trariam maior eficiência econômica e liberdade individual para a população. Dubcek ocuparia seu lugar na liderança do partido, o general Ludvik Svoboda substituiria Novotný na presidência e Cerník se tornaria o primeiro-ministro (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 221-222).
Visando um projeto de transição, a ideia era adotar medidas como relaxamento da censura, ênfase econômica nos bens de consumo, governo multipartidário etc. O economista Ota Sik lideraria as mudanças na economia. Segundo Pericás, tais medidas foram bem recebidas pela maioria da população, assim como por intelectuais estrangeiros. Porém, mesmo reafirmando sua fidelidade aos princípios do marxismo-leninismo, a Tchecoslováquia foi invadida pelas tropas do Pacto de Varsóvia em agosto de 1968 em uma operação chamada de Danúbio. Dubcek foi preso e no seu lugar foi posto Gustáv Husák, alinhado a chamada "Doutrina Brejnev". Tal foi a repercussão internacional da invasão:
A invasão da Tchecoslováquia tomou de surpresa a intelectualidade de esquerda internacional. Se Álvaro Cunhal, Gus Hall e Fidel Castro declararam apoio à ocupação, PC's importantes, como os da Itália e da França, repugnaram aqueles atos. E personalidades do mundo literário como Carlos Fuentes, Jean-Paul Sartre, Simone de Beavouir, John Cheever, Arthur Miller, I. F. Stone e William Stryron, entre muitos outros, pronunciaram-se contra o ataque soviético (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 223).
No Brasil, intelectuais como Anísio Teixeira, Octávio Ianni, Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar etc., também repudiaram a invasão soviética. Entre esses intelectuais, estava Caio Prado Júnior, que chegou a enviar uma carta de repúdio ao embaixador soviético no Brasil. A consequência não poderia ser outra:
A partir daí, houve claramente um desconforto e um clima de insatisfação "intramuros". Caio Prado Júnior receberia até mesmo críticas de alguns camaradas por causa de seus posicionamentos, ainda que, publicamente, não se manifestasse contra a União Soviética. Há quem diga que ele teria se tornado, daí em diante, persona non grata em Moscou. Apesar de tudo, ele não foi expulso nem expressou desejo de sair do partido (ainda que efetivamente sua militância nele fosse exígua naquele momento). E continuou interessado nos estudos acadêmicos produzidos naquele país. Mas o fato é que nunca mais visitaria a terra de Lenin (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 224).
Capítulo 10 - Reforma, revolução e socialismo

Pericás acredita que Caio Prado está inserido no amplo e acalorado debate dentro do marxismo sobre os papéis a serem desempenhados da reforma e da revolução. A tradição marxista, em suas diferentes correntes, sempre buscou tratar a reforma e a revolução como termos não excludentes. Assim, "A revolução, portanto, poderia ser interpretada como uma ruptura abruta e radical da ordem instituída, mas também como um processo simultâneo de pequenas alterações ao longo do percurso, juntamente com profundas transformações sociais" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 225). Apesar de muitas vezes ser acusado de reformista ou neorreformista, Caio se posicionava totalmente contra a ideia de um "capitalismo reformado", combatendo a iniciativa privada.

Diante das críticas de que era reformista por seus posicionamentos na obra A Revolução Brasileira, Caio afirmou que quem deveria receber tal alcunha não era ele, mas o PCB que o criticava. Ao idealizar a existência de uma burguesia nacional progressista, o PCB mantinha uma postura política reformista e em consonância com os interesses da burguesia. Segundo o historiador:
Em geral, com pequenas exceções, toda a esquerda participa desta política, ou seja, criou uma burguesia progressista, que seria um setor revolucionário da burguesia. Tratar-se-ia então de defender os interesses, a posição econômica e política desta burguesia progressista e isto faria 'avançar' a revolução brasileira, eliminando o feudalismo. É uma questão interligada: daí o oportunismo, uma política caudatária desse setor burguês, quando isto não existe (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 227).
Sua posição crítica em relação as táticas do PCB já poderiam ser vistas antes do golpe militar de 1964. Em 1960, por exemplo, chegou a afirmar que o partido substituiu a organização das bases pela política de cúpula, visando fins sindicais e eleitorais. Apesar de não defender os movimentos guerrilheiros que se formaram durante a Ditadura Militar, Caio não enxergava possibilidades de transformações profundas na sociedade capitalista sem conflitos violentos. "No começo da década de 1930, afirmou, em relação à violência, que "ela é a lei das transformações sociais; nenhuma se operou sem o seu concurso. Uma sociedade de classes, fundada em conflitos permanentes, só pelo aguçamento destes conflitos, levados ao extremo da violência, é capaz de se transformar, de evoluir"" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 227). Ao mesmo tempo, ele não desconsiderava a importância das reformas na construção do socialismo. Elias Chaves Neto, assim resumiu a visão caiopradiana de reforma:
Alegava Caio Prado que não existe medida que em si mesma possa ser taxada de reformista. Ela tem que ser analisada em vista do resultado almejado. Se se trata de atenuar o sentimento revolucionário (por exemplo, se tivesse por fim sofrear a luta das massas pela tomada da terra), ela seria reformista; se se trata, pelo contrário, de avivar uma reivindicação tornando-a exequível, ela atua em sentido revolucionário. É o que mais tarde Togliatti respondia aos que o acusavam de reformista, a saber, que se uma reforma levantada por um partido comunista ativo é seguida por outra, tal fato não importa em frear a revolução, mas pelo contrário, implica em marcha para o socialismo (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 228).
Sendo assim, as lutas sociais sempre tiveram importância fundamental no pensamento de CPJ. Alcançada suas conquistas, a classe trabalhadora teria, para ele, todo o direito de defendê-las por meio de uma resistência armada. Sobre a necessidade dessa resistência que garanta as conquistas alcançadas, dizia Caio:
Imaginar um capitalismo bucólico, a tocar sua flauta inocente de pastor num cenário de belezas e perfeições, onde somente o lobo mau deve ser castigado, é muito bonito como história para crianças para ser contada nos cursos de economia política das Universidades burguesas. Mas os pastores concretos e verdadeiros deste mundo sublunar em que vivemos sabem muito bem no seu realismo terra a terra que aquele capitalismo nunca existiu, e cada vez existirá menos: a luta é dura, e os "golpes" são indispensáveis (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 229).
Caio defendia o protagonismo das classes trabalhadoras urbanas no processo revolucionário que levasse ao socialismo. Sobre esse processo ser violento ou não, ele deixava claro que o caminho a ser seguido dependia exclusivamente das circunstâncias do momento, tratando a questão de maneira prática e objetiva. Mas ele enxergava os movimentos guerrilheiros no Brasil fadados ao fracasso, por conta de diferenças de formação em comparação com outros países. Na Bolívia, por exemplo, existia um movimento camponês ativo que inexistia no Brasil. Os movimentos revolucionários, incluindo o PCB, não conseguiam movimentar e conscientizar de forma satisfatória os trabalhadores do campo que reivindicavam seus direitos de forma confusa e desorganizada.

Pensador livre, Caio sempre foi crítico das amarras dogmáticas que afetavam o PCB. Para ele, o socialismo não é uma receita de bolo dogmatizado, mas um processo de transição. Segundo o mesmo, "A substituição de um sistema por outro atravessa etapas sucessivas em que vamos encontrar, lado a lado, em proporções variáveis, caracteres de um e outro: os do primitivo, em vias de desaparecimento, os do novo, desenvolvendo-se continuadamente" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 232). Enxergando a revolução como um continuum, ela deveria ter como protagonista as massas populares e não alguns homens. Assim,
No esquema caiopradiano de revolução, os problemas brasileiros não poderiam ser resolvidos dentro do regime burguês vinculado aos interesses dos imperialistas e ao atraso dos grandes latifundiários no campo. Ainda que a revolução tenha de cumprir tarefas democráticas, incorporando grandes setores excluídos da população à vida nacional, ela tem um caráter de transição para o socialismo, e os trabalhadores são os líderes desse processo. A suposta "etapa" democrática, portanto, não seria "burguesa", mas condicionada, em última instância, ao caráter global socialista. E a revolução brasileira não deveria ser vista como um sistema acabado, mas como um processo permanente, ininterrupto e dinâmico (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 235).
A vitória inicial das massas abriria caminho para o socialismo, criando um regime verdadeiramente democrático. Sua visão sobre a luta armada nos anos de 1960, estava alinhado a visão soviética, então defensora da coexistência pacífica. Segundo a visão soviética, representada em Pericás pelos escritos de Alexei Rumiántsev, a via pacífica é uma possibilidade; enquanto a via armada é uma possibilidade quando a via pacífica não obtém êxito. O que existe  entre a coexistência pacífica e a via armada, são as circunstâncias e a correlação de forças de uma dada realidade. Ainda assim, afirma Alexei, "Nenhuma revolução social profunda é concebível sem ações políticas de massas, sem aplicar medidas coercitivas contra os exploradores, sem estabelecer a ditadura das classes revolucionárias, ou seja, sem determinadas formas de violência social" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 236). Essa posição kruschevista foi adotada e defendida por CPJ. Tal posição encontrava certa consonância com o pensamento marxiano, como aponta Pericás.

Na década de 1860, Marx admitiu a possibilidade de reformas sem ser por uma via necessariamente violenta. Após a derrota em 1848, não acreditava no imediatismo da revolução na Europa, muito menos achava que ela teria teor socialista de imediato. "Em setembro de 1872, após uma conferência em Haia, o autor de A miséria da filosofia, concedeu uma entrevista para a imprensa na qual afirmou que, mesmo sendo a transformação revolucionária ainda inevitavelmente o objetivo mundial, o método para alcançá-la poderia variar: "as instituições, os costumes e as tradições de vários países devem ser levados em consideração", diria" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 237). É possível perceber que o anti-dogmatismo de Caio, fazia suas reflexões se aproximarem dos fundadores do socialismo científico.

Capítulo 11 - O homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil

Em dezembro de 1968, os militares impuseram o AI-5, o ato institucional mais restritivo da Ditadura Militar. Diante do fechamento do regime e de suas ligações com o PCB, Caio optou pelo exílio para o Chile, antes que fosse preso. Sua decisão foi correta, pois ele logo seria processado pela Justiça Militar de São Paulo por declarações consideradas como "subversivas" em 1967, ao ser entrevistado pela revista estudantil da USP, chamada de Revisão. Caio foi processado como incitador da ordem pública, por dizer que "não devemos discutir a forma de lutar, e sim começar a lutar" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 239). O AI-5 também trouxe dificuldades financeiras, pois a Editora Brasiliense se viu obrigada de se desfazer de seus estoques por conta das proibições dos militares. Segundo Pericás:
Nessa época, mostrou sua confiança na juventude como agente importante no processo dos câmbios necessários. Os estudantes deveriam, em seu entendimento, compenetrar-se da "triste situação política" em que o país se encontrava e, depois de formados, não poupar esforços para lutar por um Brasil melhor (ainda assim, ele próprio admitia que nunca tivera qualquer ligação com o movimento estudantil desde seus tempos de faculdade e nunca se interessara especialmente pelas questões relacionadas a ele) (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 240).
Apesar da aposta no movimento estudantil, Caio não acreditava que os estudantes pudessem, sozinhos, os líderes da revolução. Mesmo que se transformassem em guerrilheiros, o máximo que poderiam fazer era estimular o proletariado urbano e rural, sendo esses setores os verdadeiros protagonistas da luta revolucionária. No exílio, Caio sentiu uma forte solidão, como bem descreve Pericás no seguinte trecho:
Foram momentos de angústia e solidão. É verdade que encontrou seu neto, Nelson, filho de Danda, que decidira por conta própria ir ter com o avô que tanto admirava (ele ficaria algumas semanas em Santiago), e diversos brasileiros que haviam optado pelo mesmo destino. Mas o fato é que Caio sentia-se mal longe do Brasil. "Vida bem pouco atraente de exilado", diria" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 241).
A principal amizade que alimentou no exílio foi com Plínio de Arruda Sampaio, filho de João Baptista de Arruda Sampaio, um colega nos tempos de Faculdade de Direito. No Chile, Caio passava a maior parte do tempo lendo ou passeando pela capital Santiago. Em carta ao filho Roberto, de abril de 1969, diria o seguinte: "Tenho medo de um súbito breakdown, contra o que não fica outro remédio senão o retorno ao Brasil. E se isso não for possível, já não sei mais o que será de mim" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 244). Diante de tanta aflição, Caio decide retornar ao país e é preso em março de 1970, como já era esperado. Aos 63 anos de idade, foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão por simplesmente expressar seu pensamento em uma revista estudantil.
Para Elias Chaves Neto, ele foi condenado "por ser um pensador marxista e por seu passado político". O marechal Stenio Caio de Albuquerque, por sua vez, diria que o objetivo dos militares era "dar um exemplo aos intelectuais". Em certo momento da instrução do processo, o oficial que interrogava Caíto chegou a lhe perguntar: "O senhor é o homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil, não é?". Vê-se por aí o nível daqueles que o julgavam (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 245).
CPJ cumpriu a primeira etapa da pena no Presídio Tiradentes, convivendo com outros presos políticos como o historiador comunista Jacob Gorender. Fumante, transmitia as mensagens de seus companheiros da prisão por intermédio de papéis enrolados e colocados cuidadosamente dentro dos cigarros. "Sua cela tinha em torno de quatro metros por quatro, beliches, televisão e um fogão elétrico de uma única boca, no qual se preparava comida ou café. Ali, CPJ recebeu até livros marxistas, já que vários eram em língua estrangeira, o que aparentemente ludibriava as autoridades prisionais (outros vinham sem capa ou com essa trocada pela de outras obras)" (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 248). Os momentos mais difíceis na cadeia, certamente foram quando descobriu o suicídio do seu filho Roberto, o caçula, em dezembro de 1970. Caio ficou preso até agosto de 1971, quando foi absolvido por unanimidade pelo STF. Liberto, festejou sua absolvição em Recife numa festa organizada pelo amigo Cavalcanti, também ligado ao PCB.

Capítulo 12 - Últimos anos

Os anos de 1970 representou o fim das atividades políticas de Caio, então concentrado apenas em atividades intelectuais, mesmo que reduzidas. Diante desse afastamento das atividades políticas e de uma redução da produção teórica, Caio passou a desenvolver uma nota rotina.
Nessa época (e até alguns anos mais tarde), tinha o costume de visitar semanalmente, de bicicleta, sua ex-esposa Nena e a neta Roberta, que vivia com ela. Disciplinado, insistia que a criança não tomasse Coca-Cola (refrigerante do "imperialismo ianque" e "produto de qualidade medíocre", segundo ele) e defendia sempre o "guaraná da Amazônia", produto tipicamente nacional; também lhe dizia para não usar tênis esportivos de marcas norte-americanas. Se visse algum dos netos vestindo uma camisa com a estampa do Mickey Mouse, por exemplo, ficava indignado e mandava que fosse imediatamente trocada por outra que não tivesse nenhuma imagem que remetesse aos Estados Unidos! Era rígido em relação a esse tipo de simbolismo... (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 259).
No cenário político nacional, o PCB, apesar de não adotar a via armada, foi brutalmente reprimido pelas forças repressivas e seu Comitê Central teve dois terços mortos e os demais obrigados a rumarem para o exílio. O partido foi desmanchado pelos militares, porém, nessa leva de repressão que culminou na simbólica morte do jornalista Vladimir Herzog; Caio Prado seria poupado. Mas as perseguições a sua figura permaneciam, como a rejeição de um artigo seu para a Revista de História da USP, apesar de argumentar que seu trabalho intitulado "História quantitativa e método na historiografia" tivesse um teor técnico. Segundo Pericás, o registro mais importante sobre CPJ nos anos de 1970, fica sua participação no "Seminário sobre a estrutura agrária e o desenvolvimento recente da agricultura no Brasil", realizado na Unicamp, onde ele debateu sobre a questão agrária com autores como Octávio Ianni, Ignácio Rangel, Alberto Passos Guimarães, José Graziano e Ruy Miller Paiva. Sobre o tema:
Para Caio Prado Júnior, a imensa tarefa de modificar profundamente a estrutura agrária brasileira teria de ser planejada e levada a cabo com a participação dos principais interessados no assunto, a massa trabalhadora rural, através de seus legítimos representantes. Mas isso só poderia ocorrer num regime político que fosse autenticamente democrático (e que não era o caso na época). Essa reforma agrária acabaria, em última instância, por alcançar o "conjunto" do país como nação (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 268).
O fim dos anos de 1970, trouxe a anistia aos exilados e o início da reconstrução do PCB. Caio não participou desta nova reconstrução, afinal, além de afastado da militância há anos, já sentia os primeiros sinais do mal de Alzheimer. Em 1978 concedeu entrevistas aos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, onde buscou realizar um balanço da década. Para ele, o capitalismo no Brasil naquele momento se assemelhava aos dos anos de 1920. As massas se encontravam brutas e com baixo nível cultural e técnico, sendo necessário um prazo de duzentos ou trezentos anos para a elevação de tais níveis. Diferente de outros intelectuais, Caio enxergava criticamente a formação histórica brasileira.

Suas últimas obras foram O que é liberdade, O que é filosofia e A questão agrária, lançada em 1979 reunia discussões recentes (como o seminário na Unicamp) e antigos artigos seus sobre a temática. Já em 1981, a pedido do próprio CPJ, a OAB cancelou sua inscrição de seus quadros ativos. Nesse período, a esquerda brasileira renascia e sob batuta de novas organizações como o PT, a CUT e o MST. Mas, segundo Pericás, essas novas organizações não atraíram o historiador paulista.
Nesse sentido, ele não se encantou com a fundação do Partido dos Trabalhadores nem o apoiou, atitude similar a muitos de seus camaradas do PCB; de maneira geral, deu seu suporte pessoal a amigos ligados ao MDB, como o deputado estadual por São Paulo Fernando Morais, que chegou até a agradecer a "ajuda indispensável que você deu à minha campanha, sem a qual, sem dúvida nenhuma, as dificuldades teriam sido infinitamente maiores". Ou seja, Caio Prado Júnior, ao contrário de muitos intelectuais e colegas, não se filiou ao PT na época de sua constituição (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 273).
Em 1983, seu filho Caio Graco publicou sua última obra: A cidade de São Paulo, geogragia, história, que seria outra coletânea de textos antigos do autor. Naquela época, a doença já havia avançado e Caio não produziu mais intelectualmente. Em 1987, foi internado na Casa de Repouso Morada do Sol. Enquanto isso, a Editora Brasiliense crescia sob administração de Graco. Antes de sua morte, Caio ainda recebeu algumas homenagens como a prestada pelo Departamento de História da USP que nomeou uma de suas salas com o seu nome. Em 1986, o PCB homenageou militantes históricos do partido na Assembleia Legislativa de São Paulo e, entre esses, estava o nome de Caio. Já em 1988, ele ganhou o prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia, outorgado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo CNPq. Devido a suas limitações físicas, o prêmio foi recebido pela filha Danda. Por fim, encerra Luiz Bernardo Pericás:
Caio Prado Júnior deu seu último suspiro às 5h30 horas do dia 23 de novembro de 1990, na clínica onde estava internado, aos 83 anos de idade, deixando dois filhos, Danda e Caio Graco, sete netos e três bisnetos, depois de uma longa vida de lutas políticas e intelectuais pelo socialismo e pelo desenvolvimento econômico e cultural pleno do Brasil. Na tarde do mesmo dia, foi velado no saguão da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e, no dia seguinte, às 10 horas da manhã, foi sepultado no Cemitério da Consolação (PERICÁS, Luiz Bernardo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 276).