sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Os Sociólogos - De Auguste Comte a Gilles Lipovetsky


  • Sobre Organizadores: Maria Sarah Silva Telles é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) desde 1982, atualmente é professora adjunta da gradução, da pós-graduação e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Já Solange Luçan de Oliveira atualmente é professor auxiliar da PUC-Rio. 





Os Sociólogos - De Auguste Comte a Gilles Lipovetsky - Sarah Silva Telles e Solange Luçan de Oliveira (orgs.) - Editora Vozes



Capítulo 04 - Émile Durkheim (1858 - 1917) - Sarah Silva Telles (PUC-RJ) e Fernando Lima Neto (PUC-RJ)

Introdução: o sociólogo e o seu tempo - Durkheim esteve inserido num contexto de grande agitação política na França e em todo o continente europeu. Viveu os conflitos entre franceses e alemães na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), passando pela Comuna de Paris (1871) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O contexto francês era de um sorte nacionalismo, por conta da derrota frente aos alemães, e busca de estabilidade da Terceira República Francesa. De família judia e descendentes paternos de rabinos, Durkheim não seguiu a tradição familiar e optou pela carreira acadêmica. Foi professor da Universidade de Bordeaux e da Universidade de Sorbonne, ambas na França. Seu principal legado para a Sociologia foi sua institucionalização na academia. 

As principais influências teóricas de Durkheim, foram: Fustel de Coulanges, Herbert Spencer, Auguste Comte e Charles Renouvier. Sua obra é dividida em duas fases. Na primeira temos um Durkheim preocupado com a institucionalização e desenvolvimento teórico da Sociologia, visando com isso a construção metodológica que defina essa nova ciência e a diferencie das demais. Dessa primeira fase, temos as seguintes obras: Da Divisão do Trabalho Social (1893), As Regras do Método Sociológico (1895) e O Suicídio (1897). Sua segunda fase é representada pela obra As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) em que Durkheim desenvolve uma Sociologia da Religião. 

Os percursos e influências - O principal objetivo de Durkheim foi formular uma nova ciência, a Sociologia. Essa ciência teria como foco a análise das transformações que vinham ocorrendo no período, dando atenção especial a questão da moral. A transição de uma sociedade religiosa-tradicionalista para uma racional-moderna trazia consigo mudanças significativas na moral dos indivíduos. A moral deixava de ser o monopólio de estudo da Filosofia. A moral em Durkheim se difere da moral utilitarista e também da moral kantiana, ambas bastante em voga no período. Para ele, a sociedade é a fonte da moralidade. 

Essa moral, como já dito acima, se transformava em um contexto de transição de uma sociedade tradicional para outra moderna. O racionalismo presente nessa nova sociedade que surgia mostrou aos indivíduos a dependência que eles tinham ante a sociedade. Essa dependência era decorrente da divisão do trabalho que passou a ser a principal característica da sociedade moderna. Assim sendo, 
Para Durkheim, à medida que os indivíduos tomavam consciência dessa dependência, a divisão do trabalho afirmava-se como a principal fonte de solidariedade social. O que a divisão do trabalho pôs em vigência nas sociedades foi um novo mecanismo de integração social (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 74)
A principal ambiguidade que Durkheim buscou solucionar em suas obras foi entre o "culto ao indivíduo" e o reconhecimento da força do social sobre esses indivíduos. A desestruturação da sociedade tradicional já era dado como um processo em curso e a constituição de uma nova moral individual, dada a diversificação da vida social, era o principal desafio para intelectuais como Durkheim. 

Conceitos-chave - Um novo método para uma nova ciência: Durkheim foi responsável por pensar em um método para essa nova ciência e ele faz isso na obra "As Regras do Método Sociológico", escrito em 1895. Nessa obra, ele especifica o objeto desse estudo da Sociologia: os Fatos Sociais. Toda a metodologia pensada por ele nessa obra tem como finalidade o entendimento desse objeto de estudo. Mas o que seriam os Fatos Sociais?

Segundo Durkheim, os Fatos Sociais são todas maneiras de agir, sentir e pensar que exerce influência sobre os indivíduos. Os Fatos Sociais tem três características: a) eles são exteriores, ou seja, existem fora das consciências individuais e influenciam estas; b) eles são coercitivos, ou seja, exercem uma coerção social sobre as consciências individuais; c) eles são gerais, ou seja, estão presentes em todas as sociedades humanas. Além disso, os Fatos Sociais podem ser fixos (representados por instituições como o Estado, as leis, as escolas etc) ou não (maneiras de pensar, correntes de opinião etc).

Durkheim postula que os Fatos Sociais devem ser tratados como coisas, ou seja, devem ser encarados de um ponto de vista objetivo e que se afaste das pré-noções do senso comum. Por fim, os Fatos Sociais são divididos por Durkheim entre normais e patológicos. À normalidade estando ligada a regularidade, enquanto a patologia estando ligada a instabilidade. Os Fatos Sociais dão distinção e autonomia a Sociologia enquanto conhecimento científico.

A divisão do trabalho: Em "Da Divisão do Trabalho Social", Durkheim sustenta a tese de que a divisão do trabalho surgiu como o resultado do aumento das interações entre os indivíduos, tanto em grau quanto em intensidade. As grandes cidades, formando grandes centros urbanos, são exemplos desse novo tipo de sociedade que estava em desenvolvimento. Nessas cidades tínhamos um aumento quantitativo do número de indivíduos e, ao mesmo tempo, observamos um aumento na intensidade das relações sociais. Ademais, "Durkheim apresenta a divisão de trabalho como característica decisiva para pensar a sociedade advinda da Modernidade, resultado do aumento da diferenciação no processo de mudança social" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 76).

A solidariedade social: O conceito de solidariedade social tem fundamental importância na obra de Durkheim, pois para ele são os laços sociais entre os indivíduos que fazem a constituição de uma sociedade. A sociedade não é a mera soma de indivíduos. Existe uma vida coletiva a solidariedade social exerce força na constituição da sociedade. E mais,
Durkheim aponta a busca pela possibilidade de vida coletiva a despeito do aumento da liberdade individual, da acelerada e intensa divisão do trabalho, da enorme diversidade de crenças e valores, marcas da complexidade da sociedade moderna. Identifica duas formas de solidariedade - mecânica e orgânica - em função da menor ou maior divisão do trabalho, da menor ou maior diferenciação, da maior ou menor presença da consciência coletiva (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 77)
O Direito é um aspecto fundamental para entender esses dois tipos de solidariedade. Nas sociedades de solidariedade mecânica, segundo Durkheim, impera o Direito de tipo repressivo; já as sociedades de solidariedade orgânica, temos o Direito de tipo cooperativo. Como podemos perceber, são dois tipos de solidariedade social com lógica, dinâmica e regulação diferente. Porém, "As duas formas de solidariedade social são simultâneas, embora haja a preponderância de uma sobre outra" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 77).

Consciência coletiva e a representação coletiva: Através de sua análise sobre a solidariedade social, Durkheim chega a outros dois conceitos importantíssimos: consciência coletiva e representação coletiva. A consciência coletiva em Durkheim representa uma espécie de consciência das consciência, são um conjunto de crenças e valores comuns que conseguimos desenvolver em sociedade. Apesar do desenvolvimento do individualismo nas sociedades modernas, a consciência coletiva não deixa de existir em sociedades complexas e diversificadas.

Já o conceito de representação coletiva está vinculado a obra "As Formas Elementares da Vida Religiosa" e significa um conjunto de símbolos que servem para representar socialmente a consciência coletiva. Para Durkheim a Sociologia seria a ciência das representações coletivas.

A anomia e suicídio: Foi estudando a importância da coesão social que Durkheim chegou no conceito de anomia social. A anomia social representaria o inverso da coesão, sendo a marca da instabilidade e do desregulamento social. Um tipo grave de anomia social era o suicídio que Durkheim tipificou em quatro tipos, são eles:

  1. Suicídio Altruísta, marcado pela subordinação do indivíduo à coletividade, "Ocorre principalmente quando a consciência coletiva recobre o conjunto de seus membros, tipicamente em sociedades tradicionais ou 'inferiores', na terminologia de Durkheim" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 79)
  2. Suicídio Egoísta, marcado pela não integração entre o indivíduo e a sociedade, sendo os laços sociais enfraquecidos e um processo excessivo de individualização surge como consequência; 
  3. Suicídio Anômico, recorrente em sociedades modernas, é marcado pela desregulação social e a não certeza de um futuro; 
  4. Suicídio Fatalista, tratado rapidamente por Durkheim em nota de rodapé, é marcado pelo excesso de regulação social que absolve os indivíduos em uma disciplina opressiva.  
A sociologia da religião: Diferente da maioria dos pensadores do século XVIII e XIX, Durkheim encontra uma nova maneira de enxergar a religião. Para ele, "nela estão contidas as marcas simbólicas decisivas para a compreensão da vida social (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 80). Logo, o papel da ciência seria o de explicar o fato religioso, não julgá-lo. As representações religiosas são parte da vida social, tendo o homem uma espécie de "disposição religiosa", até mesmo em sociedade modernas e racionalizadas. Para entender essa disposição religiosa, Durkheim estuda as religiões consideradas por ele como mais simples, no caso, o totetismo em tribos australianas. A conclusão que ele tira desses estudos é que "os traços do tradicionalismo religioso estão também presentes em sociedades modernas, e não apenas como reminiscência" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 81)

O individualismo moral: Durkheim é considerado um pensador inscrito na perspectiva holística, ou seja, aquela que toma enxerga a predominância do social sobre o individual através de processos como o de socialização. Sua visão de individualismo se difere totalmente da professada pelos filósofos utilitaristas, que enxergavam o bem-estar como a maximização dos desejos individuais. Apesar de ser inscrito na tradição holística, Durkheim valorizava a noção de individualismo. Mas não o professado pelos utilitaristas, o mesmo do liberalismo econômico, mas o individualismo na linha de filósofos como Jean Jacques Rousseau e Immanuel Kant. Ele fazia questão de separar sua visão de individualismo com a visão do "individualismo sórdido", defendido pelos utilitaristas. Mas qual era a visão de individualismo em Durkheim com base em Rousseau e Kant? O individualismo durkheimiano era centrado na pessoa humana, tendo ligação com um culto ao indivíduo. Como assim? Simples, "O individualismo, segundo Durkheim, é um individualismo como um ideal moral que, por não ter utilizado outra denominação, acaba se confundindo com o individualismo sórdido que Durkheim tanto combateu, por ser produtor de anomia" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 81). Em suma, o individualismo em Durkheim se aproxima do liberalismo político, enquanto o que criticava se aproxima do liberalismo econômico. Não é a adoração do "eu" que descamba para um egoísmo, mas a valorização de tudo que é humano.

Esse culto ao indivíduo pensado por Durkheim tem importância crucial nas sociedades modernas, tendo em vista que nessas sociedades não existe mais uma consciência coletiva construída com base numa totalidade homogênea. A heterogeneidade é a principal marca das relações sociais na Modernidade, logo, o individualismo serve para unificar o que se encontra descentralizado. Sendo assim, "A moralidade se torna universalizada, um ideal coletivo da humanidade como um todo, desde que se torne também suficientemente abstrata e geral para dizer respeito a cada indivíduo particularmente" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 82). Sendo a vontade individual produto das relações sociais, a Sociologia durkheimiana tem como principal objetivo compreender como as sociedades criam suas regulações que se impõe sobre os comportamentos individuais.
Neste sentido, o tema da ordem social está subjacente a todos os objetos estudados pelo autor, isto é, a preocupação em entender por que as pessoas cooperam entre si e estabelecem relações relativamente estáveis na vida em sociedade (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 82)
Nessa perspectiva o entendimento das relações sociais, sua conservação e mudanças, passa pelo estudo das instituições sociais que mantém seu funcionamento como: a família, a classe, o Estado etc. Por muito tempo não foi possível enxergar em Durkheim uma análise sobre as mudanças sociais, porém, ele pontuou isso em seus escritos. Segundo ele, as mudanças sociais estão em constante florescimento. Porém, concomitante a essas mudanças, existem mecanismos de conservação em meio a essas transformações. Encerrando esse debate, afirmam os autores:
Durkheim incorpora uma preocupação central da filosofia política moderna: articular os temas do individualismo e da coesão social. O individualismo é projetado como um valor associado a formas modernas de solidariedade social. Neste sentido, não é algo que vai corroer, mas reforçar a cooperação entre as pessoas (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 83)
Sobre o Estado: A sociologia da mudança em Durkheim foca no estudo sobre as diferenciações sociais, decorrentes do desenvolvimento das sociedades modernas. Dessa diferenciação, emerge uma constante especialização do trabalho (divisão social do trabalho) e o conjunto de leis se tornam mais complexas. O Estado é visto como uma instituição que surge de todo esse processo de mudança, sendo sua tarefa a regulação do convívio social nessas complexas sociedades.

A descentralização da moralidade fez surgir uma variedade de grupos particulares com sua própria dinâmica e moral. Esses grupos particulares formam um complexo mosaico que é a marca principal das sociedades modernas: a diversificação da vida social. Em suma, a responsabilidade do Estado é manter em harmonia esses grupos particulares que contém morais diferentes e algumas até conflitantes. Assim, "a existência do Estado está diretamente relacionada aos processos de diferenciação social em curso a partir da predominância progressiva da solidariedade orgânica" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 84).

Durkheim parte de uma premissa diferente de muitos filósofos que buscaram entender a origem do Estado, pois para ele é essa instituição que vem garantir a individualidade. O indivíduo, antes oprimido e recolhido em sociedades de tipo simples que tinham como característica a homogeneidade social, agora se encontra livre nas sociedades modernas e complexas que tem como princípio o respeito as heterogeneidades sociais. Como afirma os autores,
A função especial do Estado em sociedades complexas é, justamente, a de libertar as personalidades individuais contendo a influência opressiva dos grupos secundários, haja vista que os valores que estes últimos tendem a fazer seus não são os da sociedade em que eles se inserem, mas dos indivíduos que os compõem. Deste modo, com relação ao culto ao indivíduo, o papel do Estado é o de organizar este culto, presidi-lo, garantir seu funcionamento regular (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 85).
Enfim, o indivíduo só é possível através da fundação e desenvolvimento do Estado.

Capítulo 10 - Pierre Bourdieu (1930-2002) - Gabriel Peters (UFBA)

O cientista social e seu tempo: Gabriel Peters inicia o capítulo pontuando a importância da obra de Pierre Bourdieu, sociólogo francês, que conseguiu abarcar diversos temas da vida social como educação, economia, gênero, religião, arte, meios de comunicação etc. De origem camponesa, Bourdieu é um daqueles que conseguiu ascensão social por intermédio da sua produção intelectual. Porém, diferente de muitos que passaram pela mesma situação, Bourdieu utilizou sua "dupla socialização" para empreender um tipo de Sociologia crítica.

Fazendo um apanhado histórico da biografia de Bourdieu, passando pelo contexto em que ele estava inserido na França, Peters pontua a hegemonia do Existencialismo do filósofo Jean-Paul Sartre na academia francesa da época. O status da Filosofia, graças a Sartre e seus colaboradores, era muito grande na França, sendo considerada uma espécie de "disciplina rainha". Mas apesar disso, Bourdieu (que graduou-se em Filosofia) não mostrou simpático com Sartre e seu ethos do "intelectual total" que opinava sobre tudo, sem questionar seus privilégios sociais e limites metodológicos/epistemológicos. Já na sua fase madura, Bourdieu chamaria essa visão encarnada em Sartre como uma "visão escolástica".

Aceito na renomada Escola Normal Superior de Paris no final dos anos de 1940, Bourdieu teria como influência o historiador Georges Canguilhem que ao contrário de Sartre, buscava uma produção intelectual com alto rigor metodológico. Porém, Bourdieu não era contrário ao Existencialismo em si. Pelo contrário, sua aversão a Sartre não impediu que ele recebesse forte influência de outros existencialistas como Martin Heidegger, Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty. Assim descreve Peters o que Bourdieu aproveitou desses filósofos:
De modo geral, o que interessou a Bourdieu na fenomenologia foi uma concepção da subjetividade humana como "lançada" (Heidegger) ou "encarnada" (Merleau-Ponty) em um mundo social partilhado com outros, respondendo às demandas de tal mundo menos através da reflexão explícita do que por meio de um saber tácito e pré-reflexivo - do que Bourdieu viria a chamar de "senso prático" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 189)
Mas foi o seu envio à Argélia, então sob domínio colonial francês, por conta de um serviço militar obrigatório, que mudou radicalmente à vida e consequentemente à obra de Bourdieu. Após o fim do serviço militar em 1957, Bourdieu decide manter-se na Argélia, onde logo passa a ocupar o cargo de professor na Universidade de Argel. Seu interesse no país africano era estudar o passado argelino e as transformações históricas e sociais que passava a sociedade argelina. Pesquisando no país, Bourdieu logo desenvolveu um pluralismo metodológico, mexendo com coletas e dados estatísticos, entrevista em profundidade e também etnografia.

Suas pesquisas na Argélia, acumulada a suas insatisfações pelas dificuldades que passavam o país africano, fez Bourdieu afastar-se da Filosofia e enveredar definitivamente para as Ciências Sociais. Apesar do grande prestígio da Filosofia, essa mudança não se transformou numa "perda simbólica" para Bourdieu, pois na época as Ciências Sociais na França ganhava grande notoriedade graças a obra de Claude Lévi-Strauss.

O primeiro livro publicado por Bourdieu foi "Sociologia da Argélia" de 1958. Já na sua primeira obra, Bourdieu trazia inovações significativas para as Ciências Sociais. Essa obra questionava a divisão entre Sociologia e Antropologia, onde a primeira seria responsável pelo estudo das sociedades modernas e complexas; enquanto a segunda se definiria como o estudo de sociedades tradicionais e simples. Essa divisão, para Bourdieu, denotava uma expressão do etnocentrismo que servia como suporte intelectual e ideológico para o domínio colonial ocidental. A ousadia de Bourdieu foi utilizar métodos antropológicos de pesquisa para estudar a sociedade argelina e, em seguida, a sociedade francesa. Afirma Peters,
Assim, para ficar em apenas uma ilustração, o vínculo entre estruturas sociais e estruturas mentais que Durkheim e Mauss julgaram valer somente para as sociedades "primitivas" seria descoberto por Bourdieu na legitimação ideológica das assimetrias de classe na sociedade francesa, bem como nas disputas internas ao campo acadêmico no qual ele próprio estava imerso (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 191)
Suas inovações teórico-metodológica, acumulada a sua declarada simpatia pela causa argelina, fez Bourdieu ser perseguido por grupos de extrema-direita na França, tendo que sair do país. Retornando à França após o fim do conflito pela independência da Argélia, recebe o apoio do então renomado sociólogo Raymond Aron que logo o incorporou em vários centros de pesquisa.

Em 1963 e 1964, Bourdieu publica dois livros junto com colaboradores. São eles: "Trabalho e trabalhadores na Argélia", escrito com Alain Darbel e "O Desterro", escrito com Abdelmalek Sayad. Nas obras, Bourdieu analisa o chamado "efeito de histerese". Esse efeito seria perceptível em indivíduos que, socializados num certo tipo de sociedade, precisam adaptar-se bruscamente a um outro tipo de modelo societário. Era o caso dos argelinos que, tendo sua origem numa sociedade tradicional e de economia rural, precisavam se adaptar a uma sociedade urbana e de economia capitalista. Transportando suas análises feitas na Argélia para à França, Bourdieu desenvolveu pesquisas no meio rural francês com base em trabalhos etnográficos. Sua concepção era de que "o outro" também poderia ser encontrado na sociedade na qual somos "nativos". Em suma, o processo defendido por Bourdieu era de uma "familiarização do exótico" e "exotização do familiar".

Nos anos de 1970, Bourdieu desenvolve sua praxiologia. Seu livro "Esboço de uma teoria da prática" de 1972 é sua primeira apresentação da praxiologia do mundo social. Tendo o Lévi-Strauss como principal interlocutor, Bourdieu visa superar as limitações dos "objetivistas" e "subjetivistas", formando uma Teoria da Prática. Além de buscar superar essa dicotomia, Bourdieu apontava para a necessidade de uma Sociologia reflexiva que pudesse explicar seus conflitos intelectuais em termos teóricos e estruturais de competição em que estava inserido o Homo academicus.

Sua ideia de campo é desenvolvida a partir de uma pesquisa sobre o campo artístico francês do Século XIX, onde ele pesquisou o surgimento da noção de "Arte pela Arte", defendido por autores como Gustave Flaubert. Partindo dessa pesquisa de cunho histórico, Bourdieu avança teoricamente ao buscar superar as visões "internalistas" e "externalistas" de obras de arte. Sobre esse debate:
Rejeitando modos internalistas de análise que desligam as produções artísticas de quaisquer determinações sócio-históricas exteriores a elas, Bourdieu também critica o externalismo de abordagens que reduzem aquelas produções, sem mais, às posições de seus produtores no espaço social mais amplo (classe, gênero, etnicidade etc.).Tais perspectivas, como as teorias marxistas da literatura que a analisam em termos dos condicionamentos de classe de seus produtores, ignorariam um fato fundamental: o papel causal dos próprios campos de produção cultural na moldagem das obras. (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 194)
Outro ponto da teoria bourdieusiana, passada rapidamente por Peters nessa parte introdutório do capítulo, é sua "sublimação" ou ofuscamento de suas paixões políticas. Seus posicionamentos políticos estavam subordinados a seu rigor científico e um exemplo disso é a obra "A miséria do mundo", onde Bourdieu tece uma crítica ao neoliberalismo, mas trazendo questões extra-panfletárias como o debate sobre o sofrimento psíquico vinculado à perda de sentido da vida em consequência de problemas causados pelo desemprego, por exemplo. A fase mais militante e atuante de Bourdieu, pode ser vista no documentário "A sociologia como esporte de combate", feito por Pierre Carles. Por fim, Peters trata de uma espécie de "antropologia filosófica" de Bourdieu vista em obras como "Meditações pascalianas". Essa concepção humana em Bourdieu foi assim resumida:
O cerne dessa concepção é a tese de que o ser humano é animado por um anseio de sentido e justificação para sua própria existência, os quais só podem advir dos certificados de consagração coletiva que Bourdieu reúne sob a categoria geral de "capital simbólico". Uma vez que tais certificados são bens escassos e, portanto, obtidos somente de modo diferencial e distintivo, o mundo social engendra uma competição por reconhecimento e valor que termina por condenar diversos indivíduos à situação de miséria simbólica, isto é, à 'a miséria do homem sem missão nem consagração social' (BOURDIEU, 1988: 56) (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 196)
Percursos e influências: A principal marca da obra de Bourdieu é a junção de diferentes escolas de pensamento, surgindo um novo movimento teórico baseado numa síntese. Dentre as influências sobre a obra de Bourdieu, podemos citar: Émile Durkheim, Karl Marx, Max Weber, Gaston Bachelard, Martin Heidegger, Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Ferdinand de Saussure etc.

Assim como Marx e Weber, Bourdieu imaginava a sociedade como palco de conflitos em consequência de uma competição por recursos escassos. Quando Bourdieu fala em recursos escassos, ele não se limita ao capital econômico. Assim os conflitos sociais não são derivados apenas pela busca de bens materiais, mais também por bens ideais ou simbólicos. Essa visão de Bourdieu influencia sua noção de capital, visto como "quaisquer posses que operem como meios eficientes de exercício do poder em um dado cenário sócio-histórico" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 196). Existem três tipos de capitais na teoria bourdieusiana, são eles: 01) capital econômico, vinculado a propriedades materiais; 02) capital cultural, vinculado a saberes socialmente valorizados; 03) capital social, vinculado a redes de aliança pessoal com indivíduo influentes. Esses capitais são constantemente movidos nos campos, outro conceito primordial para o entendimento da teoria bourdieusiana. E sobre essa noção de campo, afirma Peters:
Além disso, em sua Teoria dos Campos como esferas relativamente autônomas de atividade, Bourdieu sustentou que cada campo funciona com base em uma forma específica de capital desigualmente distribuída e disputada no seu interior - por exemplo, as modalidades de prestígio e autoridade específicas aos campos religioso, artístico e científico (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 197).
Também como Marx e Weber, Bourdieu enxergava que as desigualdades de poder numa dada sociedade se reproduz com o apoio de ideologias de legitimação. A pura e simples força física não seria viável para a manutenção de um status quo, fazendo-se necessária uma base ideológica de justificação. É a partir dessa visão que enxergamos a habilidade de Bourdieu em unir diferentes perspectivas teóricas. Ele consegue unir a ideia de dominação em Marx/Weber com o que podemos chamar de "kantianismo sociológico" (termo criado por Lévi-Strauss), representado pela dupla Durkheim/Mauss. Segundo Durkheim e Mauss, "nas sociedades ditas 'primitivas', os esquemas de percepção pelos quais os indivíduos representavam o mundo reproduziam, no plano mental, as próprias estruturas objetivas de suas sociedades" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 197). Segundo Bourdieu, essa lógica também poderia ser vista nas sociedades modernas. O resultado disso é:
Juntando Durkheim e Mauss a Marx e Weber, Bourdieu avança a ideia de que esta 'cumplicidade ontológica' (1988: 52) entre estruturas subjetivas e estruturas objetivas constitui o principal mecanismo ideológico de legitimação da dominação e da desigualdade. O fato de que os indivíduos vivenciam o mundo social através de esquemas de percepção oriundos de sua socialização neste mesmo mundo faz com que eles o vejam como a ordem natural e evidente das coisas. Assim, tanto para dominantes quanto para dominados, arranjos históricos atravessados por relações de hierarquia e dominação não são vividos como arbitrários e contingentes, mas como naturais e inevitáveis (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 197).
Essa visão de ordem natural das desigualdades, desenvolve um tipo de violência específico para Bourdieu: a violência simbólica. Nesse tipo específico de violência, o agente social, vítima da violência, acaba colaborando com sua própria posição de dominado ao naturalizar as relações sociais que mantém essas assimetrias. Em suma, o papel da Sociologia para Bourdieu é investigar e captar práticas sociais implícitas, trazendo à tona causas então invisíveis. Essa visão sobre a vida social é totalmente diferente da compartilhada pelo senso comum que só consegue enxergar aspectos visíveis como os indivíduos em carne e osso, as interações face a face etc.

A teoria (1), subjetivismo, objetivismo e praxiologia: O primeiro grande conceito de Bourdieu trabalhado por Peters é o de Praxiologia. A praxiologia bourdieusiana surge em oposição ao objetivismo e subjetivismo. Por objetivismo, Bourdieu compreende "visões da ação humana e da vida social em que o subjetivo (a subjetividade individual) é dominado pelo objetivo (a sociedade como uma força exterior e independente)" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 199). Marx e Durkheim seriam dois representantes dessa visão objetivista da vida social. A crítica de Bourdieu ao objetivismo é que suas reflexões se limitam a compreender o papel das estruturas sociais objetivas sobre os indivíduos, esquecendo a possibilidade das ações individuais serem construtoras dessas estruturas. Assim Peters resume a crítica bourdieusiana ao objetivismo:
De modo geral, o problema em que esbarram modos objetivistas de conhecimento do social é este: a existência de estruturas sociais objetivas é sensatamente reconhecida, mas esse reconhecimento não é acompanhado da captura dos mecanismos pelos quais as ações individuais são geradas de maneira a engendrar historicamente aquelas estruturas objetivas (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 199)
Apesar de apontar as limitações do objetivismo, Bourdieu também destaca suas potencialidades. Ele enxergava necessária o estudo da influência das estruturas sociais sobre as ações individuais. A análise distanciada e exterior, comumente entre os objetivistas, faz-se até necessária como ponto de partida da teoria sociológica. Porém, "Na medida em que essas práticas não são determinações mecânicas, e sim condutas movidas por interesses e habilidades, o 'momento subjetivista' da análise sociológica busca capturar os motores subjetivos das ações cotidianas dos indivíduos imersos no mundo social" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 199).

E o subjetivismo? Peters destaca primeiro os pontos positivos que Bourdieu enxergava entre os subjetivistas. Diferente dos objetivistas, eles conseguiam captar a força das vontades e interesses subjetivos na vida social. Apesar de enxergar pontos positivos dessa perspectiva, Bourdieu aponta limitações. Assim pode ser resumida à crítica bourdieusiana aos subjetivistas:
As abordagens subjetivistas de Schutz e Garfinkel viram corretamente que as estruturas sociais não se reproduzem por si mesmas, mas são historicamente reproduzidas através das práticas de agentes interessados e hábeis. No entanto, ao centrarem-se na produção da sociedade pelos indivíduos, essas abordagens ignoraram o processo prévio de produção dos indivíduos pela sociedade. Em outras palavras, elas negligenciaram o fato de que os interesses e habilidades que os indivíduos mobilizam nas ações que reproduzem o mundo social são, eles próprios, produtos da sua socialização segundo as estruturas desse mundo" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 200)
O processo de socialização mencionado no trecho, será palco de uma relação dialética entre indivíduo e estrutura. Dessa relação dialética, Bourdieu cria o conceito de habitus, visto como "disposições a agir, pensar e sentir de determinadas maneiras" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 200). O habitus é uma espécie de interiorização da exterioridade, mas também funcionando numa lógica inversa. Assim, Bourdieu enxerga um indivíduo ativo e não passivo, durante esse processo de socialização. Em suma, "A ideia de que as práticas sociais são o produto do encontro entre circunstâncias objetivas e disposições subjetivas leva o sociólogo francês a chamar sua perspectiva teórica de praxiologia" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 200).

A teoria (2), habitus: A praxiologia debatida no ponto acima, leva Bourdieu a pensar a sociedade como um processo dialético entre indivíduo e estrutura (ou subjetivo e objetivo). Os indivíduos são socializados e influenciados por estruturas sociais objetivas, mas respondem influenciando essas estruturas, através de suas ações. Assim podemos resumir a visão bourdieusiana de sociedade:
A sociedade não existe exclusivamente como uma entidade exterior aos indivíduos ou como uma representação interna mantida por estes, mas como uma dialética entre o exterior e o interior, um "duplo processo de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade" (BOURDIEU, 1983: 47) (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 201)
O conceito de habitus resulta da visão praxeológica de sociedade. Habitus (e não "hábito", pois esse se refere a comportamentos mecânicos e repetitivos) significa um conjunto de dispositivos que o indivíduo adquire durante o processo de socialização, orientando suas formas de sentir, agir e pensar. No habitus enxergamos a marca das estruturas sobre o indivíduo, mas também é por meio dele que esse indivíduo deixa sua marca na sociedade, mobilizando recursos que podem reproduzir ou transformar as estruturas sociais.

No dia a dia, o habitus desenvolve "intuições improvisadas de um 'senso prático' adquirido ao longo de experiências similares, nas quais eles aprenderam a responder de maneira socialmente apropriada às exigências do seu contexto" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 202). Definido habitus, Peters aponta as suas dimensões. São três as dimensões desse conceito:

  1. Dimensão cognitiva de percepção ou eidos
  2. Dimensão ético e estético de avaliação ou ethos
  3. Dimensão corpórea de ação ou hexis.  
Essas dimensões não se encontram separadas na subjetividade, pelo contrário, elas operam de modo simultâneo e combinado. Forma-se uma ideia de "senso prático" que supera as visões dualistas da relação mente/corpo. Bourdieu acredita que tendemos a nos comportar de acordo com o habitus que começamos a adquirir já na primeira fase da socialização, tendendo a um reforço dessas inclinações iniciais. Mas pode existir mobilidade, visto que o conceito de habitus é considerado um conceito aberto. Dessa forma, explica Peters: 
Do ponto de vista teórico, o modelo de Bourdieu tende a privilegiar as situações de "cumplicidade ontológica" entre disposições subjetivas e circunstâncias objetivas. Nesses cenários, os indivíduos agem em condições estruturais idênticas ou homólogas àquelas em que foram socializados e seu habitus tende, assim, a reproduzi-las. Mas ele também reconhece, como vimos, a existência de casos de "histerese" em que há um descompasso entre o passado e o presente do agente, isto é, entre as condições de geração e as condições de operação do seu habitus (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 204)
A teoria (3), campo, interesse, capital: Nessa penúltima parte do capítulo, Peters debate outros conceitos-chaves na obra de Bourdieu como campo e capital cultural. O conceito bourdieusiano de campo, está atrelado a sua visão de sociedade. Para ele, a vida social é caracterizada como um espaço de posições. A diferença entre esses espaços é a distribuição desigual de bens e recursos, sendo a sociedade marcada por constantes conflitos que visam disputar esses bens.

Essa ideia de sociedade como um espaço de posições, onde os conflitos por bens e recursos são constantes, deságua em seu conceito de campo. Assim poderia ser definido o conceito de campo em Bourdieu:
No sentido mais geral, um campo é qualquer ambiente social que pode ser construído como um espaço de posições objetivas associadas à posse desigual de recursos de poder, isto é, do que Bourdieu chama de formas de "capital" no sentido lato (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 205)
Assim viver em sociedade, segundo Bourdieu, é competir constantemente por bens e recursos (seja por sua manutenção ou por sua conquista). Mesmo quando conscientemente o indivíduo não deseja à disputa, ele acaba caindo nessa lógica competitiva. Em suma, "O mundo social é, portanto, formado de arenas de luta por bens e recursos escassos, os quais não se reduzem a posses materiais, mas incluem todo um conjunto de posses simbólicas as mais diversas" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 205).

Mas o que os indivíduos mobilizam no campo em busca desses bens e recursos? Para Bourdieu, eles mobilizam capital. Na sociedade, o capital representa tanto o meio (de disputa no campo) quanto seus fins (se disputa por capital). Não obstante, deve-se falar em "capitais" no plural. Pois, para Bourdieu, capital não se vincula exclusivamente ao econômico. Ele aponta a existência de três tipos de capitais, são eles:

  1. Capital Econômico, vinculado a propriedades materiais e poder aquisitivo; 
  2. Capital Cultural, vinculado a competências educacionais socialmente valorizadas como as habilidades verbais; 
  3. Capital Social, vinculado por uma rede de apoio e influência que podem ser estrategicamente mobilizados como um amizade com algum político influente. 
Além desses três tipos de capitais, Peters pontua a existência de outro na teoria bourdieusiana: o capital simbólico. Sobre esse capital, "Bourdieu não se refere a um tipo particular de autoridade e prestígio, mas à forma que todo capital assume quando se manifesta em marcas distintivas de autoridade e prestígio: 'glória, honra, crédito, reputação, notoriedade' (BOURDIEU, 2001a: 202) (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 206). Peters continua, "O funcionamento de qualquer espécie de capital depende do reconhecimento coletivo da sua legitimidade como meio de poder, ou seja, de sua transformação em capital simbólico" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 206)

O conceito de campo e capital, leva Bourdieu a enxergar a sociedade como um jogo. Os indivíduos em sociedade estão inseridos em um jogo onde utilizam de estratégias para alcançar seu objetivo principal: a garantia de lucros materiais e/ou simbólicos. Mas essa busca por lucro nem sempre é percebida conscientemente pelo agente e quando isso ocorre, Bourdieu aponta para duas causas: 01) autoengano, ou seja, um indivíduo como um grande artista ou líder religioso, não demonstram que agem para fins estritamente lucrativos; 02) a segunda causa desse desconhecimento consciente seria o próprio desconhecimento acerca dos efeitos objetivos das ações individuais no mundo social. 

Sua sociologia é revolucionária ao desencantar segmentos da sociedade como a arte, a religião e a ciência. Bourdieu enxerga esses segmentos da sociedade moderna como campos, onde podemos encontrar uma luta por reconhecimento simbólico e/ou ganho material. Bourdieu inova ao: 01) utilizar de termos econômicos (como capital, por exemplo) para mostrar que as práticas antes vistas como estritamente "ingênuas" ou "nobres", como a dos cientistas, artistas e sacerdotes, não passam de uma busca por lucros; 02) mas apesar da utilização de conceitos "frios" da economia, Bourdieu ressalta que as ações nesses campos também seriam mostra de seus envolvimentos existenciais intensos. Sobre esse último ponto, explica Peters: 
Isto explica por que ele veio a combinar o veio econômico da noção de "investimento" a um veio psicanalítico: o investimento em um jogo social não seria mero divertimento, mas uma mobilização intensiva de tempo, recursos e energia, um investimento "libidinal" no sentido amplo que Freud conferiu ao termo. A utilização da noção de "libido" para tratar dos interesses que movem os agentes no mundo social dá testemunho, assim, de sua tentativa de sublinhar não apenas a variedade histórica e cultural dos bens perseguidos pelos seres humanos, como também a intensidade existencial das suas motivações (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 208). 
O incetivo dos agentes para a ação no campo não são dados tidos como naturais, mas parte de uma sensibilização da libido, que passa a enxergar certas atividades como desejáveis e dignas de sua dedicação. É com essa motivação libidinal que o campo também se reproduz enquanto campo, reprodução essa chamada por Bourdieu de illusio. Conclui Peters,
No mundo moderno, a pluralização de campos caminha a par e passo com uma pluralização dos tipos de illusio. Isto faz com que os investimentos característicos de um campo tendam a parecer sem-sentido para os agentes sensibilizados para jogar em um campo distinto (BOURDIEU, 2003: 120): os esforços tenazes de uma filósofa em provar a existência do mundo externo poderão parecer absurdos ao fisioculturista profissional, mas a filósofa provavelmente pensará a mesma coisa da conduta do fisioculturista (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 208)
O exemplo da filósofa e do fisioculturista traz consigo uma importante característica dos campos: eles são relativamente autônomos e criam subjetividades (habitus) próprias. Além de deter certa autonomia, os campos são basicamente divididos entre dominantes e dominados. A sua posição enquanto dominante ou dominado será definida de acordo com sua posição na distribuição desigual de bens e recursos. Dito isso, como agem dominantes e dominados dentro de seus campos? Para Bourdieu, os dominantes tendem a ter uma postura mais ortodoxas e sua luta é representada pela manutenção do status quo. Enquanto os dominados, tendem a posturas mais heterodoxas, sendo seu objetivo a subversão desse status quo. A construção de crenças de natureza implícita (ou seja, não demonstrando explicitamente seus interesses) se configura como a base da relação entre dominantes e dominados.

A teoria (4), o poder simbólico: Na última parte do capítulo, Peters debate sobre o poder simbólico e sua estrutura. Se o primeiro objetivo da grandiosa obra de Bourdieu foi construir uma praxeologia que unisse objetivismo e subjetivismo; o segundo foi entender os mecanismos existentes no poder simbólico.

Sempre relacional, Bourdieu visou superar as visões internalistas e externalistas de simbólico. A primeira "toma as produções simbólicas como carregando, em si próprias, o seu sentido e sua inteligibilidade" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 209). Enquanto a segunda, "sublinha que os significados de uma produção simbólica trazem sempre a marca de influências exteriores a ela, ainda que tais influências não sejam facilmente discerníveis" (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 209). Bourdieu visa unificar essas visões, uma espécie de "praxiologia do simbólico".

Os símbolos são extremamente importantes na análise social, pois sua utilização prática visa conferir sentido à realidade. As estruturas simbólicas, seguindo a dialética do habitus, gera no indivíduo um duplo processo de "estrutura estruturante" e "estrutura estruturada". Esse aparato simbólico cria e ao mesmo tempo é criado. A aplicação informal de uma língua, segundo Peters, é um exemplo da flexibilidade das estruturas simbólicas. Sobre poder simbólico para Bourdieu, podemos resumir suas reflexões da seguinte forma:
Finalmente, a síntese operada por Bourdieu junta as ênfases internalistas sobre conhecimento e comunicação às perspectivas externalistas que acentuam a função de dominação das formas simbólicas, isto é, os modos como elas são mobilizadas na legitimação ideológica de assimetrias de poder. O objetivo da noção de poder simbólico torna-se, assim, captar os processos em que as estruturas simbólicas desempenham essa última função em conluio com as primeiras, ou seja, os processos nos quais relações de dominação são vividas e reproduzidas como relações de conhecimento e/ou comunicação (TELLES, Sarah Silva; OLIVEIRA, Solange Luçan. (orgs.). Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 210)
Conclusão: Peters encerra o capítulo pontuando algumas valiosas contribuições de Bourdieu para a Sociologia. Primeiro ponto destacado: ele conseguiu unir teoria com prática, uma verdadeira Teoria da Prática, conciliando pesquisa empírica com abstração teórica. Outra enorme contribuição da teoria bourdieusiana foi o desenvolvimento de uma "sociologia reflexiva", visando uma sociologia da própria sociologia. Bourdieu desejava que os sociólogos pensassem e refletissem sobre o próprio campo em que estavam inseridos, mas não de um ponto de vista estritamente subjetivo, mas com "objetivação" (etnografia, levantamento estatístico, investigação histórica etc). Por fim, essa auto-reflexão sociológica poderia e deveria se espalhar para outros campos do conhecimento científico. De uma perspectiva mais macro, Bourdieu propõe a valorização do agente social que, partindo de sua auto-reflexão, poderia ser o ator principal das transformações do mundo social.







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