terça-feira, 12 de março de 2019

O que faz o brasil, Brasil?



  • Sobre o autor: Roberto Augusto DaMatta nasceu no Rio de Janeiro em 1936 e graduou-se em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Fez especialização em Antropologia Social em 1960 no Museu Nacional, então vinculada a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Conclui mestrado e doutorado na Universidade de Harvard e atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre suas influências teóricas encontramos contribuições de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto Cardoso de Oliveira, Claude Lévi-Strauss, Émile Durkheim e Victor Turner. Além da obra resumida abaixo, DaMatta também escreveu: a) Carnavais, Malandros e Heróis; b) Relativizando: uma introdução à Antropologia Social; c) A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; d) Águias, Burros e Borboletas: um ensaio antropológico sobre o jogo do bicho. 


O que faz o brasil, Brasil? - Roberto DaMatta - Editora Rocco


Capítulo 01 - O que faz o brasil, Brasil? A questão da identidade

Nesse primeiro capítulo, DaMatta apresenta para o leitor sua visão geral de Brasil que vem a basear toda a obra. O Brasil que ele busca analisar é uma nação com um conjunto de valores, crenças e práticas. Existem várias análises sobre essa nação, porém, sua grande maioria está baseada numa visão oficial do país. Ou seja, trata-se de análises macrossociais políticas e econômicas. Essas análises não levam em conta fatores microssociais como a casa que moramos, a roupa que vestimos, a comida que comemos etc. E é tendo a Antropologia Social como suporte que DaMatta busca romper com essas análises majoritárias, mostrando uma outra visão do país que leva em consideração fatores até então esquecidos ou omitidos pela chamada história social que se encontram nas livrarias e também nas escolas. Segundo palavras do próprio autor: 
Não se trata mais da visão exclusivamente oficial e bem-comportada dos manuais de história oficial que se vendem em todas as livrarias, e os professores discutem nas escolas. Mas de uma leitura do Brasil que deseja ser maiúscula por inteiro: o BRASIL do povo e das suas coisas (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 14).
Para melhor exemplificar essas duas perspectivas, DaMatta divide o país em dois: o brasil com letra minúscula e o Brasil com letra maiúscula. O primeiro está vinculado a comportamentos humanos gerais, ou seja, aquelas ações que encontramos de forma semelhante em cada sociedade como o ato de comer, se vestir, se divertir etc. Já o segundo estaria ligado a comportamentos humanos específicos onde podemos encontrar a singularidade do brasileiro. Essas duas partes não são antagônicas na visão do autor, pelo contrário, são partes que se ligam mutuamente formando uma unidade chamada "pátria". E é "porque cada grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 15) que o autor levanta o debate sobre identidade social tão cara as Ciências Humanas. 

A maneira singular vista no Brasil levanta questionamentos como: quem somos e como somos? É da passagem dos comportamentos gerais (brasil) para os específicos (Brasil) que procuramos saber nossa identidade e o que nos singulariza enquanto sociedade. E daí, perguntamos: como se dá a passagem do ser humano que nasci originalmente para o brasileiro que me tornei? Antes de tentar responder essa pergunta levantada no texto, DaMatta já adianta que "cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um número limitado de "coisas" (e de experiências) para construir-se como algo único, maravilhoso, divino e 'legal'..." (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 16). Dito isso e buscando responder a pergunta sobre a construção de uma identidade social, o antropólogo carioca afirma que nos enxergamos enquanto brasileiros e não norte-americano porque temos simpatia ou reproduzo coisas do tipo: como feijoada, não hambúrguer; falo português, não inglês; porque futebol para mim se joga com os pés, não com as mãos. Enfim, "a construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 17)

E quando o autor vinculou o ser brasileiro com ser amante de futebol, gostar de carnaval etc., nada mais se baseou do que na própria sociedade brasileira. Caso descrevesse o brasileiro como um povo que odeia futebol, carnaval e que ama artes plásticas - talvez - estivesse retratando a identidade de um outro povo. Logo, "isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 18). Por fim, é dessa singularidade que o autor diz buscar focar na sua obra. É mostrar o que seria esse Brasil que, em relação com o brasil, cria uma gama de singularidades que nos definem criativamente enquanto nação. Isso "porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 17)

Capítulo 02 - A Casa, a rua e o trabalho

Roberto afirma a existência de dois espaços sociais de extrema relevância para a sociedade brasileira: a casa e a rua. O mundo da casa remete ao universo familiar, aquele bem demarcado socialmente. Vistas como fatos sociais totais (concepção de Marcel Mauss) as famílias são guiadas por um conjunto de valores que chamamos por "honra", "vergonha", "respeito" etc. Em casos de famílias bem unidas e com alto sentimento de casa, chega-se a enxergar a mesma como uma "pessoa moral" que deve agir unitária e corporativamente a fim de preservar a moral daquele grupo. Assim sendo, 
Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um corpo físico, e também uma dimensão moral e social. Assim, na casa, somos únicos e insubstituíveis. Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 25).
No mundo da casa deve imperar a união, a harmonia. As discussões políticas, então despertadores de debates acalorados, são banidas ou suavizadas tendo a prevalência de um discurso conservador dominado pelos homens. Além dessa paz a ser preservada e posições políticas de cunho conservador, encontramos no mundo da casa uma espécie "supercidadania" onde sou bem reconhecido por todos, tornando-me uma pessoa insubstituível que pertence a uma corporação ou unidade: a família brasileira. 

E o mundo da rua? Em DaMatta o mundo da rua é o oposto do mundo da casa. A rua é o lugar vinculado ao movimento, não a tranquilidade encontrada na casa. É o lugar do "povo" e da "massa", não das "pessoas" ou "gente" encontrada na casa. A rua também é o lugar da luta diária, das batalhas. Na rua também não existe amor ou solidariedade, reinando a insegurança e a maldade. Na linguagem, enxergamos bem essa diferença quando tratamos negativamente da "mulher da rua" em contraposição da "mulher da casa". A "comida da rua", vista como venenosa, em contraposição a saudável "comida de casa". A rua também é lugar daquilo que enxergamos negativamente graças a nossa influência católica: o trabalho, visto como "batente" e que é visto como um castigo. É por isso que, segundo DaMatta, nossos heróis oscilam entre o malandro (aquele que procura ganhar muito fazendo pouco); o santo (aquele que renuncia o trabalho em prol da procura com um outro mundo); e o caxias (aquele que obriga os outros a trabalhar). 

Essa visão da casa e da rua estaria perfeitamente atrelada as nossas origens escravocratas que baseava-se no árduo trabalho escravo. Suas consequências podem ser vistas ainda hoje quando misturamos, no mundo do trabalho, as relações econômicas com os laços pessoais. Isso não só confunde o empregado como permite ao empregador controlá-lo tanto objetivamente quanto subjetivamente. Sendo espaços básicos onde a sociedade brasileira reproduz suas redes de sociabilidade, a casa e a rua "são também espaços onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir sobre ações, pessoas, relações e moralidades" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 33)

Capítulo 03 - A ilusão das relações raciais

O que DaMatta procura repercutir no capítulo diz respeito a uma frase atribuída a André João Antonil, jesuíta italiano que esteve no Brasil no período colonial, em que diz: "O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos". Porém, antes de adentrar especificamente na análise dessa frase, o autor busca destrinchar a base conceitual das teorias racistas europeias. Para o autor, as teorias racistas do Velho Continente partiam sim da inferiorização dos negros e dos amarelos (incluídos os indígenas). Porém, suas críticas estavam mais atreladas ao processo de miscigenação do que contra as "raças inferiores" em si. O exemplo do Conde de Gobineau é citado. Dividindo as raças em três critérios (intelecto, propensões animais e manifestações morais), ele até chegou a afirmar que no que tange as propensões animais os amarelos estavam acima dos brancos. Porém, sua grande preocupação estavam com a miscigenação fazendo com que selasse o fim da sociedade brasileira em menos de 200 anos por conta da mistura de raças que criava o chamado "mulato", ser ambíguo e visto como incapacitado por ser produto de um cruzamento entre duas raças diferentes. 

Um trecho do zoólogo Louis Agassiz diz muito sobre a principal preocupação dos racistas europeus, diz ele sobre a miscigenação no Brasil: "não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 40)

Partindo para a análise da frase de Antonil, o autor afirma a dificuldade do Brasil em reproduzir uma lógica dual de caráter exclusivo. A característica da sociedade brasileira seria a de valorizar o intermediário, não os opostos. Por isso que, entre o branco e o negro, criamos categorias intermediárias personificadas na figura do mulato. O mulato se encontra no céu, segundo ele, por representar o intermediário que tanto valorizamos socialmente. Essa constatação faz com que DaMatta compare o Brasil com os EUA, mostrando que diferente de lá não reproduzimos uma classificação racial formal que divida de forma simples o branco de um lado e o negro do outro. Nos EUA essa divisão crua e simples era tão forte que em termos constitucionais um indivíduo era considerado com "sangue negro", mesmo fosse branco, caso tivesse origem ligada a negros. Como podemos observar, "trata-se, conforme já apontou um sociólogo brasileiro, Oracy Nogueira, de um tipo de preconceito racial que considera básica das "origens" das pessoas, e não somente a "marca" do tipo racial, como ocorre no caso brasileiro" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 42-43)

Encontramos nos EUA uma completa exclusão de tipos intermediários como o mulato. Ou você é negro ou é branco, sem meio termo. Pois, "do mesmo modo que as leis de uma sociedade igualitária e liberal não admitem o 'jeitinho' ou o 'mais-ou-menos', as relações entre grupos sociais não podem admitir a intermediação" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 44). A ideia do intermediário, favorecia a uma relativização que não casava com a concepção liberal e individualista de uma sociedade que valorizava mais o indivíduo e menos as relações de amizade e parentesco, típicas dos tempos de Absolutismo. Foi por isso que existiam dois EUA, um de tipo escravocrata ligado ao sul e outro liberal-burguês ligado ao norte. Com o advento da guerra civil e consequente vitória do norte liberal, o negro agora livre sofreu um preconceito racial ainda mais forte, pois a ideia de gradação que legitimava intermediários (nem brancos, nem negros) era totalmente incompatível numa teia de relações que tendia a uniformização e não a relativização. 

Em contraste a esse racismo declarado, temos no Brasil um de tipo velado numa sociedade que enxerga sua formação como resultado do cruzamento entre brancos, negros e índios numa espécie de sintonia sem maiores transtornos. Entretanto, DaMatta destaca que essa visão esconde a real sobreposição do branco europeu sobre as demais raças. E,
A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificação (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 47).
Sendo assim a ideia da formação das três raças não passa para DaMatta de um mito que tem uma função bem objetiva, esconder a hierarquização de uma sociedade que ainda não se enxergou como reprodutora de classificações.

Capítulo 04 - Sobre comidas e mulheres

O objetivo desse capítulo é buscar vincular o intelecto com o sensível. O intelecto aqui seria como a sociedade brasileira se enxerga e o sensível está relacionado ao ato de comer. A fundamentação básica usada pelo autor é a ideia de "cru e cozido" do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sendo "o cru e o cozido, o alimento e a comida, o doce e o salgado ajudam a classificar coisas, pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 51). A comida no Brasil liga cabeça e barriga, corpo e alma, fazendo-nos crer na singularidade da nossa culinária. 

Sendo a comida base para entendermos como pensa o brasileiro. Por aqui temos comidas que, valorizadas no imaginário popular, podem servir como propulsoras de relações sociais ao ponto que não sabermos se foram as relações sociais que celebraram a comida ou o inverso. É aqui que DaMatta vem diferenciar a comida do alimento. A comida é aquilo que utilizamos para sobreviver, remetendo a uma necessidade puramente biológica. Já o alimento é tudo aquilo que comemos por prazer, remetendo a um universo social onde encontramos prazer e comunhão. Se comida é o geral, o alimento vem a ser o específico que singulariza. 

Para melhor exemplificar esses conceitos a nível Brasil, DaMatta trás do feijão com arroz, tratado como comida brasileira por excelência. No feijão com arroz temos um alimento cozido, onde misturamos as duas porções formando uma espécie de síntese que seria uma papa. Essa papa, resultado da mistura, é algo intermediário pois não é nem apenas arroz e nem apenas feijão. Encontramos aqui alimento e comida. A "comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que ingere" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 56)

E as metáforas na sociedade brasileira que ligam o ato de comer com classificações, definições e marcações das pessoas são diversos. A título de exemplo, temos: pão-duro; gato por lebre; por cima da carne-seca; boca na botija etc. O ato de comer também se liga ao sexo no caso brasileiro. Por aqui separamos a "mulher da casa" e a "mulher da rua", onde a primeira jamais pode ser comida em contraponto da outra causam indigestão nos homens ao perturbá-los moralmente e que contraditoriamente sem elas o mundo seria mais insosso. As "mulheres da rua" são vistas como espécies de alimentos que podem até prejudicar a saúde, mas são deliciosos. Já as "mulheres da casa" podem ser até um dia comidas, mas só depois de uma série de ritos como o noivado e o casamento que por sua vez são comemorados tendo um bolo como centro simbólico. Essas é preciso ganhar primeiramente a aprovação que é simbolicamente representado pelo banquete dado no casamento, espécie de simbologia que legitima a aprovação. 

Para além das comparações com as mulheres, o próprio ato sexual em si é vinculado ao ato de comer o que mostra a tendência da sociedade brasileira em hierarquizar seus comportamentos vide que divide o sexo entre "comedores" e "comidos". O papel do comedor, para DaMatta, pode ser tanto encenado pelo homem quanto pela mulher (nesse caso quando tratamos das "mulheres da rua" ou aquelas que tem papel ativo na relação ao atuarem buscando o parceiro). Vemos a dialética casa/rua voltando aqui. Outro ponto debatido pelo autor é a ainda presente vinculação entre cozinha/mulher, exemplificado por ele em figuras como "Gabriela Cravo e Canela" e "Xica da Silva" que famosas no ideário popular são mulheres que usam do ato de cozinhar um meio de chegar a uma posição social superior a que se encontrava. 

Por fim, o autor encerra o capítulo mostrando que a peculiaridade brasileira se encontra no desenvolvimento de uma "culinária relacional" que foi personificada na mistura do feijão do arroz e também no cozido; prato que fica entre o líquido e o sólido sendo uma espécie de intermediário que concilia carne e verdura. 

Capítulo 05 - O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer

DaMatta inicia o capítulo trazendo como fato a ideia de que as sociedades humanas oscilam entre a rotina e o extraordinário, visto aqui como evento ou festa que foge da rotina. No Brasil, tudo que é ligado a rotina é vinculado ao trabalho e toda sua carga negativa vista anteriormente. Já o extraordinário, pelo contrário, é visto positivamente. Tanto a rotina quanto o extraordinário "são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver sua "alma" ou o seu coração" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 68). Focando especificamente no extraordinário, aquilo valorizado pelo brasileiro, o autor constata que é através dela que "todos se harmonizam por meio de conversas amenas e, na construção da festa, a música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo que absolutamente fundamental no caso brasileiro" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 69).

É definido dois tipos de momentos extraordinários. O primeiro é aquele não planejado, como as catástrofes que atingem nossa rotina de forma não planejada. Porém, também existe outro tipo de extraordinário e esse seria não só esperado como planejado pela sociedade. Afirma DaMatta,
Ao lado, porém, desses extraordinários que são acidentais, que ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade, existem momentos especiais que o próprio grupo planeja, constrói, inventa e espera. Ambos, é claro, constroem a memória da sociedade, mas são os segundos que servem como as verdadeiras roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social e suas tradições. O momento fora do comum que é planejado e tem tempo marcado para acontecer, portanto, é um espelho muito importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista por quem quer que deseje conhecê-la (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 71).
Ambos tipos de extraordinários tem um ponto em comum além da simples quebra da rotina: eles desenvolvem entre as pessoas uma rede de solidariedade. Um exemplo de evento extraordinário planejado e que detém representatividade vital na sociedade brasileira é o carnaval, festa que o autor busca analisar no restante do capítulo. No carnaval existe uma quebra da rotina, a invenção de um momento extraordinário onde certos comportamentos são aceitos e outros devem ser evitados.

Após essa contextualização, indaga o autor: qual a receita do carnaval brasileiro? Para ele seria o momento em que quebramos a fatigante rotina e temos a real oportunidade de nos excedermos aos excessos, então evitados na rotina. Logo, "o carnaval, com suas regras de inversão, fica como deslocado da realidade cotidiana, podendo ser vivido como algo de fora e, daí, como algo que surge como uma regra ou lei natural que teria validade para todos, independentemente de sua posição na estrutura social" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 73-74). Mas o quê de tão extraordinário temos no carnaval? É no carnaval que o brasileiro usa seu corpo não para a rotina maçante e cansativa mas como reprodutor de beleza e prazer. Trocamos o uniforme da rotina pelas fantasias carnavalescas, permitindo aos brasileiros ser tudo que a rotina diária impede. Com isso,
A fantasia liberta, desconstrói, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos. É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 75)
Além disso o carnaval promove uma grande sinceridade, vide que é impossível brincar carnaval obrigado. Diferente das cerimônias oficiais como formaturas e casamentos onde posso estar presente sem nutrir simpatia, no carnaval isso não seria possível quando sou punido caso não me comporte no espírito da festa. Simbolicamente o carnaval inverte as lógicas alicerçadas na sociedade brasileira. Ele promove a competição (aqui DaMatta dar o exemplo das escolas de samba do Rio de Janeiro) numa sociedade baseada na hierarquia. Ele promove o movimento numa sociedade que tende ao imobilismo, principalmente em relação a posição social dos indivíduos. Ele promove o exibicionismo numa sociedade que preza pelo que é recatado, mesmo que falsamente. Em suma,
Por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto... (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 78).
Capítulo 06 - As festas da ordem

Se no capítulo anterior DaMatta debateu o carnaval, festa extraordinária de extrema representatividade no Brasil, agora ele busca debater as chamadas "festas da ordem" que como o nome já diz apresenta uma lógica diferente da analisada anteriormente. Se no carnaval a lógica é igualar, fugindo da rotina, nas festas da ordem o que se busca preservar é justamente a ordem social e suas hierarquias.

Um primeiro exemplo dado pelo autor de festa da ordem são as manifestações de cunho religioso, sendo dado o exemplo do Catolicismo. Nos eventos religiosos no geral - e no catolicismo em específico - existe uma nítida verticalização onde se cai de cima (Deus) para baixo (fiel) contendo uma hierarquia que também perpassa por setores intermediários como os membros da Igreja que tem o papel de interpretar o divino. Ao contrário do carnaval, "o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 83). O que se busca em eventos da ordem é a contenção do indivíduo, sua uniformização que assegure a obediência daquela hierarquia engendrada. Justificando esses comportamentos contidos, diz o autor: "a festa carnavalesca requer tudo de mim: meu corpo e minha alma, minha vontade e minha energia. Mas as festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada. Daí, talvez, essas regras rígidas de contenção corporal, verbal e gestual nos ritos da ordem" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 84).

A obediência e devoção a pátria nos desfiles militares, assim como o ato corporal da continência, são trazidos por DaMatta como outro exemplo desses eventos da ordem. A hierarquia desses eventos deve ser mantida, respeitada e só quebrada em caso de violação das regras. Temos então o que ele chama de "triângulo ritual", onde:
Temos o desfile militar para as autoridades, ou melhor, como rito destinado a celebrar a relação do Estado com o povo. Temos as procissões que focalizam as relações dos homens com Deus e através da Igreja. E temos, finalmente, o desfile do carnaval, que faz o povo ser ao mesmo tempo espectador e ator (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 88).  
Enfim, as chamadas festas da ordem tem um roteiro simples e ordenado tendo como base o respeito as hierarquias sociais nelas contidas. Seu teor centralizador (seja em Deus, em Duque de Caxias ou no bolo de aniversário) impede transgressões que costumeiramente vemos no carnaval.

Capítulo 07 - O modo de navegação social: a malandragem e o "jeitinho"

A pergunta central do capítulo é: como nós, brasileiros, relacionamos as leis universais com as nossas atitudes? Para o autor, pautada nua rígida hierarquia que valoriza a teia de relações pessoais contidas pelo indivíduo, existe "um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações pessoais, que conduz ao pólo tradicional do sistema)" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 96-97). Entre os dois estaria o que DaMatta denomina como malandragem. Essa malandragem ou "jeitinho" se configura pela união entre a lei e pessoa. O problema pessoal com o impessoal. Isso surge de um grande drama ou dilema da sociedade brasileira baseado em:

  • A contraposição entre a arrogância de quem tem o cargo, representando uma instituição versus a humildade de quem chega procurando ajuda dessa mesma instituição;
  • A ideia de que existe "alguém que é ninguém", vide o mau tratamento recebido pelo que busca atendimento; 
  • Por fim, encontramos um "jeitinho" que une dialeticamente o "não pode" com o "pode".
Esse "jeitinho" busca conciliar os interesses de todos os envolvidos (solicitante, funcionário e lei universal) de forma pacífica que se inicia no encontro de algum elo comum. Em suma, "o 'jeito' tem muito de cantada, de harmonização de interesses aparentemente opostos, tal como ocorre quando uma mulher encontra um homem e ambos, interessados num encontro romântico, devem discutir a forma que esse encontro deverá assumir" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 101). O malandro é, pois, o "profissional" do "jeitinho". Mais que o simples drible na lei, a malandragem é um papel social tipicamente brasileiro que busca de modo ambíguo não obedecer a ordens absurdas. A malandragem "trata-se mesmo de um modo - jeito ou estilo - profundamente original e brasileiro de viver, a às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com a boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito e, sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 104-105). Num mundo dividido, a malandragem surge como uma espécie de esperança que busca juntar interesses aparentemente antagônicos num todo harmônico. É, em suma, um "modo possível de ser" ou um "valor social" com suas regras, espaços e paradoxos. 

Capítulo 08 - Os caminhos para Deus

Esse último capítulo busca descrever o "outro mundo" para o brasileiro, aquele composto por mortos, espíritos e/ou santos. E para quê serve uma religião? Para DaMatta, três motivos são os principais: a) desenvolvimento de uma relação globalizada entre os homens por meio de um único código moral; b) explicação das dificuldades da vida; c) justificativa e/ou legitimação a organização social. Basicamente significa a ideia de laço, união, pacto. No Brasil, apesar da diversidade religiosa, o autor enxerga uma coisa em comum entre elas: a relação pessoal que o brasileiro desenvolve com os seres do outro mundo. 

O que DaMatta busca dizer é que o brasileiro se mostra mais maleável a diversidade religiosa, podendo conciliar numa única fé aspectos de várias vertentes. Além dessa flexibilidade, a religiosidade no brasileiro promove "uma linguagem, de fato, que permite a um povo destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus representantes legais, falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 117). 

Palavras Finais - Sendo impossível conceber a sociedade brasileira de modo uno, a mesma sendo uma sociedade que mescla aspectos modernos e tradicionais e que o objetivo da obra foi mostrar uma análise do Brasil diferente a dita como "oficial"; encerro o presente resumo com a seguinte citação do antropólogo carioca Roberto DaMatta: 
Nem tanto o desencanto crítico que conduz a um primado cego do individualismo como valor absoluto; e nem tanto o primado igualmente cego da sociedade e do coletivo, que esmaga a criatividade humana e sufoca o conflito e a chama das contribuições pessoais. Talvez algo no meio. Algo que permita ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa. Algo que permite ter aqui, neste mundo, as esperanças que temos no outro. Algo que permita fazer do mundo diário, com seu trabalho duro e sua falta de recursos, uma espécie de carnaval que inventa a esperança de dias melhores (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 122).




Nenhum comentário:

Postar um comentário