domingo, 24 de março de 2019

Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo



  • Sobre o autor: Benedict Richard O'Gorman Anderson, ou simplesmente Benedict Anderson, nasceu em 1936 na cidade de Kunming, China. Filho de descendentes britânicos, Benedict rumou para os EUA ainda criança onde ganhou cidadania norte-americana. Já na fase adulta foi para a Inglaterra onde se formou pela Universidade de Cambridge. Voltaria aos EUA onde se tornou professor pela Universidade Cornell, situada em Nova York. Sua principal obra é essa que iremos resumir brevemente abaixo. Lançada em 1983, ela deteve tradução para 21 idiomas. Benedict foi irmão do historiador marxista Perry Anderson, falecendo em 2015 por conta de um ataque cardíaco. 



Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo - Benedict Anderson - Editora Companhia das Letras


Apresentação - Imaginar é difícil (porém necessário): Essa apresentação, muito bem escrita pela antropóloga Lilia Schwarcz, vem fazer um breve e rico comentário sobre princípios básicos que norteiam a obra. De imediato observamos uma certa inovação da obra sobre a temática do nacionalismo, pois Lilia afirma que Anderson se afasta das interpretações então dominantes sobre o assunto. Primeiro se distancia do filósofo Ernest Gellner (que ligava o surgimento do nacionalismo ao desenvolvimento da industrialização européia), depois rompia com o historiador Elie Kedourie (que ligava o surgimento do nacionalismo com a Revolução Francesa) e por fim também s distanciava das postulações feitas por Eric Hobsbawm sobre o assunto (apesar de não explicitar onde exatamente Anderson rompe com o historiador britânico).

A obra vem defender a tese de que as nações não são apenas inventadas mais também imaginadas. A ideia de nação representa para determinada coletividade anseios, desejos e projeção para o futuro. Ela constrói a "alma" de um povo. Sendo assim, "Benedict Anderson mostra como o nacionalismo, ao contrário do modelo marxista, que privilegia a esfera da "emissão" e entende a política como exercício exclusivo dos mandatários e poderosos, possui uma legitimidade emocional profunda" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 10). Essa emoção torna uma construção nova como artefato do passado, passando por um processo de naturalização desse passado que se liga ao presente. E sem se preocupar com uma argumentação racional dos fatos, a retórica nacionalista sofre de "amnésias" que recortam o passado na busca de justificar o presente.

Com isso, Anderson se afasta de duas concepções de nacionalismo. A primeira naturalista ou essencialista que acredita em elementos naturais do nacionalismo e a segunda de cunho maquiavélico que enxerga a construção do nacionalismo sob um forte controle dos governos então representados por suas classes dominantes. Sua visão é baseada na Antropologia, vendo o nacionalismo como uma espécie de parentesco. E sendo toda nação uma construção imaginativa, o que muda são os estilos que são imaginadas e os recursos usados no decorrer dessa construção. A nação em Anderson tem três características e se apresentam como: a) limitadas, ou seja, se encontra num determinado território e não pretende ser representante de toda a humanidade; b) soberanas, ou seja, nascem na história através do enfraquecimento tanto do pensamento religioso quanto do jugo dinástico que tanto preza pela prática da submissão; c) comunidades imaginadas, ou seja, "independentemente das hierarquias e desigualdades efetivamente existentes, elas sempre se concebem como estruturas de camaradagem horizontal. Estabelece-se a ideia de um "nós" coletivo, irmanando relações em tudo distintas" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 12).

O nacionalismo surge quando o pensamento religioso começa a perder força na Europa, possibilitando novas formas de olhar o mundo e consequentemente novas maneiras de identidade. Aqui Lilia destaca a influência que Anderson recebe de Walter Benjamin na defesa da noção de simultaneidade, então de importância ímpar para o desenvolvimento do nacionalismo. Ela teria como função criar uma noção de tempo vazio e homogêneo que seria perfeita para que frutificassem as explicações mitológicas, então base das teorias nacionalistas que estavam preocupadas nos mitos fundadores de seus grupos nacionais. O chamado "capitalismo editorial" impulsiona essas explicações, tendo a unificação da língua como base. Seja através dos jornais (utilizando a história selecionada) ou dos romances literários (confirmando a hipnótica das explicações mitológicas), o "capitalismo editorial levava a cabo para um alcance cada vez maior de pessoas a ideia de nação. A língua seria o suporte, servindo também como parte de uma antiguidade a ser defendida.

Também é analisado por Anderson o papel dos censos, mapas e museus na construção do nacionalismo. Com os censos foi possível conhecer detalhadamente as pessoas presentes naquele dado território, facilitando a elaboração de políticas. Os mapas estabeleceram limites geográficos, reforçando a ideia do "nós" em contraponto ao "eles". Por fim, os museus ajudaram no fortalecimento de histórias tipicamente nacionais. Para encerrar esse breve resumo do que foi/será a obra, encerro com o seguinte trecho da autora:
Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no vazio e com base em nada. Os símbolos são eficientes quando se afirmam no interior de uma lógica comunitária afetiva de sentidos e quando fazem da língua e da história dados "naturais e essenciais"; pouco passíveis de dúvida e de questionamento. O uso do "nós", presente dos hinos nacionais, nos dísticos e nas falas oficiais, faz com que o sentimento de pertença se sobreponha à ideia de individualidade e apague o que existe de "eles" e de diferença em qualquer sociedade (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 16)
Introdução: Benedict Anderson inicia a introdução dando como exemplo a Guerra Cambojana-Vietnamita. Essa guerra, ocorrida entre dois países socialistas, é usada pelo autor como forma de refletir sobre a importância do nacionalismo que chegava ao ponto de propiciar um conflito bélico entre duas nações que teoricamente professam projetos de sociedade semelhantes, representados pela teoria marxista. Com isso, afirma que "a realidade é muito simples: não se enxerga, nem remotamente, o "fim da era do nacionalismo", que por tanto tempo foi profetizado. Na verdade, a condição nacional [nation-ness] é o valor de maior legitimidade universal na vida política dos nossos tempos" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 28). Dito isso, Anderson fala sobre o objetivo da presente obra que é analisar as origens históricas, os significados criados ao longo do tempo e a legitimidade emocional em torno do nacionalismo então visto por ele como produto cultural específico se modelando com suas especificidades em variados terrenos sociais.

Ao estudar o fenômeno do nacionalismo, os teóricos encontram três paradoxos destacados por Anderson. São eles: 01) se refere a oposição entre a visão do historiador que enxerga um teor moderno na ideia de nação versus a visão dos nacionalistas que enxergam um teor antigo; 02) se refere a evidente universalização do nacionalismo como conceito sociocultural presente no mundo moderno (basta perceber que todos tem uma nacionalidade) versus a percepção de que o processo de desenvolvimento do nacionalismo remete a uma definição sui generis onde o nacionalismo grego se difere do nacionalismo de outro país; 03) se refere ao poder político dos nacionalistas versus a pobreza intelectual desses mesmos nacionalistas na justificação de suas ideias. Acima desses paradoxos, Anderson baseia sua concepção de nacionalismo que para ele está mais próximo do conceito de "parentesco" e "religião" que de qualquer ideologia política definida como o "liberalismo" ou o "fascismo". Sendo assim, "dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32).

A nação é uma comunidade imaginada "porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.32). A nação é uma comunidade limitada "porque mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações. Nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 33).

A nação é uma comunidade soberana "porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução Francesa estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 34). Por fim, a nação é imaginada como uma comunidade "porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro delas, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 34).

Capítulo 01 - Raízes culturais

Benedict Anderson inicia o capítulo falando dos cenotáfios, memorial fúnebre erguido para homenagear alguma pessoa ou grupo cujos restos mortais estão em outro local ou estão em local desconhecido, de soldados desconhecidos que vem representar imagens nacionais espectrais. Seu questionamento é: por que o marxismo ou o liberalismo não reconhecem os seus em monumentos como os cenotáfios? Segundo Anderson essas duas ideologias não se preocupam com a morte ou a imortalidade. O significado cultural dos cenotáfios está mais alinhado com o imaginário nacionalista, então diferente das ideologias políticas acima citadas. Isso porque, segundo o autor, o imaginário nacionalista detém raízes que o aproximam mais do imaginário religioso que dessas ideologias. O resgate dessas raízes culturais do nacionalismo é o que se busca no presente capítulo.

A religião sempre se preocupou com questões negligenciadas por ideologias políticas como o marxismo e o liberalismo. A própria sobrevivência de religiões milenares como o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo se faz pela sua capacidade de imaginativamente tornar o peso do sofrimento humano menor ao ligar fatalidade com continuidade. O Iluminismo, vigente hegemonicamente a partir o século XVIII, enfraqueceu o pensamento religioso e outros estilos de continuidades foram pensadas. A ideia de nação foi, certamente, uma das mais presentes nessa nova construção imaginativa.

Isso significa que o advento do nacionalismo foi produto direto do enfraquecimento do pensamento religioso ou que a ideia de nação tenha sido um substituto direto das religiões? Não, afirma o autor. Seu objetivo é,
O que estou propondo é o entendimento do nacionalismo alinhando-o não a ideologia políticas conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam, e a partir dos quais ele surgiu, inclusive para combatê-los (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 39).
Os sistemas culturais que precederam o nacionalismo e que são analisados por Benedict são a comunidade religiosa e o reino dinástico, pois ambos foram referências incontestes no seu apogeu. O que se busca trazendo esses dois sistemas culturais é mostrar o que conferiu sua legitimidade e em seguida analisar os processos que acarretaram sua decomposição.
  • Comunidade Religiosa: as comunidades religiosas amparavam uma imensa comunidade, unificada por uma língua sagrada que conseguia ligar pessoas de diferentes regiões do globo. O exemplo dado pelo autor é claro: se um maguindanauense encontrasse um berbere em Meca, apesar de terem idiomas orais diferentes, conseguiriam se comunicar através do árabe clássico que é a língua sagrada do Islã. O árabe cria signos universais dentro do Islã. A principal diferença entre as línguas sagradas que davam unidade a comunidade religiosa das comunidades imaginadas que se desenvolveram a partir da modernidade, reside no sacramentalismo de caráter único de suas línguas sendo base para o desenvolvimento da ideia de conversão. E quais as principais causas do enfraquecimento da comunidade religiosa? Para Anderson, dois acontecimentos atuaram fortemente no declínio desse tipo de comunidade. O primeiro foi o contato que os europeus começaram a desenvolver com outras culturas as quais "ampliaram violentamente o horizonte cultural-geográfico e, simultaneamente, os conceitos acerca das possíveis formas de vida humana, o que ocorreu sobretudo, mas não exclusivamente, na Europa"  (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 44). Um certo relativismo religioso começou a se desenvolver como mostra Anderson ao citar descrições que o viajante europeu Marco Polo fez de Cublai Cã. Já o segundo motivo foi um crescente enfraquecimento das línguas sagradas, em especial o latim na Europa Ocidental. Isso só foi possível graças ao Capitalismo Tipográfico que surgiu após a Reforma Protestante e gerou uma descentralização do uso do sagrado, então centralizado na Igreja Católica que preservava o latim como única língua que se ensinava. Afirma o autor que "se, entre as 88 edições impressas em Paris em 1501, apenas oito não eram em latim, após 1575, a maioria era sempre em francês"  (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 46). Em suma, o declínio do latim como língua sagrada unificadora afetou a comunidade religiosa, gerando uma pluralização e territorialização típico de ideias relativistas. 
  • Reino Dinástico: hoje parece difícil imaginar um mundo governado por reino dinásticos, mas no imaginário antigo esses reinos tiveram forte legitimidade principalmente em conjunturas onde as fronteiras não eram bem definidas. A expansão dos reinos dinásticos não se fez apenas através das guerras. Uma política sexual, baseada no casamento dinástico, reunia familiares de diversas regiões. Após o século XVII, por razões múltiplas não detalhadas pelo autor, os reinos tiveram seu declínio iniciado que só teria finalização após a Primeira Guerra Mundial com o fim dos grandes impérios dinásticos na Europa. 
Tanto as comunidades religiosas, quanto os reinos dinásticos, desenvolveram uma ideia que futuramente seria bastante utilizada para fundamentar o nacionalismo: a ideia de simultaneidade de um tempo vazio e homogêneo. A ideia de simultaneidade "concebe o tempo como algo próximo ao que Benjamin denomina 'tempo messiânico', uma simultaneidade de passado e futuro, em um presente instantâneo. Nessa visão das coisas, a palavra 'entrementes' não pode ter nenhum significado real"  (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 54). Melhor dizendo, 
A ideia de um organismo sociológico atravessando cronologicamente um tempo vazio e homogêneo é uma analogia exata da ideia de nação, que também é concebido como uma comunidade sólida percorrendo constantemente a história, seja em sentido ascendente ou descendente. Um americano nunca vai conhecer, e nem sequer saber o nome, da imensa maioria de seus 240 milhões de compatriotas. Ele não tem ideia do que estão fazendo a cada momento. Mas tem plena confiança na atividade constante, anônima e simultânea deles  (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 56/57).
E quais os recursos utilizados pelo Capitalismo Tipográfico no desenvolvimento dessa ideia de simultaneidade? Dois veículos são fundamentais nesse processo: o romance e o jornal. Sobre o uso dos romances no desenvolver de uma comunidade imaginada, o autor cita três exemplos no texto: a) José Rizal, romance Noli me tangere, obra considerada basilar na literatura filipina; b) José Joaquín Fernandez de Lizardi, romance El Periquillo Sarniento ou O Periquito Sarnento, retrata uma forte crítica ao governo metropolitano espanhol que exercia poder sob o México; c) Mas Marco Kartodikromo, romance Semarang Negro, representa obra-prima no desenvolvimento do nacionalismo indonésio. Sobre o jornal, Anderson afirma que o fato dele abarcar em uma edição variados fatos que não se cruzam diretamente vem provar que o vínculo entre esses acontecimentos é apenas imaginado. Esse mundo imaginado é assegurado graças a presença do jornal em cada esquina. 

Em suma, o capítulo buscou refletir sobre as influências culturais que deteve a ideia de nação. A primeira delas foi a comunidade religiosa, unificada com base numa única língua sagrada que detém o privilégio da verdade. A segunda são os reinos dinásticos, que desenvolvendo um sentimento de lealdade unia os indivíduos com base num respeito e obediência a um centro elevado. Por fim, a terceira é a ideia de temporalidade e simultaneidade que coloca aos homens como seres de uma mesma origem que se liga intimamente ao presente. Temos então a tríade fraternidade (comunidade religiosa), poder (reino dinásticos) e o tempo (ideia de simultaneidade) que serão reconstruídos sob a ideia de nação. 

Capítulo 02 - As origens da consciência nacional 

Três são os processes originários para Anderson na fundação de uma consciência nacional. São eles: a) Mudanças no Latim, resultado do crescente desenvolvimento da vernacularização das línguas que impunha o Capitalismo Tipográfico. Os filósofos humanistas na divulgação do pensamento pré-cristão, detiveram importância crucial na quebra da centralidade do latim; b) Reforma Protestante, garantiu o enfraquecimento da instituição que garantia a força do latim como língua sagrada. Com Lutero, a Bíblia foi não só traduzida para o alemão como teve um aumento quantitativo de sua publicação. O resultado disso não foi só a vernacularização da língua, mais também sua popularidade quantitativa. E "nessa titânica 'batalha pelo espírito dos homens', o protestantismo sempre manteve a ofensiva, justamente porque sabia como utilizar o mercado editorial vernáculo, que estava sendo criado e expandido pelo capitalismo, enquanto a Contrarreforma defendia a cidadela do latim" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 74); c) Expansão das Línguas Vernáculas, buscou-se enfraquecer o latim aderindo ao desenvolvimento de línguas vernáculas que tinham um papel administrativo importante na centralização administrativa que objetivava o Estado Absolutista. Essas línguas vernáculas oficiais ajudaram no declínio da comunidade religiosa que tinha no latim seu elo centralizador. Em suma, 
O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi uma interação mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade linguística humana (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 78).
A expansão impressa das línguas vernáculas, causa central do enfraquecimento do latim, ajudaram a desenvolver uma ideia de consciência nacional ao:

  • Em primeiro lugar, criando um intercâmbio unificado que estava abaixo do latim e acima dos vernáculos falados. As diversas variantes do inglês, francês e/ou espanhol acabavam sendo unificadas linguisticamente através da letra impressa. Surgia um tipo de integridade que forma o embrião da comunidade nacional imaginada; 
  • Em segundo lugar, a língua impressa ao ligar os homens do século XVII com as gerações posteriores criava uma ideia subjetiva de nação que tinha como base a construção de uma noção de antiguidade;
  • Por fim, a letra impressa desenvolvida e popularizada pelo Capitalismo Tipográfico, criaram novas línguas vernáculas que se diferenciavam daquele vernáculo oficial de cunho primordialmente administrativo e estatal. 
Finalizando a ideia do capítulo, 
Podemos resumir as conclusões dos argumentos apresentados até agora dizendo que a convergência do capitalismo e da tecnologia de imprensa sobre a fatal diversidade da linguagem humana criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada, a qual, em sua morfologia básica, montou o cenário para a nação moderna (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 82).
Capítulo 03 - Pioneiros crioulos

Nesse capítulo, o autor aborda o desenvolvimento da consciência nacional na América Latina. Por aqui o desenvolvimento do nacionalismo se diferiu do caso europeu em dois aspectos principais: a) a secundarização do fator língua, vide que as metrópoles imperiais falavam a mesma língua dos crioulos da colônia; b) o nacionalismo não foi liderado por pelas classes inferiores e muito menos por uma classe média intelectualizada de estilo europeu, pelo contrário, a liderança estava em mãos dos fazendeiros locais com uma presença menor de comerciantes e profissionais como militares, funcionários públicos etc. A ideia era justamente liderar um processo de independência, antes que esse pudesse ser feito pelas classes inferiores. Tanto é que a Espanha contou o o apoio de escravos e de índios na luta contra os crioulos revoltosos, vide os casos da Venezuela e Equador, respectivamente.

Dito isso, questiona Anderson: por que os latino-americanos colonizados desenvolveram primeiro a ideia de consciência nacional em comparação com os europeus colonizadores? Dois motivos bem conhecidos devem ser levados em consideração: a) o fator opressão que a coroa espanhola vinha exercendo sobre suas colônias, especialmente no aumento abusivo de tributos e impostos; b) a difusão dos ideais iluministas e republicanos que se espalhavam no continente, tendo a língua espanhola que unia colonizados e colonizadores como artifício facilitador na difusão dessas ideias. A situação de inferioridade que se encontrava o colonizado, unia crioulos do México ao Chile. Isso porque "nascido nas Américas, ele não podia se um verdadeiro espanhol; ergo, nascido na Espanha, o peninsular não podia ser um verdadeiro americano" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 98). A diversidade de nacionalidades existentes depois dos processos de independência tem origem na própria estrutura administrativa colonial que fragmentou o continente. Um sinal claro dessa fragmentação é vista no texto com a análise que Anderson faz dos jornais latino-americanos. As produções jornalísticas ficavam muito restritas ao âmbito provincial, com isso os crioulos mexicanos poderiam saber do que se passava em Buenos Aires, mas não através dos jornais argentinos. Ele tinha conhecimento através dos jornais mexicanos que não tratavam a situação de outra província como parte integrante do seu processo, mas como casos meramente semelhantes.

Em suma, Anderson busca trazer no capítulo a ideia de que os fatores econômicos apesar de terem importância vital, não representam numa totalidade as causas do desenvolvimento da consciência nacional na América Latina. Tratando como uma conclusão provisória, ele sustenta a ideia de que outros fatores como a atuação dos impressores locais e também dos funcionários-peregrinos (aqueles que sentiam na pele suas diferenças com relação aos espanhóis colonizadores) tiveram papel importante no desenvolvimento não de uma consciência nacional única mais de consciências nacionais que deram origem a uma variedade de Estados-nações.

Capítulo 04 - Velhas línguas, novos modelos

Depois de traçar a origem da consciência nacional na América Latina, o autor segue para a Europa onde a centralidade da língua é um fator primordial no entendimento do processo europeu. O contexto que deu a língua a posição de propriedade privada teve na análise de William Jones sobre a civilização indiana um de seus motores. Jones descobriu que a sociedade indiana antecedeu a grega e também a judaica. Através das expedições napoleônicas, Jean Champollion decifrou os hieróglifos egípcios desenvolvendo uma Antiguidade extraeuropeia. Esse intenso processo de pluralidade, que retirava ou buscava questionar a ideia de que a Europa era o centro do universo, acabou baseando ideologicamente a Europa oitocentista culminando numa dessacralização da língua que por sua evidente diversidade não pertencia a uma divindade. Assim, "podemos ilustrar essa revolução lexicográfica como se fosse o trovejar crescente numa arsenal que começa a explodir, conforme cada pequena explosão se propaga e detona outras, até que o clarão final transforma a noite em dia" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 113).

Essas ideias estavam de acordo com a nova conjuntura européia, onde as antigas classes aristocráticas estão em decadência, enquanto a burguesia cresce em poder e influência. As antigas maneiras de se reconhecer como parte de uma comunidade, baseada pela família pelos aristocratas, dão lugar a novas formas de identidade que a burguesia necessita para se unir enquanto classe. Ligados pelos negócios e não pelos laços sanguíneos, a burguesia foi a primeira classe a forjar solidariedade com base em concepções essencialmente imaginadas. A produção desses filólogos, gramáticos e jornalistas estavam alinhadas a essa imaginação em construção. Mover as massas na consolidação dessa nova comunidade imaginada que se buscava forjar, só seria possível desenvolvendo uma língua vernácula específica que servisse como base para a atuação política. O papel desses intelectuais, em sua maioria componentes de uma classe média intelectualizada, foi criar um elo comunicacional com as classes subalternas com base na construção dessas línguas vernáculas. A serviço de uma burguesia que buscava unir para consolidar sua dominação, essa intelectualidade lidera um movimento nacionalista com forte cunho populista que só teria sentido numa nova construção identitária que buscasse o convencimento por outros meios sem ser a mera obediência servil típica dos aristocratas.

Capítulo 05 - Imperialismo e nacionalismo oficial

Nesse capítulo, Anderson conceitua e contextualiza o aparecimento do chamado "nacionalismo oficial" (conceito criado por Seton-Watson). Em reação a revolução filológico-lexicográfica que baseou os primeiros movimento nacionalistas de forte cunho popular, as dinastias buscaram meios de se manter no poder utilizando ideais dessa nova conjuntura que surgiu. A ideia era se passar por aceitáveis, frente aos novos anseios nacionalistas, mesmo esses impérios abarcando uma gama de línguas que agora lutavam por sua autonomia frente a pluralidade. Esse "nacionalismo oficial" buscavam "combinar a naturalização e a manutenção do poder dinástico, em especial sobre os imensos domínios poliglotas amealhados desde a Idade Média, ou, dizendo de outra forma, de esticar a pele curta e apertada da nação sobre o corpo gigantesco do império" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 131). Seu teor era essencialmente conservador e reacionário, sendo o caso russo tratado como um dos vários exemplos citados pelo autor no texto.

Capítulo 06 - A última onda

Aqui Anderson busca debater a natureza do nacionalismo em continentes como África e Ásia após a Segunda Guerra Mundial. No contexto da formação dessa consciência nacional, temos: a) desenvolvimento tecnológico causado pelo capitalismo, facilitando as trocas e também a mobilidade; b) a necessidade prática dos Estados Coloniais em formar em suas colônias um número de bilíngues qualificados que se tornassem uma espécie de mediador entre colonizadores e colonizados; c) uma difusão do ensino no seu estilo moderno não apenas por parte do Estado, mas também por instituições paralelas como as comunidades leigas e religiosas. Esse contexto forjou aqueles responsáveis pelo desenvolvimento da consciência nacional nesses países: os intelectuais, agora bilíngues que eram a primeira geração de colonizados que recebiam uma educação diferenciada, diferenciado-se dos seus pais. Indo receber essa educação moderna em solo dos colonizadores, esses intelectuais passaram pela mesma situação que os funcionários peregrinos da América Latina. Com isso,
Em outros termos, a experiência comum e a camaradagem amigavelmente competitiva da sala de aula conferiam aos mapas da colônia que estudavam uma realidade imaginada territorialmente específica, a qual era confirmada cotidianamente pelas pronúncias e pelos traços fisionômicos dos colegas de classe (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 174)
O exemplo dos holandeses é didático. Eles usavam o termo inlanders para com esses intelectuais da colônia, sendo uma espécie de sinônimo de indígena. Ou seja, aquele ser "inferior", mas que apesar disso "pertencia" aquela comunidade. África Ocidental Francesa e Indochina são exemplos dados pelo autor ao detalhar esse processo.

Capítulo 07 - Patriotismo e racismo

O debate trazido aqui é de uma pertinência atual. Até então, Anderson afirma que buscou analisar os processos pelos quais a nação veio ser imaginada e após isso remodelada e transformada. Os apegos a essa imaginação, muito vinculado com racismo e aversão ao outro, é o que busca tratar o capítulo que desvincula a ligação nacionalismo e racismo pois o primeiro "inspiram amor, e amiúde um amor de profundo autossacrifício. Os frutos culturais do nacionalismo - a poesia, a prosa, a música, as artes plásticas - mostram esse amor com muita clareza, e em milhares de formas e estilos diversos" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 200). Esse amor é encontrado mesmo entre os povos colonizados e que sofreram violentas interferências dos países colonizadores. Logo,
Dessa maneira, a condição nacional [nation-ness] é assimilada à cor da pele, ao sexo, ao parentesco e à época do nascimento - todas essas coisas que não se podem evitar. E nesses "laços naturais" sente-se algo que poderia ser qualificado como "a beleza da Gemeinschaft [comunidade]" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 201).
A língua tem papel fundamental nesse processo de devoção amorosa a nação. Como constata Anderson, quando os anglófonos escutam "Earth to earth, ashes to ashes, dust to dust" criada há 450 anos sente-se um forte sentimento que atravessa o tal tempo vazio e homogêneo descrito anteriormente. Além disso,
Segundo, existe um tipo específico de comunidade contemporânea que apenas a língua é capaz de sugerir - sobretudo na forma de poemas e canções. Tomemos o exemplo dos hinos nacionais, cantados nos feriados nacionais. Por mais banal que seja a letra e medíocre a melodia, há nesse canto uma experiência de simultaneidade. Precisamente nesses momentos, pessoas totalmente desconhecidas entre si pronunciam os mesmos versos seguindo a mesma música. A imagem: o uníssono. Cantar a Marselhesa, a Waltzing Matilda e a Indonesia Raya oferece a oportunidade do uníssono, da realização física em eco da comunidade imaginada (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 203)
E mais,
Como parece desprendido esse uníssono! Se sabemos que, além de nós, há outras pessoas cantando essas canções exatamente no mesmo momento e da mesma maneira, não temos ideia de quem podem ser, ou até onde estão cantando, se fora ou não do alcance do ouvido. Nada nos liga, a não ser o som imaginado (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 204)
A língua abre e fecha as nações, criam ou não laços que não podem ser sanguíneos. Para Anderson, racismo e nacionalismo não são sinônimos e o segundo não detém suas raízes no primeiro. Isso porque,
Os sonhos do racismo, na verdade, têm a sua origem nas ideologias de classe, e não nas de nação: sobretudo nas pretensões de divindade entre os dirigentes e nas pretensões de "linhagem" e de sangue "azul" ou "branco" entre as aristocracias. Assim, não admira que o reputado pai do racismo moderno seja, não algum nacionalista pequeno-burguês, e sim Joseph Artur, conde de Gobineau. E tampouco admira que, no geral, o racismo e o antissemitismo se manifestem dentro, e não fora, das fronteiras nacionais. Em outras palavras, eles justificam mais a repressão e a dominação interna do que as guerras com outros países (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 209)
Quando tivemos expressões do racismo alinhada a ideia de nação, foi com o chamado "nacionalismo oficial" que como vimos nada mais foi que uma reação reacionária ao crescimento do nacionalismo popular, tendo como liderança e justifica ideias aristocratas.

Capítulo 08 - O anjo da história

O capítulo debate a relação entre revolução e nacionalismo. As revoluções para Anderson também são processos sociais impulsionados pela imaginação, vide a Revolução Russa que "foi decisivo para todas as revoluções do século XX, ao permitir que elas se tornassem imagináveis em sociedades ainda mais atrasadas do que todas as Rússias" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 218). As revoluções na Ásia, onde o campesinato se encontrava quantitativamente mais expressivo que o operariado, é um exemplo de como a imaginação pode ser grande aliado dos processos revolucionários.

Anderson também debate a continuidade de traços presentes do nacionalismo oficial nos processos pós-revolucionários, logo, "o 'nacionalismo oficial' se infiltra nos estilos de liderança pós-revolucionária de uma maneira muito mais sutil. Quero dizer que essas lideranças adotam facilmente a suposta nationalnost dos dinastas mais antigos e o Estado dinástico anterior" (ANDERSON, Benedict. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 223). Um exemplo clássico disso é a história em torno do termo "Viêt Nam". Em 1802, Gia-Long tentou nomear a região onde hoje se encontra o Vietnã de "Nam Viêt", porém, seu pedido foi recusado pela China que detinha o controle do território. Os chineses decidiram que o nome seria "Viêt Nam"e mesmo com essa origem opressora e aristocrata do nome, os vietnamitas comunistas de hoje defendem orgulhosamento o termo. O exemplo dado aos países socialistas não é por acaso, isso porque seus regimes revolucionários levam o compromisso histórico de destruir todos os traços feudais e capitalistas existentes anteriormente a revolução. Em suma, Anderson buscou elucidar as ligações mantidas entre a consciência nacional e os processos revolucionários com esses carregando tradições imaginadas por processos precedentes.

09) Censo, mapa, museu - 


10) Memória e esquecimento - 














terça-feira, 12 de março de 2019

O que faz o brasil, Brasil?



  • Sobre o autor: Roberto Augusto DaMatta nasceu no Rio de Janeiro em 1936 e graduou-se em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Fez especialização em Antropologia Social em 1960 no Museu Nacional, então vinculada a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Conclui mestrado e doutorado na Universidade de Harvard e atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre suas influências teóricas encontramos contribuições de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto Cardoso de Oliveira, Claude Lévi-Strauss, Émile Durkheim e Victor Turner. Além da obra resumida abaixo, DaMatta também escreveu: a) Carnavais, Malandros e Heróis; b) Relativizando: uma introdução à Antropologia Social; c) A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; d) Águias, Burros e Borboletas: um ensaio antropológico sobre o jogo do bicho. 


O que faz o brasil, Brasil? - Roberto DaMatta - Editora Rocco


Capítulo 01 - O que faz o brasil, Brasil? A questão da identidade

Nesse primeiro capítulo, DaMatta apresenta para o leitor sua visão geral de Brasil que vem a basear toda a obra. O Brasil que ele busca analisar é uma nação com um conjunto de valores, crenças e práticas. Existem várias análises sobre essa nação, porém, sua grande maioria está baseada numa visão oficial do país. Ou seja, trata-se de análises macrossociais políticas e econômicas. Essas análises não levam em conta fatores microssociais como a casa que moramos, a roupa que vestimos, a comida que comemos etc. E é tendo a Antropologia Social como suporte que DaMatta busca romper com essas análises majoritárias, mostrando uma outra visão do país que leva em consideração fatores até então esquecidos ou omitidos pela chamada história social que se encontram nas livrarias e também nas escolas. Segundo palavras do próprio autor: 
Não se trata mais da visão exclusivamente oficial e bem-comportada dos manuais de história oficial que se vendem em todas as livrarias, e os professores discutem nas escolas. Mas de uma leitura do Brasil que deseja ser maiúscula por inteiro: o BRASIL do povo e das suas coisas (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 14).
Para melhor exemplificar essas duas perspectivas, DaMatta divide o país em dois: o brasil com letra minúscula e o Brasil com letra maiúscula. O primeiro está vinculado a comportamentos humanos gerais, ou seja, aquelas ações que encontramos de forma semelhante em cada sociedade como o ato de comer, se vestir, se divertir etc. Já o segundo estaria ligado a comportamentos humanos específicos onde podemos encontrar a singularidade do brasileiro. Essas duas partes não são antagônicas na visão do autor, pelo contrário, são partes que se ligam mutuamente formando uma unidade chamada "pátria". E é "porque cada grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 15) que o autor levanta o debate sobre identidade social tão cara as Ciências Humanas. 

A maneira singular vista no Brasil levanta questionamentos como: quem somos e como somos? É da passagem dos comportamentos gerais (brasil) para os específicos (Brasil) que procuramos saber nossa identidade e o que nos singulariza enquanto sociedade. E daí, perguntamos: como se dá a passagem do ser humano que nasci originalmente para o brasileiro que me tornei? Antes de tentar responder essa pergunta levantada no texto, DaMatta já adianta que "cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um número limitado de "coisas" (e de experiências) para construir-se como algo único, maravilhoso, divino e 'legal'..." (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 16). Dito isso e buscando responder a pergunta sobre a construção de uma identidade social, o antropólogo carioca afirma que nos enxergamos enquanto brasileiros e não norte-americano porque temos simpatia ou reproduzo coisas do tipo: como feijoada, não hambúrguer; falo português, não inglês; porque futebol para mim se joga com os pés, não com as mãos. Enfim, "a construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 17)

E quando o autor vinculou o ser brasileiro com ser amante de futebol, gostar de carnaval etc., nada mais se baseou do que na própria sociedade brasileira. Caso descrevesse o brasileiro como um povo que odeia futebol, carnaval e que ama artes plásticas - talvez - estivesse retratando a identidade de um outro povo. Logo, "isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 18). Por fim, é dessa singularidade que o autor diz buscar focar na sua obra. É mostrar o que seria esse Brasil que, em relação com o brasil, cria uma gama de singularidades que nos definem criativamente enquanto nação. Isso "porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 17)

Capítulo 02 - A Casa, a rua e o trabalho

Roberto afirma a existência de dois espaços sociais de extrema relevância para a sociedade brasileira: a casa e a rua. O mundo da casa remete ao universo familiar, aquele bem demarcado socialmente. Vistas como fatos sociais totais (concepção de Marcel Mauss) as famílias são guiadas por um conjunto de valores que chamamos por "honra", "vergonha", "respeito" etc. Em casos de famílias bem unidas e com alto sentimento de casa, chega-se a enxergar a mesma como uma "pessoa moral" que deve agir unitária e corporativamente a fim de preservar a moral daquele grupo. Assim sendo, 
Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um corpo físico, e também uma dimensão moral e social. Assim, na casa, somos únicos e insubstituíveis. Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 25).
No mundo da casa deve imperar a união, a harmonia. As discussões políticas, então despertadores de debates acalorados, são banidas ou suavizadas tendo a prevalência de um discurso conservador dominado pelos homens. Além dessa paz a ser preservada e posições políticas de cunho conservador, encontramos no mundo da casa uma espécie "supercidadania" onde sou bem reconhecido por todos, tornando-me uma pessoa insubstituível que pertence a uma corporação ou unidade: a família brasileira. 

E o mundo da rua? Em DaMatta o mundo da rua é o oposto do mundo da casa. A rua é o lugar vinculado ao movimento, não a tranquilidade encontrada na casa. É o lugar do "povo" e da "massa", não das "pessoas" ou "gente" encontrada na casa. A rua também é o lugar da luta diária, das batalhas. Na rua também não existe amor ou solidariedade, reinando a insegurança e a maldade. Na linguagem, enxergamos bem essa diferença quando tratamos negativamente da "mulher da rua" em contraposição da "mulher da casa". A "comida da rua", vista como venenosa, em contraposição a saudável "comida de casa". A rua também é lugar daquilo que enxergamos negativamente graças a nossa influência católica: o trabalho, visto como "batente" e que é visto como um castigo. É por isso que, segundo DaMatta, nossos heróis oscilam entre o malandro (aquele que procura ganhar muito fazendo pouco); o santo (aquele que renuncia o trabalho em prol da procura com um outro mundo); e o caxias (aquele que obriga os outros a trabalhar). 

Essa visão da casa e da rua estaria perfeitamente atrelada as nossas origens escravocratas que baseava-se no árduo trabalho escravo. Suas consequências podem ser vistas ainda hoje quando misturamos, no mundo do trabalho, as relações econômicas com os laços pessoais. Isso não só confunde o empregado como permite ao empregador controlá-lo tanto objetivamente quanto subjetivamente. Sendo espaços básicos onde a sociedade brasileira reproduz suas redes de sociabilidade, a casa e a rua "são também espaços onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir sobre ações, pessoas, relações e moralidades" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 33)

Capítulo 03 - A ilusão das relações raciais

O que DaMatta procura repercutir no capítulo diz respeito a uma frase atribuída a André João Antonil, jesuíta italiano que esteve no Brasil no período colonial, em que diz: "O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos". Porém, antes de adentrar especificamente na análise dessa frase, o autor busca destrinchar a base conceitual das teorias racistas europeias. Para o autor, as teorias racistas do Velho Continente partiam sim da inferiorização dos negros e dos amarelos (incluídos os indígenas). Porém, suas críticas estavam mais atreladas ao processo de miscigenação do que contra as "raças inferiores" em si. O exemplo do Conde de Gobineau é citado. Dividindo as raças em três critérios (intelecto, propensões animais e manifestações morais), ele até chegou a afirmar que no que tange as propensões animais os amarelos estavam acima dos brancos. Porém, sua grande preocupação estavam com a miscigenação fazendo com que selasse o fim da sociedade brasileira em menos de 200 anos por conta da mistura de raças que criava o chamado "mulato", ser ambíguo e visto como incapacitado por ser produto de um cruzamento entre duas raças diferentes. 

Um trecho do zoólogo Louis Agassiz diz muito sobre a principal preocupação dos racistas europeus, diz ele sobre a miscigenação no Brasil: "não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 40)

Partindo para a análise da frase de Antonil, o autor afirma a dificuldade do Brasil em reproduzir uma lógica dual de caráter exclusivo. A característica da sociedade brasileira seria a de valorizar o intermediário, não os opostos. Por isso que, entre o branco e o negro, criamos categorias intermediárias personificadas na figura do mulato. O mulato se encontra no céu, segundo ele, por representar o intermediário que tanto valorizamos socialmente. Essa constatação faz com que DaMatta compare o Brasil com os EUA, mostrando que diferente de lá não reproduzimos uma classificação racial formal que divida de forma simples o branco de um lado e o negro do outro. Nos EUA essa divisão crua e simples era tão forte que em termos constitucionais um indivíduo era considerado com "sangue negro", mesmo fosse branco, caso tivesse origem ligada a negros. Como podemos observar, "trata-se, conforme já apontou um sociólogo brasileiro, Oracy Nogueira, de um tipo de preconceito racial que considera básica das "origens" das pessoas, e não somente a "marca" do tipo racial, como ocorre no caso brasileiro" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 42-43)

Encontramos nos EUA uma completa exclusão de tipos intermediários como o mulato. Ou você é negro ou é branco, sem meio termo. Pois, "do mesmo modo que as leis de uma sociedade igualitária e liberal não admitem o 'jeitinho' ou o 'mais-ou-menos', as relações entre grupos sociais não podem admitir a intermediação" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 44). A ideia do intermediário, favorecia a uma relativização que não casava com a concepção liberal e individualista de uma sociedade que valorizava mais o indivíduo e menos as relações de amizade e parentesco, típicas dos tempos de Absolutismo. Foi por isso que existiam dois EUA, um de tipo escravocrata ligado ao sul e outro liberal-burguês ligado ao norte. Com o advento da guerra civil e consequente vitória do norte liberal, o negro agora livre sofreu um preconceito racial ainda mais forte, pois a ideia de gradação que legitimava intermediários (nem brancos, nem negros) era totalmente incompatível numa teia de relações que tendia a uniformização e não a relativização. 

Em contraste a esse racismo declarado, temos no Brasil um de tipo velado numa sociedade que enxerga sua formação como resultado do cruzamento entre brancos, negros e índios numa espécie de sintonia sem maiores transtornos. Entretanto, DaMatta destaca que essa visão esconde a real sobreposição do branco europeu sobre as demais raças. E,
A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificação (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 47).
Sendo assim a ideia da formação das três raças não passa para DaMatta de um mito que tem uma função bem objetiva, esconder a hierarquização de uma sociedade que ainda não se enxergou como reprodutora de classificações.

Capítulo 04 - Sobre comidas e mulheres

O objetivo desse capítulo é buscar vincular o intelecto com o sensível. O intelecto aqui seria como a sociedade brasileira se enxerga e o sensível está relacionado ao ato de comer. A fundamentação básica usada pelo autor é a ideia de "cru e cozido" do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sendo "o cru e o cozido, o alimento e a comida, o doce e o salgado ajudam a classificar coisas, pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 51). A comida no Brasil liga cabeça e barriga, corpo e alma, fazendo-nos crer na singularidade da nossa culinária. 

Sendo a comida base para entendermos como pensa o brasileiro. Por aqui temos comidas que, valorizadas no imaginário popular, podem servir como propulsoras de relações sociais ao ponto que não sabermos se foram as relações sociais que celebraram a comida ou o inverso. É aqui que DaMatta vem diferenciar a comida do alimento. A comida é aquilo que utilizamos para sobreviver, remetendo a uma necessidade puramente biológica. Já o alimento é tudo aquilo que comemos por prazer, remetendo a um universo social onde encontramos prazer e comunhão. Se comida é o geral, o alimento vem a ser o específico que singulariza. 

Para melhor exemplificar esses conceitos a nível Brasil, DaMatta trás do feijão com arroz, tratado como comida brasileira por excelência. No feijão com arroz temos um alimento cozido, onde misturamos as duas porções formando uma espécie de síntese que seria uma papa. Essa papa, resultado da mistura, é algo intermediário pois não é nem apenas arroz e nem apenas feijão. Encontramos aqui alimento e comida. A "comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que ingere" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 56)

E as metáforas na sociedade brasileira que ligam o ato de comer com classificações, definições e marcações das pessoas são diversos. A título de exemplo, temos: pão-duro; gato por lebre; por cima da carne-seca; boca na botija etc. O ato de comer também se liga ao sexo no caso brasileiro. Por aqui separamos a "mulher da casa" e a "mulher da rua", onde a primeira jamais pode ser comida em contraponto da outra causam indigestão nos homens ao perturbá-los moralmente e que contraditoriamente sem elas o mundo seria mais insosso. As "mulheres da rua" são vistas como espécies de alimentos que podem até prejudicar a saúde, mas são deliciosos. Já as "mulheres da casa" podem ser até um dia comidas, mas só depois de uma série de ritos como o noivado e o casamento que por sua vez são comemorados tendo um bolo como centro simbólico. Essas é preciso ganhar primeiramente a aprovação que é simbolicamente representado pelo banquete dado no casamento, espécie de simbologia que legitima a aprovação. 

Para além das comparações com as mulheres, o próprio ato sexual em si é vinculado ao ato de comer o que mostra a tendência da sociedade brasileira em hierarquizar seus comportamentos vide que divide o sexo entre "comedores" e "comidos". O papel do comedor, para DaMatta, pode ser tanto encenado pelo homem quanto pela mulher (nesse caso quando tratamos das "mulheres da rua" ou aquelas que tem papel ativo na relação ao atuarem buscando o parceiro). Vemos a dialética casa/rua voltando aqui. Outro ponto debatido pelo autor é a ainda presente vinculação entre cozinha/mulher, exemplificado por ele em figuras como "Gabriela Cravo e Canela" e "Xica da Silva" que famosas no ideário popular são mulheres que usam do ato de cozinhar um meio de chegar a uma posição social superior a que se encontrava. 

Por fim, o autor encerra o capítulo mostrando que a peculiaridade brasileira se encontra no desenvolvimento de uma "culinária relacional" que foi personificada na mistura do feijão do arroz e também no cozido; prato que fica entre o líquido e o sólido sendo uma espécie de intermediário que concilia carne e verdura. 

Capítulo 05 - O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer

DaMatta inicia o capítulo trazendo como fato a ideia de que as sociedades humanas oscilam entre a rotina e o extraordinário, visto aqui como evento ou festa que foge da rotina. No Brasil, tudo que é ligado a rotina é vinculado ao trabalho e toda sua carga negativa vista anteriormente. Já o extraordinário, pelo contrário, é visto positivamente. Tanto a rotina quanto o extraordinário "são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver sua "alma" ou o seu coração" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 68). Focando especificamente no extraordinário, aquilo valorizado pelo brasileiro, o autor constata que é através dela que "todos se harmonizam por meio de conversas amenas e, na construção da festa, a música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo que absolutamente fundamental no caso brasileiro" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 69).

É definido dois tipos de momentos extraordinários. O primeiro é aquele não planejado, como as catástrofes que atingem nossa rotina de forma não planejada. Porém, também existe outro tipo de extraordinário e esse seria não só esperado como planejado pela sociedade. Afirma DaMatta,
Ao lado, porém, desses extraordinários que são acidentais, que ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade, existem momentos especiais que o próprio grupo planeja, constrói, inventa e espera. Ambos, é claro, constroem a memória da sociedade, mas são os segundos que servem como as verdadeiras roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social e suas tradições. O momento fora do comum que é planejado e tem tempo marcado para acontecer, portanto, é um espelho muito importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista por quem quer que deseje conhecê-la (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 71).
Ambos tipos de extraordinários tem um ponto em comum além da simples quebra da rotina: eles desenvolvem entre as pessoas uma rede de solidariedade. Um exemplo de evento extraordinário planejado e que detém representatividade vital na sociedade brasileira é o carnaval, festa que o autor busca analisar no restante do capítulo. No carnaval existe uma quebra da rotina, a invenção de um momento extraordinário onde certos comportamentos são aceitos e outros devem ser evitados.

Após essa contextualização, indaga o autor: qual a receita do carnaval brasileiro? Para ele seria o momento em que quebramos a fatigante rotina e temos a real oportunidade de nos excedermos aos excessos, então evitados na rotina. Logo, "o carnaval, com suas regras de inversão, fica como deslocado da realidade cotidiana, podendo ser vivido como algo de fora e, daí, como algo que surge como uma regra ou lei natural que teria validade para todos, independentemente de sua posição na estrutura social" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 73-74). Mas o quê de tão extraordinário temos no carnaval? É no carnaval que o brasileiro usa seu corpo não para a rotina maçante e cansativa mas como reprodutor de beleza e prazer. Trocamos o uniforme da rotina pelas fantasias carnavalescas, permitindo aos brasileiros ser tudo que a rotina diária impede. Com isso,
A fantasia liberta, desconstrói, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos. É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 75)
Além disso o carnaval promove uma grande sinceridade, vide que é impossível brincar carnaval obrigado. Diferente das cerimônias oficiais como formaturas e casamentos onde posso estar presente sem nutrir simpatia, no carnaval isso não seria possível quando sou punido caso não me comporte no espírito da festa. Simbolicamente o carnaval inverte as lógicas alicerçadas na sociedade brasileira. Ele promove a competição (aqui DaMatta dar o exemplo das escolas de samba do Rio de Janeiro) numa sociedade baseada na hierarquia. Ele promove o movimento numa sociedade que tende ao imobilismo, principalmente em relação a posição social dos indivíduos. Ele promove o exibicionismo numa sociedade que preza pelo que é recatado, mesmo que falsamente. Em suma,
Por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto... (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 78).
Capítulo 06 - As festas da ordem

Se no capítulo anterior DaMatta debateu o carnaval, festa extraordinária de extrema representatividade no Brasil, agora ele busca debater as chamadas "festas da ordem" que como o nome já diz apresenta uma lógica diferente da analisada anteriormente. Se no carnaval a lógica é igualar, fugindo da rotina, nas festas da ordem o que se busca preservar é justamente a ordem social e suas hierarquias.

Um primeiro exemplo dado pelo autor de festa da ordem são as manifestações de cunho religioso, sendo dado o exemplo do Catolicismo. Nos eventos religiosos no geral - e no catolicismo em específico - existe uma nítida verticalização onde se cai de cima (Deus) para baixo (fiel) contendo uma hierarquia que também perpassa por setores intermediários como os membros da Igreja que tem o papel de interpretar o divino. Ao contrário do carnaval, "o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 83). O que se busca em eventos da ordem é a contenção do indivíduo, sua uniformização que assegure a obediência daquela hierarquia engendrada. Justificando esses comportamentos contidos, diz o autor: "a festa carnavalesca requer tudo de mim: meu corpo e minha alma, minha vontade e minha energia. Mas as festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada. Daí, talvez, essas regras rígidas de contenção corporal, verbal e gestual nos ritos da ordem" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 84).

A obediência e devoção a pátria nos desfiles militares, assim como o ato corporal da continência, são trazidos por DaMatta como outro exemplo desses eventos da ordem. A hierarquia desses eventos deve ser mantida, respeitada e só quebrada em caso de violação das regras. Temos então o que ele chama de "triângulo ritual", onde:
Temos o desfile militar para as autoridades, ou melhor, como rito destinado a celebrar a relação do Estado com o povo. Temos as procissões que focalizam as relações dos homens com Deus e através da Igreja. E temos, finalmente, o desfile do carnaval, que faz o povo ser ao mesmo tempo espectador e ator (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 88).  
Enfim, as chamadas festas da ordem tem um roteiro simples e ordenado tendo como base o respeito as hierarquias sociais nelas contidas. Seu teor centralizador (seja em Deus, em Duque de Caxias ou no bolo de aniversário) impede transgressões que costumeiramente vemos no carnaval.

Capítulo 07 - O modo de navegação social: a malandragem e o "jeitinho"

A pergunta central do capítulo é: como nós, brasileiros, relacionamos as leis universais com as nossas atitudes? Para o autor, pautada nua rígida hierarquia que valoriza a teia de relações pessoais contidas pelo indivíduo, existe "um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações pessoais, que conduz ao pólo tradicional do sistema)" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 96-97). Entre os dois estaria o que DaMatta denomina como malandragem. Essa malandragem ou "jeitinho" se configura pela união entre a lei e pessoa. O problema pessoal com o impessoal. Isso surge de um grande drama ou dilema da sociedade brasileira baseado em:

  • A contraposição entre a arrogância de quem tem o cargo, representando uma instituição versus a humildade de quem chega procurando ajuda dessa mesma instituição;
  • A ideia de que existe "alguém que é ninguém", vide o mau tratamento recebido pelo que busca atendimento; 
  • Por fim, encontramos um "jeitinho" que une dialeticamente o "não pode" com o "pode".
Esse "jeitinho" busca conciliar os interesses de todos os envolvidos (solicitante, funcionário e lei universal) de forma pacífica que se inicia no encontro de algum elo comum. Em suma, "o 'jeito' tem muito de cantada, de harmonização de interesses aparentemente opostos, tal como ocorre quando uma mulher encontra um homem e ambos, interessados num encontro romântico, devem discutir a forma que esse encontro deverá assumir" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 101). O malandro é, pois, o "profissional" do "jeitinho". Mais que o simples drible na lei, a malandragem é um papel social tipicamente brasileiro que busca de modo ambíguo não obedecer a ordens absurdas. A malandragem "trata-se mesmo de um modo - jeito ou estilo - profundamente original e brasileiro de viver, a às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com a boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito e, sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 104-105). Num mundo dividido, a malandragem surge como uma espécie de esperança que busca juntar interesses aparentemente antagônicos num todo harmônico. É, em suma, um "modo possível de ser" ou um "valor social" com suas regras, espaços e paradoxos. 

Capítulo 08 - Os caminhos para Deus

Esse último capítulo busca descrever o "outro mundo" para o brasileiro, aquele composto por mortos, espíritos e/ou santos. E para quê serve uma religião? Para DaMatta, três motivos são os principais: a) desenvolvimento de uma relação globalizada entre os homens por meio de um único código moral; b) explicação das dificuldades da vida; c) justificativa e/ou legitimação a organização social. Basicamente significa a ideia de laço, união, pacto. No Brasil, apesar da diversidade religiosa, o autor enxerga uma coisa em comum entre elas: a relação pessoal que o brasileiro desenvolve com os seres do outro mundo. 

O que DaMatta busca dizer é que o brasileiro se mostra mais maleável a diversidade religiosa, podendo conciliar numa única fé aspectos de várias vertentes. Além dessa flexibilidade, a religiosidade no brasileiro promove "uma linguagem, de fato, que permite a um povo destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus representantes legais, falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo" (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 117). 

Palavras Finais - Sendo impossível conceber a sociedade brasileira de modo uno, a mesma sendo uma sociedade que mescla aspectos modernos e tradicionais e que o objetivo da obra foi mostrar uma análise do Brasil diferente a dita como "oficial"; encerro o presente resumo com a seguinte citação do antropólogo carioca Roberto DaMatta: 
Nem tanto o desencanto crítico que conduz a um primado cego do individualismo como valor absoluto; e nem tanto o primado igualmente cego da sociedade e do coletivo, que esmaga a criatividade humana e sufoca o conflito e a chama das contribuições pessoais. Talvez algo no meio. Algo que permita ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa. Algo que permite ter aqui, neste mundo, as esperanças que temos no outro. Algo que permita fazer do mundo diário, com seu trabalho duro e sua falta de recursos, uma espécie de carnaval que inventa a esperança de dias melhores (DAMATTA, Roberto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 122).