terça-feira, 14 de julho de 2020

Da Divisão do Trabalho Social

  • Sobre o autor: Émile Durkheim foi um sociólogo, nascido em 1858 na cidade de Épinal, nordeste da França. É considerado um dos pais da Sociologia, junto com Karl Marx e Max Weber. Suas ideias ajudaram a fundar nas Ciências Sociais o que conhecemos como perspectiva funcionalista. Essa perspectiva recebeu muita influência das ideias de Augusto Comte e que acabou influenciando na produção intelectual de vários sociólogos e antropólogos no decorrer do século XX. Entre suas principais obras, podemos citar: a) As Regras do Método Sociológico; b) As Regras Elementares da Vida Religiosa; c) O Suicídio. Durkheim faleceu em 1917 na cidade de Paris, capital francesa. 


Da Divisão do Trabalho Social - Émile Durkheim - Editora Martins Fontes


Introdução - O Problema

Émile Durkheim atesta a longa duração da divisão do trabalho que teria expressões desde a Antiguidade, mas que somente no final do século XVIII que começaram a surgir estudos específicos sobre sua existência e importância. O economista escocês Adam Smith é usado como o primeiro a teorizar sobre a divisão do trabalho, sendo o criador do termo. Em seguida, ele mostra o avanço da divisão do trabalho como um fato dado e que só tende a desenvolver-se cada vez mais. Essa tese fica nítida no seguinte trecho: 
Não há mais ilusão quanto às tendências de nossa indústria moderna; ela vai cada vez mais no sentido dos mecanismos poderosos, dos grandes agrupamentos de forças e capitais e, por conseguinte, da extrema divisão do trabalho. Não só no interior das fábricas, as ocupações são separadas e especializadas ao infinitum, como cada manufatura é, ela mesma, uma especialidade que supõe outras (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 1). 
O avanço da divisão do trabalho é tão grande que afetou à agricultura, contrariando as teses de Smith e Stuart Mill que enxergavam a atividade agrícola como uma resistência a essa mudança. Entretanto, "os principais ramos da indústria agrícola são cada vez mais arrastados pelo movimento geral"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 2). Os economistas posteriores a Smith e Mill, enxergando esse movimento geral, já não contesta-o e, pelo contrário, "Nela vêem a lei superior das sociedades humanas e a condição do progresso"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 2).

Mas a divisão do trabalho consegue ir além da esfera econômica, não afetando apenas à indústria e à agricultura; ela também consegue abarcar outros aspectos da vida social como as funções políticas, administrativas, judiciárias, artísticas e científicas. Como exemplo desta extensão, Durkheim comenta sobre o conhecimento científico, comparando como ele era produzido nos séculos XVIII e XIX. Até o século XVIII, diz ele, o cientista não tinha uma definição bem estabelecida e poderia ser enquadrado como matemático, astrônomo, filósofo, físico etc. E, de fato, ele se debruçava sobre essa variedade de conhecimentos como é o exemplo de Isaac Newton e Wilhelm Leibniz, ambos citados no texto. Porém, a situação era completamente diferente no século XIX em que ele, Durkheim, estava inserido: 
No século XIX, essa dificuldade não mais existe, ou, pelo menos, é raríssima. Não apenas o cientista já não cultiva simultaneamente ciências diferentes, como sequer abarca o conjunto de uma ciência inteira. O círculo de suas pesquisas se restringe a uma ordem determinada de problemas, ou mesmo a um problema único (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3).
Após esse exemplo de como a divisão do trabalho avançava por esferas para além da econômica, Durkheim coloca essa divisão como uma expressão social e consequente do que já existia como lei orgânica. Para isso ele faz menção a pesquisas na área da Biologia que mostram a divisão do trabalho na vida orgânica. Assim sendo, a divisão do trabalho existe tanto na vida biológica quanto na vida social, sendo esta última uma reprodução de uma lei formada na primeira. Para esclarecer melhor o que foi dito acima, vamos citar o próprio Durkheim que afirma o seguinte: 
A lei da divisão do trabalho social se aplica tanto aos organismos como às sociedades; pôde-se inclusive dizer que um organismo ocupa uma posição mais elevada na escala animal quanto mais as suas funções forem especializadas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3). 
A preocupação do autor é vincular a divisão do trabalho social às pesquisas biológicas, justificando um processo social com base nas ciências naturais. É desta perspectiva que o Durkheim enxerga na divisão do trabalho uma prática remota, pois sua expressão inicial e fundante se encontra na natureza, sendo por isso "quase contemporâneo ao advento da vida no mundo"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3); sendo por isso um fenômeno de Biologia geral que se manifesta de forma consequente na sociedade. E assim, ele conclui o raciocínio desta forma:  
A divisão do trabalho social passa a aparecer apenas como uma forma particular desse processo geral, e as sociedades, conformando-se a essa lei, parecem ceder a uma corrente que nasceu bem antes delas e que arrasta no mesmo sentido todo o mundo vivo  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4). 
Durkheim afirma que o desenvolvimento da divisão do trabalho, gera consequências morais para os homens; dividindo-os entre aqueles entregues ao movimento e os contrários. Diante desses fatos, ele faz algumas perguntas importantes: 1) diante da dualidade entre simpáticos a divisão do trabalho versus contrários a divisão do trabalho, qual caminho deve-se seguir?; 2) se a divisão do trabalho é considerada como lei da natureza, podemos concluir que ela também seja uma regra moral de conduta humana?; 3) caso possa ser considerada como regra moral de conduta humana, por quais motivos e em que medida? Sobre os questionamentos, responde o autor: 
Sem dúvida, parece que a opinião se inclina cada vez mais no sentido de tornar a divisão do trabalho uma regra imperativa de conduta, a impô-la como um dever. Os que a ela se furtam não são, é verdade, punidos com uma pena precisa, fixada em lei, mas são criticados (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4)
Diante dessa regra imperativa de conduta, a divisão do trabalho prevalece sobre seus críticos e o homem que não se dedica exclusivamente a nada, dotado de compreender tudo, é cada vez menos presente pois é fruto de "uma disciplina frouxa e relaxada". Sobre o advento da divisão do trabalho sobre essa disciplina, diz Durkheim: "O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vemos, antes, a perfeição no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 5). E é por essa razão que a noção de homem uno e detentor de um conhecimento universal, vai se desmembrando e gerando a passagem do homem impessoal para o homem pessoal. Para encerrar essa passagem, ele cita o exemplo da educação: 
Um fato entre outros torna sensível esse estado de opinião; é o caráter cada vez mais especial que a educação adquire. Cada vez mais, julgamos necessário não submeter todas as nossas crianças a uma cultura uniforme, como se devessem levar todas a mesma vida, mas formá-la de maneira diferente, tendo em vista as diferentes funções que serão chamadas a preencher  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6). 
E finaliza: 
Numa palavra, por um de seus aspectos, o imperativo categórico da consciência moral está tomando a seguinte forma: coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6).
Por outro lado, Durkheim chama atenção mais uma vez para os críticos da nova moral que surge com o advento da divisão do trabalho. E, enquanto uns se entusiasmam com essa divisão, outros chamam a atenção para seu lado negativo por conta de sua excessiva especialização. Porém, ele considera como natural tal disputa no campo moral e isso fica nítido neste trecho: "A vida moral, como a do corpo e do espírito, corresponde a necessidades diferentes e mesmo contraditórias; logo, é natural que ela seja feita, em parte, de elementos antagônicos que se limitam e se ponderam mutuamente" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 7). 

Por fim, o sociólogo francês encerra a introdução comentando sobre o método usado para a análise da divisão do trabalho; assim como traça resumidamente o objetivo da obra. Primeiramente ele deixa claro que seu método de análise não se baseia em pressupostos subjetivos, logo, apenas por intermédio da objetividade é que a ambiguidade descrita acima poderá ser finalmente resolvida. Essa subjetividade criticada por Durkheim é representada no texto pelo que ele chama de "métodos ordinário dos moralistas". O subjetivismo desses moralistas os levariam a propor uma legislação ideal a ser aplicada integralmente na realidade e "Não nos oferecem, pois, um resumo das características essenciais que as regras morais apresentam de fato em determinada sociedade ou em determinado tipo social, mas exprimem apenas a maneira como o moralista representa a moral" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 7). 

Diferentes desses moralistas, Durkheim coloca sua abordagem metodológica e teórica como objetiva, visando se afastar de impressões pessoais. Assim ele descreve sua forma de lidar com o objeto de estudo: 
A única maneira de chegar a apreciar de maneira objetiva a divisão do trabalho é estudá-la primeiro em si mesma, de uma maneira totalmente especulativa, investigar a que ela serve e de que depende - numa palavra, formar a seu respeito a noção mais adequada possível. Feito isso, estaríamos em condições de compará-la com outros fenômenos morais e de ver que ela desempenha um papel similar a alguma outra prática, cujo caráter moral e normal é indiscutido... (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8).
Diante dessa objetividade metodológica, Durkheim traça o caminho da obra que seguirá a seguinte estrutura: 1) em um primeiro momento, ele procura saber a função da divisão social do trabalho, ou seja, busca a necessidade social que ela atende; 2) depois visa determinar as causas dessa divisão do trabalho; 3) e, por último, classifica as anormalidades que essa divisão do trabalho pode apresentar. Sobre esse terceiro e último ponto da obra, diz Durkheim: "Este estudo oferecerá, além disso, o interesse de que, aqui como em biologia, o patológico nos ajudará a compreender melhor o fisiológico" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 9). Enumerada a trajetória que seguirá à obra, Durkheim encerra a introdução reforçando a importância da abordagem objetiva para a compreensão da divisão do trabalho, pois para entendê-la não basta reproduzirmos a ideia que temos dela, mas faz-se necessário enxergá-la como "fato objetivo"; observando sua estrutura e comparando com outros fenômenos. 

Livro II - As causas e as condições

Capítulo II - As causas - I. O capítulo visa abordar as causas que deram origem a divisão do trabalho. A primeira condição para o desenvolvimento da divisão do trabalho é o enfraquecimento do que Durkheim chama no texto de "estrutura segmentária". Mas o que seria isso? Seria o equivalente a sociedades tradicionais, marcada por uma forte ruralização da vida. Sobre a queda dessa estrutura segmentária e consequente desenvolvimento da divisão do trabalho, diz o autor: "Ela só pode existir na medida em que ele deixou de existir. Sem dúvida, uma vez que existe, esta pode contribuir para acelerar a regressão daquele, mas só se mostra depois de ele ter regredido. O efeito reage sobre a causa, mas não perde, com isso, a qualidade de efeito" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 251-252).

A divisão do trabalho consegue enfraquecer a estrutura segmentário, pois traz consigo uma maior concentração e inter-relação entre os indivíduos. Os vazios, típicos da vida rural em isolamento, são destruídos por um aumento das inter-relações sociais. "Em consequência, há um intercâmbio de movimentos entre partes da massa social que, até então, não se afetavam mutuamente" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 252). Assim sendo, 
As relações sociais - diríamos mais exatamente inter-sociais - se tornam, por conseguinte, mais numerosas, pois se estendem, de todos os lados, além de seus limites primitivos. Por conseguinte, a divisão do trabalho progride tanto mais quanto mais houver indivíduos suficientemente em contato para poderem agir e reagir uns em relação aos outros (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 252).
Porém, tal densidade moral em que os indivíduos se encontram estabelecendo intensas relações sociais, deve ser acrescentada de uma densidade material que possibilita a reunião em um território determinado. Logo, a densidade moral está atrelada umbilicalmente a densidade material o que faz Durkheim afirmar que não existe uma relação causa/efeito entre os dois conceitos; considerados como inseparáveis. Dito isso, Durkheim enumera três causas históricas que possibilitaram esse condensamento das sociedades. 

A primeira causa é o aumento do volume social, entendido como o aumento quantitativo da população de uma determinada região. Mas esse aumento do volume social não é suficiente e ele é acrescido de uma maior densidade material. Essa densidade material é a capacidade dessa população se concentrar em uma determinada área, território ou região. Segundo Durkheim, "Enquanto as sociedades inferiores se estendem sobre áreas imensas, relativamente ao número de indivíduos que a compõem, entre os povos mais avançados a população vai se concentrando cada vez mais" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 253). 

O desenvolvimento industrial visto nas cidades é apontado pelo autor como uma demonstração desta transformação histórica. Diferente do nomadismo ou da agricultura (apesar dele reconhecer que esta admite um pequeno estreitamento das relações sociais em comparação com o nomadismo, porém, não o suficiente para desenvolver a divisão do trabalho), a indústria representa um motor deste condensamento social em uma região circunscrita. Ademais, as sociedades europeias são vistas como pioneiras neste processo, pois "viram sua densidade aumentar de maneira contínua, apesar de alguns casos de regressão passageira" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 253). É por isso que ele coloca os europeus em posição de superioridade, quando comparados com tribos selvagens, descritas por Herbert Spencer. 

A segunda causa apontada por Durkheim é o desenvolvimento das cidades. As cidades incutem nos indivíduos a necessidade de manterem contato íntimo uns com os outros, o que permite o aguçamento da densidade moral. Sendo assim, o desenvolvimento ascendente das cidades significa o consequente enfraquecimento das organizações sociais segmentárias, pois "Não há cidade nas sociedades inferiores; não a encontramos nem entre os iroqueses, nem entre os antigos germanos" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 254). A partir disso, Durkheim conclui que a tendência do campo afluir para as cidades se mostra como uma tendência generalizada do mundo civilizado e que data desde o século XVII. 

Todas as sociedades humanas iniciam seu estágio no período agrícola e a passagem para as cidades é vista apenas em sociedades superiores. Uma das principais características dessas sociedades é o encurtamento da organização social segmentário no curso do seu desenvolvimento. Ou seja, as sociedades vistas por Durkheim como superiores são aquelas que rapidamente conseguiram superar o seu período agrícola. Diante daqueles que consideram o desenvolvimento das cidades como um sinal de velhice e decadência, contrapõe o sociólogo francês: 
A aceleração regularmente crescente desse desenvolvimento demonstra que, longe de constituir uma espécie de fenômeno patológico, ele deriva da própria natureza das espécies sociais superiores (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255).
E continua, sentenciando o futuro aniquilamento do período agrícola nas sociedades humanas: 
Supondo-se, pois, que tenha hoje atingido proporções ameaçadoras para nossas sociedades, que talvez já não tenham flexibilidade suficiente para se adaptar a ele, esse movimento não deixará de continuar seja através delas, seja depois delas, e os tipos sociais que se formarão depois dos nossos se distinguirão verossimilmente por uma regressão mais rápida e mais completa ainda da civilização agrária (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255).
Por último, a terceira causa que favoreceu o desenvolvimento da divisão do trabalho foi o aumento e aprimoramento das comunicações. Sobre esse fator, diz Durkheim: "Suprimindo ou diminuindo os vazios que separam os segmentos sociais, elas aumentam a densidade da sociedade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255). Logo, a densidade moral proporcionada pelo aprimoramento das comunicações, gera como efeito o desenvolvimento da divisão do trabalho. Isso porque o condensamento da sociedade propicia a divisão do trabalho que, por sua vez, aumenta o adensamento social. "Mas não importa, porque a divisão do trabalho permanece o fato derivado e, por conseguinte, os progressos por que passa devem-se aos progressos paralelos da densidade social, quaisquer que sejam as causas destes últimos (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 256).

Analisada a influência da densidade social (material e moral) sobre a divisão do trabalho, ele chama a atenção para outro importante fator: o volume social, visto como o aumento da população. Logo, densidade social e volume social são fatores que precisam andar em consonância para que a divisão do trabalho, baseada no adensamento das sociedades, possa florescer. E conclui, "De fato, as sociedades são geralmente tanto mais volumosas quanto mais avançadas e, por conseguinte, quanto mais dividido é o trabalho" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 256). E para sustentar sua tese, cita Spencer que afirma que as sociedades iniciam sua evolução como gérmen e, assim como os corpos vivos, se transformam em entes diferentes da sua origem. 

É por isso que foi partindo da inferioridade que as sociedades superiores chegaram a tal posição. Apesar disso, ele admite que no interior das sociedades superiores possa existir vestígios da organização social primitiva que o antecedeu, sendo necessário o constante aumento do volume social para superar essas particularidades. Porém, Durkheim chama a atenção para exceções como o caso da China e da Rússia. E sobre essas duas exceções, diz o autor: 
A China e a Rússia são muito mais populosas do que as mais civilizadas nações da Europa. Por conseguinte, entre esses mesmos povos a divisão do trabalho não é necessariamente um sinal de superioridade, se a densidade não aumenta ao mesmo tempo e na mesma proporção (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
E continua, 
Porque uma sociedade pode alcançar dimensões enormes, por compreender um grande número de segmentos, qualquer que seja a natureza destes últimos; portanto, se mesmo os mais vastos dentre esses só reproduzirem sociedades de um tipo muito inferior, a estrutura segmentária permanecerá muito pronunciada e, em consequência, a organização social, pouco elevada (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
É por conta dessas exceções que Durkheim reitera sua tese: a divisão do trabalho social só tem condições de florescer com o aumento simultâneo do volume social, da densidade material e moral. "Portanto, o crescimento do volume social nem sempre acelera os progressos da divisão do trabalho, mas apenas quando a massa se contrai ao mesmo tempo e na mesma medida" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 258). Resumindo a ideia central desta primeira parte do capítulo, ele conclui da seguinte forma: 
Podemos, pois, formular a seguinte proposição: A divisão do trabalho varia na razão direta do volume e da densidade das sociedades, e, se ela progride de uma maneira contínua no curso do desenvolvimento social, é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e, em geral, mais volumosas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
Durkheim acredita que o adensamento social, visto através da articulação entre volume social e densidade social, não meramente permitem a divisão do trabalho como requerem esta divisão. Ou seja, o adensamento social encontra na divisão do trabalho uma necessidade, visto o aumento de cooperadores e suas aproximações íntimas. É daí que surge a especialização das funções como meio de melhor organizar esta nova configuração societária. 

II. Durkheim afirma que o volume social tem influência sobre o desenvolvimento da divisão do trabalho, mas não a determina. Além disso, ele admite a possibilidade das condições externas influenciarem na especialização das sociedades. É o caso, por exemplo, de regiões de um país que por conta de condições exteriores acabam desenvolvendo uma especialidade como criação de bois, carneiros ou trigo. Porém, as condições externas também não determinam essa especialização, apesar do autor reconhecer a possibilidade da primeira influenciar à segunda. E por isso ele adverte e exemplifica: 
Porém, mesmo onde as circunstâncias externas inclinam mais fortemente os indivíduos a se especializarem num sentido definido, elas não bastam para determinar essa especialização. Por sua constituição, a mulher é predisposta a levar uma vida diferente do homem; no entanto, há sociedades em que as ocupações dos sexos são sensivelmente as mesmas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 261).
Dito isso, Durkheim conclui que as condições externas apesar de ter a condição de influenciar a divisão do trabalho, não a determina. Isso, pois, existe a possibilidade das condições externas existirem, mas não serem seguidas como foi dado no exemplo da família. Logo, faz-se necessário não só a existência dessas condições externas como também da articulação de outros fatores. Para encerrar, ele pergunta: mas qual a necessidade da especialização da divisão do trabalho? 

Spencer não conseguiu responder essa pergunta de uma maneira satisfatória, pois colocou a como necessidade da felicidade humana que aumenta com a força produtiva do trabalho. Se a divisão do trabalho propicia o avanço desta força produtiva, então logo a adotamos. Mas Durkheim busca dar outra resposta a essa pergunta que pode ser vista no seguinte trecho: 
Na realidade, esse meio só tem valor para nós se dele precisarmos e, como o homem primitivo não tem necessidade alguma de todos esses produtos que o homem civilizado aprendeu a desejar e que uma organização mais complexa do trabalho tem por efeito, precisamente, fornecer-lhes, não podemos compreender de onde vem a especialização crescente das tarefas, a não ser que saibamos como essas novas necessidades se constituíram (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 262).
III.  Durkheim inicia essa terceira parte do capítulo, afirmando que a divisão do trabalho se desenvolve para atender a uma necessidade de luta pela vida. Para fundamentar sua tese, ele irá utilizar exemplos do mundo natural com base em reflexões feitas por Charles Darwin. Concordando com Darwin, ele mostra que a concorrência entre dois organismos tende a aumentar se forem da mesma espécie. Caso os recursos de que necessitam para viver estejam em abundância, a concorrência aparece timidamente; mas a partir do momento em que sua quantidade aumenta ao ponto de colocar essa abundância em risco, surge então um conflito violento em busca pela sobrevivência. Tal conflito não existe em caso de organismos que não fazem parte da mesma espécie, pois neste caso esses organismos dependeriam de necessidades diferentes para sobreviver.

Trazendo essa lei natural para o entendimento das sociedades humanas, afirma Durkheim: "Os homens são sujeitos à mesma lei. Numa mesma cidade, as profissões diferentes podem coexistir sem serem obrigadas a se prejudicar reciprocamente, porque elas perseguem objetivos diferentes" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 264). Porém, ele admite a possibilidade de uma concorrência em profissões semelhantes que, por diferentes meios, acabam atendendo a necessidades semelhantes. Sobre esse caso específico, ele dar o exemplo do cervejeiro e do vinhateiro e também do poeta e do músico. Já aqueles que desempenham a mesma atividade profissional, seu sucesso depende do detrimento de seus concorrentes. Em suma, conclui da seguinte forma: 
Posto isso, é fácil compreender que todo adensamento da massa social, sobretudo se for acompanhado de um aumento da população, determina necessariamente progressos da divisão do trabalho (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 265).
Isto posto, o sociólogo francês desenvolve sua tese afirmando que o maior adensamento da massa social tende a gerar novas necessidades, ocasionando consequentemente uma maior produção, concorrência e especialização do trabalho. E essa especialização é impulsionada justamente pela concorrência pois, os mais fracos, quando perdem na lógica concorrencial só encontram dois caminhos: desaparecer ou transformar-se. Quando opta pela segunda opção, aceita se transferir de uma setor em que foi superado para um outro que tentará se estabelecer. Logo, temos então uma dinâmica que propicia a concorrência e também uma constante especialização. Diz o autor sobre, "Não é necessário acrescentar que, se a sociedade conta efetivamente com mais membros e que estes, ao mesmo tempo, são mais próximos uns dos outros, a luta ainda é mais acesa e a especialização que dela resulta, mais rápida e mais completa" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 267).

Apesar de se mostrar simpático ao desenvolvimento da divisão do trabalho, Durkheim não acredita que sua presença gere consequentemente uma maior felicidade entre os homens. E isso fica claro no seguinte trecho: 
De todas essas mudanças, acaso resulta um aumento da felicidade média? Não vemos a que causa ele se deveria. A maior intensidade da luta implica novos e penosos esforços, que não são de natureza a tornar os homens mais felizes. Tudo acontece mecanicamente. Uma ruptura do equilíbrio na massa social suscita conflitos que só podem ser resolvidos por uma divisão do trabalho mais desenvolvida: este é o motor do progresso (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 268).
Apesar disso, Durkheim acreditava que o desenvolvimento da divisão do trabalho geraria um melhor aproveitamento dos homens. Diferente de povos chamados por ele de inferiores, onde todo organismo imperfeito deve ser expurgado, nas sociedades mais avançadas até o indivíduo enfermiço pode encontrar seu espaço em que seja possível prestar algum serviço. Se for fraco de cérebro, terá a sua disposição atividades que exijam dele menos o uso das sua limitada capacidade intelectiva; mudança  que também pode ocorrer com um indivíduo for fraco de corpo, mas com um cérebro brilhante e que passa a ocupar atividades de gabinete e especulativa. 

Além disso, ele chama a atenção para situações anômicas em que atividades diferentes podem entrar em atrito. Essa anomia ocorre quando, "Em tempo de fome ou de crise econômica, as funções vitais são obrigadas, para se manterem, a garantir sua subsistência em detrimento das funções menos essenciais. As indústrias de luxo periclitam, e as porções da fortuna pública que serviam para mantê-las são absolvidas pelas indústrias de alimentação ou de artigos de primeira necessidade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 269). Porém, Durkheim deixa claro que são casos anômicos e que só ocorrem quando o organismo (no caso, a sociedade) não é nutrida regularmente. Ou seja, o equilíbrio funcional é visto como o meio de evitar tais problemas. 

Já se encaminhando para o final desta terceira parte, Durkheim questiona a origem das novas necessidades que levam ao desenvolvimento da especialização do trabalho. Ele acredita que essas necessidades surgem como um efeito da luta pela vida. Para que os progressos sejam realizados, faz-se necessário uma violenta e árdua luta pela vida que gera consigo custos e fadigas. Para reparar essas fadigas, os homens acabam criando novas necessidades que acabam facilitando o desenvolvimento da especialização. No texto, ele cita o exemplo da alimentação: 
É assim que o camponês, cujo trabalho é menos estafante do que o operário das cidades, se mantém igualmente bem, embora com uma alimentação mais pobre. Este não pode contentar-se com uma alimentação vegetal e, ainda assim, mesmo nessas condições, tem muita dificuldade para compensar o déficit que um trabalho intenso e contínuo aprofunda a cada dia no orçamento do seu organismo (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271).
Dito isso, ele considera que essas novas necessidades criadas estão relacionadas a um maior desenvolvimento do sistema nervoso central dos homens. Aqui Durkheim une o biológico com o social ao afirmar que "a vida cerebral se desenvolve ao mesmo tempo que a concorrência se torna mais acesa, e na mesma medida" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271). Essa evolução cerebral é vista não apenas entre as elites, mais também entre as classes baixas e aqui Durkheim compara o camponês e o operário mais uma vez, mostrando como o primeiro é inferior em comparação com o segundo. Mas não é apenas novas necessidades que esse desenvolvimento cerebral pode causar, sendo motivo também do desenvolvimento de problemas mentais. Durkheim debate isso no seguinte trecho: 
Aliás, não é sem razão que as doenças mentais caminham a par e a passo com a civilização, nem que elas grassam nas cidades de preferência ao campo, e mais na grandes cidades do que nas pequenas. Ora, um cérebro mais volumoso e mais delicado tem exigências diferentes das de um encéfalo mais grosseiro (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271).
Logo, a nossa inteligência se desenvolve porque temos que exercê-la mais dentro de um contexto em que a luta pela vida se intensifica. É por essa razão que ele acredita que a humanidade estaria mais apta para captar uma cultura mais intensa e variada. Por fim, ele encerra essa parte do capítulo afirmando que o não atendimento a essas novas necessidades gera dor, porém, a produção dessas novas necessidades não resultam consequentemente em uma maior felicidade. Ou seja, ocorreram mudanças na sociedade mas elas não significam necessariamente progresso ou felicidade. Dito isso, ele encerra com a seguinte reflexão: 
Vê-se o quanto a divisão do trabalho nos aparece sob um aspecto diferente do que se mostra aos economistas. Para eles, ela consiste essencialmente em produzir mais. Para nós, essa maior produtividade é apenas uma consequência necessária, um reflexo do fenômeno. Se nos especializamos, não é para produzir mais, e sim para podermos viver nas novas condições de existência que nos são criadas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 274).
IV. A principal tese desta última parte é que para o florescimento da divisão do trabalho, faz-se necessária a formação precedente de uma sociedade. É por isso que ele acredita que a divisão do trabalho separa e une os indivíduos ao mesmo tempo. Ela separa ao incentivar uma maior concorrência e especialização, mas une ao permitir que essa luta se trave em sociedade. "Ora, a divisão do trabalho une ao mesmo tempo que opõe; faz convergir as atividades que diferencia; aproxima aqueles que separa. Já que a concorrência não pode ter determinado essa aproximação, é necessário que esta última tenha preexistido; é necessário que os indivíduos entre os quais a luta se trava já sejam solidários e o sintam, isto é, pertençam a uma mesma sociedade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 275).

Em suma, a especialização requer um desenvolvimento anterior da sociedade. É preciso que existam vínculos morais preexistentes para esse desenvolvimento que necessita de base para assentar-se. Durkheim busca inserir a importância do social e combate uma perspectiva individualizada do desenvolvimento da divisão do trabalho. Ele insiste na tese: 
O trabalho não se divide entre indivíduos independentes e já diferenciados, que se reúnem e se associam para porem em comum suas diferentes aptidões. Porque seria um milagre que diferenças nascidas assim, ao acaso das circunstâncias, possam se ajustar tão exatamente de modo a formar um todo coerente. Longe de precederem a vida coletiva, dela derivam. Elas só se podem produzir no âmbito de uma sociedade e sob pressão de sentimentos e necessidades sociais; é o que as faz serem essencialmente harmoniosas. Portanto, há uma vida social fora de toda divisão do trabalho, mas que esta supõe (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 277).
Com isso, a cooperação para Durkheim é resultado da construção precedente de uma sociedade. Baseando-se em Comte, ele afirma que a cooperação só tem espaço quando os indivíduos se formam coletivamente e essa formação é impulsionada por afinidade consaguínea, apego a um determinado solo, culto a determinados ancestrais etc. Ou seja, o fator social/coletivo precede a possibilidade da existência da cooperação. É com base nessas ideias que colocam extrema importância do fator social que Durkheim se diferencia e critica os utilitaristas, pois eles concebem a gênese da sociedade sob uma perspectiva individualizada e isolada. 

Para o sociólogo francês, essa perspectiva individualizada não tem fundamento e comprovação de sua veracidade. Isso porque das individualidades não pode sair nada que não seja individual e, como a cooperação é um fato social, ela se encontra submetida as regras sociais e não a impulsos isolados. Assim sendo, afirma categoricamente: 
A vida coletiva não nasceu da vida individual, mas, ao contrário, foi a segunda que nasceu da primeira. É apenas sob essa condição que se pode explicar como a individualidade pessoal das unidades sociais pôde formar-se e crescer sem desagregar a sociedade (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 279).
Sob essa perspectiva durkhemiana, o indivíduo não seria anti-social, pois é um produto da sociedade. Logo, a cooperação desses indivíduos requer o desenvolvimento precedente de uma sociedade.  
   
  
  
 
 
 


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