quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Integração do Negro na Sociedade de Classes - V. 1

  • Sobre o autor: Florestan Fernandes foi um sociólogo brasileiro, nascido em São Paulo, contendo uma vasta carreira acadêmica entre os anos de 1950 e 1980. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Florestan logo se tornaria mestre e doutor pela universidade com base em estudos sobre a sociedade Tupinambá. Foi professor da USP até 1969, ano em que foi compulsoriamente aposentado pela Ditadura Militar, instalada no país em 1964. Exilado, Florestan trabalhou como professor visitante nas Universidades de Columbia e Yale. Também foi professor titular da Universidade de Toronto. Graças a anistia, retorna ao Brasil onde exerce sua profissão na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). A partir dos anos de 1980, Florestan se envolve com a política e se torna uma das figuras chaves que darão origem ao Partido dos Trabalhadores (PT). Pelo PT elegeu-se deputado constituinte em 1986 sendo reeleito para a Câmara de Deputados em 1990. Florestan morre em 1995 após erro médico, quando foi submetido a uma cirurgia de transplante de fígado. Entre suas principais obras, podemos citar: a) A função social da guerra na sociedade Tupinambá; b) A revolução burguesa no Brasil; d) Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana.

A Integração do Negro na Sociedade de Classes - V. 1 - Editora Dominus


Nota Explicativa - Nesta nota explicativa, Florestan Fernandes traça o caminho da obra e traz importantes elementos que serão analisados. Em um sentido literal, ele afirma que a obra analisa o surgimento do povo na história. Tratando com um tema pouco ou mal desenvolvido pelos cientistas sociais de então, a obra busca estudar as transformações ocorridas durante a transição da ordem escravocrata para a capitalista competitiva, tendo a posição desprivilegiada do negro e do mulato como recorte analítico. O recorte do negro e do mulato tem um motivo claro: foram eles que tiveram o pior ponto de partida nesta nova sociedade capitalista competitiva que brotava no país. Assim,
No conjunto, a análise permite considerar os aspectos psico-dinâmicos e sócio-dinâmicos da mobilização do homem da plebe para os papéis sociais e as situações de vida da ordem social competitiva (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 11).
Dito isso, Florestan considera a situação do negro e do mulato como um problema de ordem social que impede o pleno desenvolvimento da ordem social competitiva na sociedade brasileira. Em seguida, reforça a tese do livro: "a análise converte-se em um estudo da formação, consolidação e expansão do regime de classes sociais no Brasil do ângulo das relações raciais e, em particular, da absorção do negro e do mulato" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 11).

Além do recorte racial, o livro apresenta outro recorte: suas análises se limitam ao estudo da situação do negro e do mulato na cidade de São Paulo, logo, não se trata de uma produção sociológica que visa ter alcance nacional. Florestan justifica sua escolha pela cidade, pois foi neste estado que o desenvolvimento do capitalista se apresentou de uma forma mais intensa, acelerada e homogênea. Foi em São Paulo, afirma o autor, que a revolução burguesa mostrou sua vitalidade seguindo a seguinte fórmula: trabalho livre na pátria livre. "Assim, o estudo de São Paulo permitia apanhar melhor as conexões existentes entre a revolução burguesa, a desagregação do regime servil e a expulsão do "negro" do sistema de relações de produção" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 12). Logo, o recorte na cidade permitia uma visão panorâmica do doloroso drama sofrido pelo negro /mulato na nova sociedade que surgia. 

Feitas essas considerações gerais, o autor avança e apresenta como a obra está organizada. A primeira parte visa analisar o período que vai de 1880 a 1930; a segunda parte vai do período de 1930 a 1960. O primeiro capítulo compreende o período de 1925 a 1948; o segundo as décadas de 1940 a 1960; e, por último, o terceiro capítulo apresenta análises de dados colhidos em 1951. Encerrando essa nota explicativa, Florestan deixa claro que a escolha pela análise da ordem social competitiva não é movida por uma crença de que ela desenvolverá as soluções para o problema racial brasileiro. Sua escolha significa que suas implicações acarretam consequências na contemporaneidade e por isso faz-se necessário sua devida análise. 

I - O Negro na Emergência da Sociedade de Classes

Introdução -  O primeiro parágrafo já deixa claro o teor da obra: mostrar como o negro/mulato, recém libertos da posição de escravos, não foi devidamente inserido na nova sociedade que surgia após a Abolição. O fim do regime escravocrata se operou sem nenhum tipo de assistência aos agora ex-escravos. Os senhores não foram responsabilizados pela inserção desses novos cidadãos livres e instituições como o Estado e a Igreja não foram responsáveis por ações que ajudassem negros/mulatos. Diante desse cenário, "O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 1). Diante deste contexto, a Abolição para Florestan acabou dando início a uma nova espoliação e crueldade. É comentando sobre o fracasso da Abolição que Florestan cita Luís Gama, sendo interessante reproduzirmos aqui a nota número três em que o sociólogo paulista descreve a seguinte história sobre essa importante figura do movimento abolicionista: 
Eis como Ezequiel Freire descreve a ocorrência: "Um dia, faz 8 anos, estávamos no escritório de Luís Gama, onde também viera um prêto fugido apresentar pecúlio e pedir para a sua libertação o auxílio nunca negado daquele outro prêto de coração de ouro. Com pouco, a convite de Luís Gama chegou o senhor do escravo, de quem Luís era amigo. Ao ver o seu negro: Que mal te fiz eu, rapaz? diz o senhor. Pois não tem boa cama e boa mesa, roupa e dinheiro? Queres então deixar o cativeiro de um senhor bom como eu, para ires ser infeliz em outra parte? Que te falta lá em casa? Anda! Fala! E o negro, ofegante, cabisbaixo, calava-se. Falta-lhe, responde gracejando Luís Gama, dando uma palmada de amigo no homem de sua côr, falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira..." (A Província de São Paulo, 13-XI-1887) (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 1-2).
Para Florestan, a Abolição também impedia que o negro fosse infeliz onde e como queira, apesar de liberdade formal concedida. De um lado, tínhamos os senhores que só se interessava pelo destino do escravo enquanto este existia como motor da sua lavoura. Com a Abolição, pouco importava para os senhores o destino de seus agora ex-escravos e suas preocupações se voltavam para o recebimento de indenizações que viessem os auxiliar na "crise da lavoura" que se projetava. 

Por outro lado, o movimento abolicionista liderado por brancos, não teve capacidade de ir além da simples demanda imediata da liberdade humana. Florestan até admite a participação de negros na luta abolicionista, porém, considera que eles serviram como "massa de percussão" dos brancos que, sob um discurso de conteúdo humanitário, visava ruir o antigo regime. Não sendo os brancos abolicionistas capazes de um olhar além da mera liberdade formal, os negros não tiveram capacidade para tomar consciência do processo em curso e por isso não conseguiram se organizar em torno de reivindicações mais profundas. 

Do ponto de vista estrutural, ocorreram duas situações: a) em regiões em declínio econômico, a Abolição foi vista com entusiasmo, pois agora não seria mais necessário manter obrigações onerosas com os escravos que até antes da Abolição já vinham sendo encaminhados para o sul do país; b) em regiões prósperas por conta do cultivo do café, ocorreram dois casos distintos: no primeiro, onde a produção se mantinha em níveis baixos, os libertos ou aceitavam a reinserção no sistema de produção sob uma condição análoga à escravidão ou mergulhariam na desocupação ou semi-ocupação; já no segundo caso, onde a produção se mantinha em níveis altos, o liberto se viu tendo que disputar no mercado de trabalho contra os "trabalhadores nacionais" (afastados de atividades produtivas por conta do trabalho escravo, mas que agora necessitava ocupar novas funções) e com o imigrantes europeus que chegavam em grande quantidade no país. 

Para Florestan, as consequências dessa concorrência no mercado de trabalho não foi vantajosa para os negros que se viram em desvantagem em comparação com os "trabalhadores nacionais" e, principalmente, dos imigrantes europeus. Logo, o negro via sua posição como agente de trabalho ser completamente arruinada por uma nova sociedade competitiva que não a colocava como prioridade. O resultado disto foi cruel: 
Perdendo sua importância privilegiada como mão-de-obra exclusiva, êle também perdeu todo o interêsse que possuíra para as camadas dominantes. A legislação, os podêres públicos e os círculos politicamente ativos da sociedade mantiveram-se indiferentes e inertes diante de um drama material e moral que sempre fôra claramente reconhecido e previsto, largando-se o negro ao penoso destino que êle estava em condições de criar por si e para si mesmo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 3).
Mas a cidade de São Paulo apresentava maiores dificuldades para a inserção do negro nesta nova ordem competitiva. Como diz o autor, "Em primeiro lugar, a expansão urbana de São Paulo não reproduziu o padrão típico das cidades brasileiras que floresceram em conexão com o progresso da civilização agrária" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 3). São Paulo se desenvolve concomitantemente ao declínio do regime servil e do tráfico negreiro. Surgida sob as ruínas do escravismo, acabou não acumulando um desenvolvimento precedente que impedia a aparição de tarefas pouco diferenciadas como serviços. Inserido em uma cidade pouco desenvolvida, o negro se via apenas com a lavoura como opção para trabalhar, limitando seu leque nesta nova ordem competitiva. 

O segundo ponto que dificultava a situação do negro em São Paulo, foi a dura competição que esse teve que enfrentar com o imigrante europeu. Em cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador as atividades urbanas artesanais deram ao negro uma pequena ascensão social e econômica. Mas São Paulo, pouco desenvolvida urbanamente, não proporcionava esse tipo de atividade e as poucas que surgiram foram ocupadas por imigrantes europeus que eram vistos em grande número na cidade. E "Eliminado para os setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do processo, retirando dêle proveitos personalizados, secundários e ocasionais" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 4).

O terceiro ponto a dificultar a inserção do negro na sociedade competitiva de São Paulo, foram suas limitações psico-sociais para se inserir nessa nova dinâmica social. Isso ocorreu porque a cidade de São Paulo "aparecia como o primeiro centro urbano especificamente burguês" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 4). Logo, desenvolveu-se rapidamente na cidade uma mentalidade mercantil baseado pela busca do lucro e da riqueza. Os comportamentos na cidade se moldaram aos padrões do empresário capitalista e do trabalhador livre assalariado, produto da civilização capitalista. O negro então se apresentava como uma figura deslocada daquele contexto, pois ainda adquiria ações que Florestan denomina de "pré e anti-capitalistas". Em suma, as condições psico-sociais hegemônicas em São Paulo não combinavam com as ações e pensamentos dos negros, tornando a cidade paulista um ambiente impróprio e até perigoso para esses recém-libertos. E essa desambientação ocorria porque "as deformações introduzidas em suas pessoas pela escravidão limitavam sua capacidade de ajustamento à vida urbana, sob regime capitalista, impedindo-os de tirar algum proveito relevante e durador, em escala grupal, das oportunidades novas" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 5). E completa: 
Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sôbre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideias de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 5).
Por fim, Florestan encerra a introdução descrevendo o que será trabalhado no decorrer do capítulo. Na primeira parte, ele analisará as vinculações entre urbanização e europeização em São Paulo e como ela afetou a posição do negro como agente de trabalho; Na segunda parte, se debruça na análise da formação das classes sociais na cidade centradas na figura do "fazendeiro" e do "imigrante" com a exclusão do "negro" e do "mulato" da cena social; Já na terceira parte, Florestan encerra avaliando como o processo de urbanização trouxe impactos negativos para o destino do negro em São Paulo. 

1. Trabalho livre e europeização - O primeiro dado apresentado por Florestan é que o grande surto da lavoura cafeeira aliada a expansão urbana, tornou São Paulo uma cidade composta por um grande número de estrangeiros. Para analisar o aumento da presença dos estrangeiros na cidade, Florestan se baseia em censos demográficos da época. Comparando os censos, conseguimos perceber essa tendência: se em 1854 os estrangeiros representavam apenas 3% da população paulista, esse número sobe para 25% em 1886. 

Analisando os números após a Abolição, Florestan identifica que realmente existiu um aumento de negros e mulatos na cidade, tendo em vista que muitos desses haviam se deslocado do campo onde trabalhavam anteriormente. Porém, o número de brancos nas cidades cresceu bem mais. E entre esses brancos, a maioria eram de estrangeiros (54,6% versus 45,4%). E era esse estrangeiro que se tornava o principal agente do trabalho livre dessa nova ordem social competitiva. Ainda sobre essa comparação entre negros e estrangeiros, diz o autor: 
 As indicações fornecidas sôbre a distribuição da população no espaço não são conclusivas. Ainda assim, parece que o padrão de distribuição étnica difusa comportava uma conexão ecológica significativa em dois pontos: onde havia maior concentração de "estrangeiros", era mínima a presença e negros e mulatos; e, ao inverso, onde havia maior concentração de negros e mulatos, era mínima a presença de "estrangeiros" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 9).
Surgindo como a grande esperança de desenvolvimento, o imigrante europeu ocupou os principais postos de trabalho, jogando o negro e o mulato para tarefas brutais e degradantes. Com isso, conclui Florestan: 
Enquanto o branco da camada dominante conseguia proteger e até melhorar sua posição na estrutura de poder econômico, social e político da cidade e enquanto o imigrante trocava sucessivamente de ocupações, de áreas de especialização econômica e de posições estratégicas para a conquista de riquezas, de prestígio social e de poder, o negro e o mulato tinham de disputar eternamente as oportunidades residuais com os componentes marginais do sistema - com os que "não serviam para outra coisa" ou com os que "estavam começando bem por baixo" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 10).
Em vista do privilégio dos imigrantes, onde ele estava presente o negro e o mulato eram inevitavelmente eliminados como agentes do trabalho livre. Para reforçar ainda mais sua argumentação, Florestan traz mais números que comprovam a forte presença dos imigrantes na cidade. Sem fazer uma descrição completa dos dados, vamos destacar apenas alguns pontos: dos capitalistas analisados na pesquisa, 80,5% eram nacionais e já expressivos 19,4% eram estrangeiros; exceto as atividades agrícolas em que os trabalhadores nacionais exerciam predomínio, os imigrantes eram hegemônicos nas restantes como serviços domésticos, ativiades manufatureiras, atividades artísticas, atividades de transportes e atividades comerciais. De modo geral, "Em relação ao total considerado, 71,2% dos trabalhadores da cidade de São Paulo eram estrangeiros" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 11).

Os números acima faz Florestan concluir que o imigrante europeu branco se converte em agente de trabalho hegemônico desta nova ordem social competitiva, baseada do trabalho livre e assalariado, colocando os negros e os mulatos em uma posição subalterna. E sobre esses, as opções de vida eram as seguintes: 
Diante do negro e do mulato abrem-se duas escolhas irremediáveis, sem alternativas. Vedado o caminho da classificação econômica e social pela proletarização, restava-lhes aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano em crescimento ou abater-se penosamente, procurando no ócio dissimulado, na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 12).
Retornando ao que discutiu rapidamente na introdução, ele reafirma a tese de que o negro e o mulato detinham uma psicologia que dificultava sua adaptação a nova sociedade que surgia. Florestan chega até a utilizar a palavra "irracionalidade" ao se referir a um conjunto de ideias pré-capitalistas (e anti-capitalistas também) que o negro e o mulato representavam. Um dos exemplos dados é que os negros e os mulatos queriam impor elementos morais nos contratos de trabalho, exigindo dos capitalistas a obrigação de garantia de direitos extra-econômicos que não combinava com as novas relações entre patrão-assalariado. Mas Florestan aprofunda e lista os comportamentos que fizeram o negro e o mulato terem dificuldade em se inserir na nova ordem competitiva da cidade: 
A recusa de certas tarefas e serviços; a inconstância na frequência ao trabalho; o fascínio por ocupações real ou aparentemente nobilitantes; a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio; a indisciplina agressiva contra o contrôle direto e a supervisão organizada; a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica - essas e outras "deficiências" do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com que se defrontavam no regime de trabalho livre (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 13-14).
O rápido desenvolvimento urbano e capitalista da cidade de São Paulo, sem um período transitório e gradual, acabou dificultando o desenvolvimento de uma mentalidade, experiência e comportamentos que expressassem no negro e no mulato um estilo de vida condizente com as novas condições. Eis o sentido e os motivos da irracionalidade do comportamento dos negros e dos mulatos que Florestan menciona. E, buscando combater ideias preconcebidas de que os negros fugiam do trabalho, responde: 
Doutro lado, êsse oferece um desmentido cabal às interpretações malévolas, que passaram a ser ventiladas com insistência, de que os "ex-escravos fugiam do trabalho". Êles tentavam participar dos fluxos da vida econômica da cidade; apenas, fizeram-no à sua maneira - porque não podiam proceder de outro modo - e viram-se repudiados, na medida em que pretenderam assumir os papéis de homem livre com demasiada latitude ou ingenuidade, num ambiente em que tais pretensões chocavam-se com generalizada falta de tolerância, de simpatia militante e de solidariedade (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 14).
Florestan coloca que o liberto geralmente não ia para muito longe, buscando reinserção com o antigo senhor ou apenas trocava uma fazenda por outra. Geralmente, a deserção dos libertos acontecia em fazendas onde o senhor lhes tratavam como se ainda fossem escravos. O processo acabou enveredando por dois caminhos: a) em regiões em decadência econômica e com pouca mão de obra disponível, a inserção do ex-escravo ocorria quase que imediatamente; b) em regiões prósperas e com uma mão de obra diversificada, o liberto perdia espaço para o imigrante europeu branco; c) o comportamento considerado desviante dos ex-escravos acabaram incutindo um sentimento de intolerância nos senhores que passaram a enxergá-los como ingratos. 

Essas situações provam que o negro e o mulato tentaram se inserir na nova ordem social competitiva, mesmo que isso significasse se sujeitar a ocupações tão degradantes como foi a escravidão. Entretanto, essa tentativa não surtiu efeito, pois os empregadores tinham uma predileção pelos imigrantes europeus com quem tinham mais confiança. Conclui Florestan: 
Com a universalização do regime de trabalho livre, a persistência daquelas noções e a abundância relativa crescente da mão-de-obra mais valorizada fizeram com que o colono, como "trabalhador livre", eliminasse o negro ou o mulato mesmo nas ocupações para as quais êles se achavam adestrados e gozavam de alguma reputação favorável (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 17).
E é diante dessas questões que o autor considera o drama sofrido pelo negro como um "dilema econômico nacional". Em suma, "Todo o processo orientava-se, pois, não no sentido de converter, efetivamente, o "escravo" (ou o "liberto") em "trabalhador livre", mas de mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do "negro" pelo "branco"" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 18). Essa troca do negro pelo branco é desenvolvida por Florestan que traz elementos que confirmam tal tese. Dois elementos são citados no texto: a) primeiro Florestan cita um trecho do jornal O Correio Paulistano de 30 de outubro de 1887 em que afirma o seguinte: "" Se o escravo, como instrumento de trabalho, é imprestável, trate o proprietário de substituí-lo por outro mais profícuo, ou pelo menos, utilize-se dêle segundo as atuais condições de trabalho"" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 18-19); b) depois ele traz propostas da elite da época como as feitas por Antônio Prado, que afirmou que a tendência do desenvolvimento do trabalho livre era a substituição do negro pelo branco imigrante, encarando essa substituição como uma consequência de leis econômicas. O imigrante branco era visto como fonte de progresso e esperanças, sendo necessário colocá-lo como agente de trabalho hegemônico. 

Apesar desses fatos, Florestan não culpa o fazendeiro e nem o imigrante como responsáveis individuais pela exclusão do negro e do mulato. Existiam teses que acreditavam em um acordo premeditado entre os fazendeiros e outras de que o imigrante saiu vitorioso porque apenas preencheu uma lacuna deixada pelos negros que decidiram abandonar as fazendas após a Abolição. O sociólogo paulista se mostra contrário a essas explicações simplistas. E afirma o seguinte sobre o suposto plano premeditado dos fazendeiros em excluir os negros como agentes de trabalho: 
O grande proprietário deu preferência ao imigrante onde a prosperidade econômica e a abundância relativa de mão-de-obra estrangeira foram acentuadas; nas regiões em que isso não sucedeu (ou ocorria em menor escala), teve de apelar para os libertos ou para a chamada mão-de-obra nacional (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 20).
Já se encaminhando para o final desta primeira parte do capítulo, Florestan afirma que os resultados até aquele instante colhidos nos levaria a uma visão panorâmica da posição do negro e do mulato na emergente ordem social competitiva no estado de São Paulo. Basicamente, mostrava as consequências da revolução burguesa para o negro e o mulato. Dito isso, ele acredita que no século XIX não se tinha condição para a construção de uma revolução social que viesse a modificar aquele cenário. A classe social que dirigiu a revolução burguesa, baseada na mudança do trabalho servil para o trabalho livre-assalariado, foi a classe dominante dos proprietários rurais.

E a preocupação central dessas classes dominantes não eram com a liberdade, a dignidade ou a segurança que eles já desfrutavam; mas com a renovação da mão de obra. Sobre isso, diz o autor: 
Ora, o problema número um das camadas dominantes, nas zonas de intensa produção e exportação de café, relacionava-se com o suprimento e a renovação de mão-de-obra. Já ninguém pensava, na última década do século XIX, que se poderia resolver êsse problema nos quadros da escravidão. A resistência escravista apegava-se a motivos estritamente egoísticos, pois via-se no escravo uma inversão de capital e um instrumento de trabalho que deveria ser exprimido até o bagaço (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 22).
As próprias classes dominantes, observaram as limitações da escravidão como ele bem descreve no seguinte trecho: 
Os proprietários agrícolas, principalmente os grandes proprietários das regiões prósperas, sabiam muito bem que a coexistência do trabalho escravo com o trabalho livre encarecia êste último: a escassez de trabalhadores assalariados convertia-os em luxo dispendioso, além de tornar custosa ou incerta sua substituição, se êles resolvessem largar as ocupações ou trocar de patrão (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 23).
E acrescenta, 
Também descobriram a maior produtividade do trabalho livre, mas para aproveitá-la, impunham-se inovações na organização das fazendas que eram incompatíveis com o regime servil; em particular, a larga experiência reunida desde os primeiros conflitos com os imigrantes ensinaram que a organização e o desenvolvimento do trabalho livre eram incompatíveis com a persistência dos padrões de dominação praticados nas relações do senhor com o escravo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 23).
Com o enfraquecimento do tráfico negreiro, esses proprietários passavam a necessitar ainda mais do trabalho assalariado, passando a enxergar o trabalho livre como a solução para seus problemas. Sendo assim, capitanearam as mudanças e tornaram-a benéficas para a grande lavoura cafeeira. E resumindo brilhantemente a tese defendida nesta primeira parte do capítulo, Florestan o encerra fazendo o seguinte balanço do processo: 
O processo, no conjunto, foi realmente revolucionário: consagrou a Abolição do cativeiro e a instituição universal da ordem contratual na sociedade brasileira. Contudo, deixou-se ao curso natural das relações humanas a determinação do que isso poderia significar, em situações concretas, como democratização efetiva dos direitos e deveres fundamentais dos indivíduos, garantidos juridicamente (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 24).
Dito isso, encerra trazendo as consequências deste processo no âmbito das relações raciais em São Paulo:  
Se isso foi prejudicial aos trabalhadores brancos, estrangeiros ou nacionais, e se corrompeu pela base os próprios fundamentos jurídicos e morais da ordem contratual (a eficácia do contrato continuou a depender amplamente, na prática, do estatus e do poder relativo das partes), para o "negro" as consequências foram piores. Sem as garantias de reparações materiais e morais escrupulosas, justas e eficazes, a Abolição equivalia - nas zonas de vitalidade da lavoura cafeeira - a condená-lo à eliminação no mercado competitivo de trabalho ou, no mínimo, ao aviltamento de sua condição, como agente potencial de trabalho livre (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 23).
E conclui: 
Longe de equipará-lo ao trabalhador assalariado branco, estrangeiro ou nacional, expunha-o fatalmente, de modo previsível e insanável, ao desajustamento econômico, à regressão ocupacional e ao desequilíbrio social (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 23).
2. O negro e a revolução burguesa - Florestan inicia esta segunda parte do capítulo mostrando a centralidade da grande fazenda do café no desenvolvimento da revolução burguesa no Brasil. Para ele, pois, do desenvolvimento desta empresa está complexamente ligada ao declínio da sociedade de castas e ao consequente florescimento da ordem social competitiva. Por conta disso, a fazenda cafeeira terá papel central no desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo que surge atrelada aos interesses econômicos dos cafeicultores. Esses fazendeiros passam a se modernizarem, exercendo funções econômicas, políticas, comerciais e financeiras. Assim sendo, esses homens passam de meros proprietários de terra para transformarem-se em verdadeiros homens de negócios. E são esses homens, não o que Florestan chama de "burguesia acanhada e vacilante", que oferece a base econômica e jurídico-política da nova ordem social que se cria. 
Em consequência, as cidades em questão convertem-se nas fronteiras econômicas da grande emprêsa agrária e nos verdadeiros bastiões da luta pelos seus interêsses mais profundos. Não é a sua acanhada vacilante "burguesia" que oferece a base econômica e o fulcro jurídico-político da formação incipiente da ordem social competitiva. Mas o círculo dos grandes homens de negócios da época, os quais detinham em suas mãos as engrenagens da vida econômica e política: os fazendeiros prósperos e os agentes da comercialização do processo de exportação do café, com a vasta rêde de associados e dependentes que ambos possuíam na estrutura ocupacional, econômica e de poder das comunidades urbanas (ou em urbanização) (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 25).
É por essas razões que as instituições criadas durante o Segundo Império e a Primeira República, estiveram postas para servir aos interesses desses homens de negócio do café. Logo, todas as inovações institucionais e a liberalização jurídica-política advinda na República, servem aos anseios desta grande empresa agrária e, consequentemente, buscam o desenvolvimento do trabalho livre que esta pressupunha. Porém, apesar dessas mudanças, adverte o autor: 
Fora e acima disso, continuaram a imperar os modelos de comportamento, os ideais de vida e os hábitos de dominação patrimonialista, vigentes anteriormente na sociedade estamental e de castas. Para que a ordem social competitiva pudesse expurgar-se dêsses influxos constritivos e perturbadores, consolidando-se numa direção especificamente "burguesa", "liberal-democrática" e "urbana", impunha-se que surgisse nas cidades um sistema de produção que as equiparasse ao campo ou as tornasse independente dêle (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 26).
A conclusão é que o "coronelismo", como substituto da antiga "nobreza agrária", consegue combinar a nova ordem social competitiva e urbana (representada no texto como sistema republicano-presidencialista) com o antigo regime. Sendo assim, o novo surge ajustado pelas antigas estruturas. A consequência dessa lógica para a cidade de São Paulo não poderia ser outra a não ser "uma sociedade de classes que só era igualitária nos estratos dominantes e só era aberta para aquêles que detinham o poder" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 26). Para o negro e o mulato, as chances de certa inclusão neste contexto só seria possível se estivessem vinculados as grandes famílias brancas, porém, de um modo geral "Para êles, na quase totalidade, a sociedade de classes permanecia não igualitária e fechada" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 27).

Daí Florestan chama a atenção para a necessidade de analisar a situação do negro e do mulato sob uma perspectiva dupla: a) primeiro, analisá-lo no contexto urbano da cidade de São Paulo; b) analisá-lo no contexto da vida social rural. Nos dois aspectos, sua situação é basicamente a mesma: são vítimas de um processo que os transformam em elementos subalternos do sistema social que se renovava. A diferença é que essa subalternidade estaria presente de uma forma mais incisiva na cidade, logo, "Em consequência, em certas zonas rurais, em que as mudanças eram mais lentas, abriam-se facilidades de acomodação que o negro e o mulato não encontrariam nem na cidade de São Paulo, nem nas regiões em que a economia cafeeira possuía maior vitalidade" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 27). 

Uma das causas deste processo excludente foi, segundo o autor, o não protagonismo do negro e do mulato no processo que culminou com a Abolição. Apesar de participarem do processo, eles não se configuraram como protagonistas. Essa tese fica clara no seguinte trecho: 
O fato do escravo e do liberto terem intervido como o principal fermento explosivo na desagregação do sistema de castas não é, em si mesmo, um índice de participação revolucionária consciente e organizada em bases coletivas autônomas. Não existiam condições para que isso ocorresse e, se chegasse a ocorrer, o abolicionismo daria lugar a uma "união sagrada" entre os brancos, para conjurar o "perigo" de uma subversão racial 
(FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 27).
Trazendo à tona este tese, Florestan faz uma crítica direta e dura ao movimento abolicionista que não foi capaz de proporcionar ao negro e ao mulato o protagonismo de suas lutas; apenas o utilizou como combustível para a aceleração da desagregação da sociedade de castas sem que isso significasse uma organização autônoma dos agora libertos. O resultado dessa limitação é visto por ele da seguinte forma: 
A moral da história é simples. Terminadas as agitações, os escravos e os libertos sabiam bem, coletivamente, o que não queriam. Contudo, não tinham consciência clara sôbre o que deveriam querer coletivamente nem de como agir socialmente, para estabelecer semelhante querer coletivo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 28).
Sem esse pertencimento coletivo, a situação do negro e do mulato se agravaria e ele ficaria mais vulnerável a injusta competição contra o homem branco, seja ele estrangeiro ou oriundo da plebe nacional. Assim, "Dentro de semelhante contexto econômico, psico-social e sócio-cultural, as humilhações, os ressentimentos e os ódios, acumulados pelo escravo e pelo liberto sob a escravidão e exacerbados de forma terrível pelas desilusões recentes, lavravam destrutivamente o ânimo de negros e mulatos" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 28-29). Restavam três opções diante deste contexto: a) se lançar no que Florestan chama no texto de "caboclização no campo", ou seja, encarar penosas migrações para outras regiões do estado ou até mesmo para outros estados em busca de encontrar algum pedaço de terra para desenvolver uma agricultura de subsistência; b) aceitar precárias condições de trabalho, fundamentadas em contratos que não traduziam em melhorias das condições de vida e que só eram conseguidos após longas peregrinações por fazendas; c) fixar-se na cidade de São Paulo e encarar "serviços extenuantes, mal pagos e amargamente desabonadores", caso conseguissem. É por isso que a nova ordem social não foi sentida da mesma forma por brancos e negros. Sobre essa constatação, afirma: 
As oportunidades de engajamento no trabalho agrícola ou urbano, por piores que fôssem, soavam, para os brancos nacionais da plebe, como uma liberação econômica e social; algo que os lançava nas correntes das fôrças vivas e produtivas do País, arrancando-os da miséria material e moral anterior. Tais perspectivas, para o negro ou o mulato, equivaliam ou a uma nova degradação ou a ficar, praticamente, como antes. Ambas as consequências espezinhavam sua sensibilidade e seu senso moral, desmascarando por fim a verdadeira realidade: estavam tão longe quanto no passado recente de serem livres por inteiro, com segurança, prestígio e dignidade (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 30).
Dessas três opções elencadas acima, a escolha pela agricultura de subsistência e a aventura na cidade é vista por Florestan como uma espécie de protesto mudo. Logo, "Não se tratava, propriamente, de uma fuga da realidade. Mas, de um mudo protesto de desespêro e a única saída para evitar uma condição humana confusamente percebida e representada como indigna, indesejável e repulsiva" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 30). Para que isso não ocorresse, seria preciso que o processo que levou a Abolição tivesse sido construído sob novas bases. Essas bases teriam que oferecer a negros e mulatos uma autonomia econômica, política e social que os transformassem em verdadeiros agentes de seus destinos. Apenas desta forma é que eles poderiam imprimir ao movimento abolicionista fins verdadeiramente revolucionários, dando uma eficácia prática ao processo e, consequentemente, imprimindo uma influência ativa na organização das novas orientações jurídico-política que surgiram da ordem social competitiva. Apesar disso, Florestan deixa claro que não se trata de olhar negros e mulatos como figuras passivas pois, segundo ele, não houve apatia e passividade mas sim falta de protagonismo real. 

Diferente de tudo que foi dito acima, o regime escravista que deu lugar ao regime do trabalho livre, não preparou o escravo para que esse pudesse agir como um trabalhador livre. Tal regime preparou os escravos apenas para trabalhar aonde os brancos não eram bem vistos exercendo aquelas funções. Aqui Florestan menciona o historiador Caio Prado Júnior para mostrar como o regime escravista prejudicou o escravo: 
A escravidão deformou o seu agente de trabalho, impedindo que o negro e o mulato tivessem plenas possibilidades de colhêr os frutos da universalização do trabalho livre em condições de forte competição imediata com outros agentes humanos. Como escreve Caio Prado Jr., "realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator de trabalho e fator sexual, não determinará senão relações elementares e muito simples. O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esfôrço físico constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para um plano de vida humano mais elevado. Não lhe acrescentará elementos; pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo nêle o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido do seu estado primitivo". Em síntese, a escola da escravidão não formou, apenas, o agente do trabalho escravo: deformou-o  (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 31-32).
Esse deformado agente de trabalho seria substituído pelo imigrante europeu sem maiores transtornos, o que Florestan adverte que esse processo já tinha dado início ainda no regime servil como demonstra estudos realizados por Couty ao observar fazendas no oeste paulista. Já se encaminhando para a reta final dessa segunda parte do capítulo, ele busca fazer uma análise de duas figuras importantes no desenvolvimento de São Paulo: a) o fazendeiro de café; b) o colono. Após analisar essas figuras, Florestan retorna ao negro e ao mulato. 

Ele começa analisando o fazendeiro de café que, durante a sociedade de castas, era regulado por um código tradicionalista que focava mais no status social do que propriamente na riqueza. Esse status equivalia mais que a capacidade produtiva do "engenho" ou da "fazenda". Porém, condicionado a uma nova situação externa e não por uma suposta natureza democrática do café, esse proprietário rural transforma-se em empresário. Sobre o desenrolar dessa transformação, diz ele: 
Êsses fatôres fizeram-se sentir fortemente na organização da vida agrícola, na medida em que deslocaram o centro de interêsses do fazendeiro da fazenda para os processos puramente econômicos ou especulativos dos "negócios do café", compelindo-o a tornar-se êle próprio produtor e intermediário ou a associar-se intimamente com êste. Doutro lado, a expansão gradual do trabalho livre e a sua universalização final forçaram reajustamentos rápidos que produziam efeitos da mesma natureza: desvencilhar a "fazenda" da ordem patrimonial, obrigando o fazendeiro a desenvolver uma mentalidade típica de empresário capitalista, constantemente atento à produtividade e à remuneração dos fatôres da produção 
(FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 33).
A mudança do fazendeiro para o capitalista, acarretará consequências na formação urbana da cidade de São Paulo que vai ser apontado no seguinte trecho: 
As cidades que saem da velha letargia, oriunda da sua subordinação passiva aos interêsses agrários, centro de gravitação da vida econômica, encontram nesse fazendeiro (e nos capitais que trazia da agricultura), seja um dos agentes do financiamento das indústrias incipientes ou de tôda sorte de atividades comerciais lucrativas, seja o próprio empreendedor dos negócios bancários, industriais, comerciais e imobiliários de certo vulto ou de maior alcance especulativo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 33).
A cidade, então, ganha impulso a partir da nova atuação econômica desses fazendeiros outrora vinculados a uma ordem social tradicionalista. Por sua vez, os colonos se apresentam para Florestan contendo três práticas que vieram a contribuir para a consolidação do capitalismo: a) ao serem meros trabalhadores livres assalariados que se recusavam as relações patrimonialistas, típicas do antigo regime, obrigando com isso os fazendeiros de café a modernizarem-se; b) ao desenvolverem na cidade o que Florestan chama de novas atitudes perante o trabalho ou técnicas; c) ao promoverem uma acumulação capitalista com base na poupança que, no futuro, proporcionou novos focos do desenvolvimento capitalista na cidade e no campo. Ademais, escreve Florestan: 
Os elementos migrantes da população nacional e as camadas intersticiais da parte culta das populações urbanas irão preencher, em grau maior ou menor, funções análogas às do colono. Mas, êle foi não só o componente numericamente "predominante", mas ainda o fator humano "típico" dos processos econômicos e histórico-sociais assinalados (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 34).
E os negros e mulatos? Permanecem sendo vistos pelo autor como categoria social excluída do processo de expansão capitalista em São Paulo. Os dois polos dominantes dessa expansão ou eram membros das classes dominantes ou eram homens advindos da Europa e que estavam no Brasil na condição de imigrantes. Aos negros e mulatos só restavam algum tipo de integração e inserção, caso estivessem vinculados a grandes famílias ou a circunstâncias individuais que quem consegui obter êxito frente a essa onda de prosperidade. Porém, são vistos por Florestan como casos isolados e não podem ser encarados sociologicamente. Dito isso, o trecho abaixo mostra a percepção que colonos e negros tinham do processo em voga: 
Em entrevistas feitas para focalizar o assunto, ficou patente que os brancos interpretaram a situação em têrmos psicológicos: o mulato e o negro "não tinham ambição", por isso não arrostavam, como os imigrantes europeus, as duras dificuldades que permitiam converter a poupança em fator de acumulação capitalista, de mobilidade ocupacional e de ascensão social. Os informantes negros e mulatos revelam maior realismo, mostrando-se convictos de que não tinham meios para inserir-se no referido processo, competindo quer com os brancos nacionais, quer com os imigrantes (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 35).
Por serem casos isolados, negros e mulatos que conquistaram alguma ascensão durante esse contexto não podem ser considerados como fatores humanos que contribuíram efetivamente para o desenvolvimento capitalista do estado; apenas conseguiram se aproveitar de vácuos de um crescimento econômico súbito. Como não se viam como pertencentes a um grupo social, os negros e os mulatos não conseguiram reunir condições psico-sociais de contribuir para a evolução capitalista em marcha. Isso porque, desde o período escravocrata, eles sempre enfrentaram empecilhos no desenvolvimento de uma vida social coletiva. Todas as formas de união entre eles foram desbaratadas pelos brancos que temiam a eclosão de uma rebelião negra. E, 
O efeito de tudo isso foi que o negro e o mulato emergiram do mundo servil sem formas sociais para ordenar socialmente a sua vida e para integrar-se, normalmente, na ordem social vigente. Não só saíam da escravidão espoliados material e moralmente; vinham desprovidos, em sua imensa maioria, de meios para se afirmarem como uma categoria social à parte ou para se integrarem, rapidamente, às categorias sociais abertas à sua participação (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 36).
Diferente dos negros e mulatos, espoliados material e moralmente, os brancos (sejam eles membros da classe dominante ou não) tiveram, segundo Florestan, círculos sociais integrativos mais ativos como à família e as relações de parentesco. Os negros e mulatos, por sua vez, não tinham essa rede de solidariedade social e por isso encontravam-se em um estado de anomia que fazia suas motivações não terem nenhum efeito prático. Nesta parte do texto, fica clara a influência de Durkheim em Florestan que utiliza da ideias funcionalistas como "estado de anomia" e "laços de solidariedade" para explicar a degradação do negro e do mulato. Diante disso, os negros e mulatos: 
Não podiam entrar na corrente de prosperidade nem "fazer a América". Enquanto não dispusessem do suporte organizatório necessário, estavam condenados a vegetar nas posições econômicas conquistadas no primeiro impulso, a perdê-las se a competição com os brancos aumentasse e a sofrer os efeitos perniciosos da regressão sócio-econômica. Portanto, mesmo aquêles que foram beneficiados pelas circunstâncias estavam substancialmente desajustados, aparecendo como as maiores vítimas da herança social da escravidão e como autênticos "párias da fortuna" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 37).
É por isso que para ele "Essas conclusões demonstram que a existência ou não de certas motivações econômicas básicas era secundária com referência à "população de côr"" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 37). Com isso, ele admite que a exclusão social de negros e mulatos era parte de um processo que iria além da esfera econômica.  Sem substrato material e moral, esses setores de viam historicamente condenados nesta ordem social emergente, baseado no trabalho livre. Assim, Florestan conclui: 
Qualquer que seja a perspectiva de que consideremos a formação e a consolidação inicial do regime de classes em São Paulo, o negro e o mulato sempre surgem como vítimas indefesas de um clamoroso destino histórico. Sob a aparência da liberdade, herdaram a pior servidão, que é a do homem que se considera livre, entregue de mãos atadas à ignorância, à miséria, à degradação social. Como deixaram de ser "escravos" ou "libertos", não contavam mais com a solidariedade universal dos brancos (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 37).
Sem laços sociais desenvolvidos, seja nos pequenos ou nos grandes agrupamentos sociais, os negros e mulatos diante da Abolição, se viram "Como se nascessem naquele momento para a vida, teriam de gravitar no lôdo e nêle construir o ponto de partida, de sua penosa ascensão ao "trabalho livre". A sociedade de classes torna-se uma miragem, que não lhes abre de pronto nenhuma via de redenção coletiva" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 38). Só lhes restaram "as amarguras da servidão invisível, mais dolorosa que a outra, por dissimular-se sob a égide da igualdade civil" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 38). Por fim, Florestan enxerga um lado positivo desse processo. Diante desta exclusão e isolamento de negros e mulatos, teríamos condições para o desenvolvimento gradual de "mecanismos psico-sociais" que proporcionariam, no próprio meio negro, a socialização deles para a sociedades de classes. Excluídos, eles seriam os responsáveis por, entre si, desenvolverem laços e se constituírem enquanto coletividade. 

3. Expansão urbana e desajustamento estrutural do negro - Nesta terceira e última parte do capítulo, Florestan visa analisar as consequências que o desenvolvimento urbano acelerado implicou sobre o negro e o mulato. São Paulo acabou sendo um grande atrativo para diversos grupos étnicos, tendo em vista seu crescimento rápido e por isso expressou de forma mais clara as polarizações entre esses grupos. Florestan admite que recorre aos censos para provar a magnitude dessa expansão, pois não existem outros meios. E, a análise desses censos levam a conclusões como a seguinte: "separando-se os três principais contingentes demográficos da população paulistana na época, constata-se que a "população negra" apresenta o índice de crescimento relativo mais baixo" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 41). Por outro lado, "as tendências mais nítidas à concentração na cidade partiam dos contingentes brancos, com predominância desproporcional dos brancos estrangeiros" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 41). 

Florestan acredita que os negros e mulatos que fugiam da cidade eram indivíduos que tinham certa experiência com a vida urbana, procurando outras cidades paulistas (e até brasileiras) em busca de melhores oportunidades. Sobre o perfil desses negros e mulatos que fugiam de São Paulo, ele aponta duas característica:
  1. Eram indivíduos qualificados ou semi-qualificados, insatisfeitos com a concorrência desigual com os imigrantes; 
  2. Os mulatos compunham a maioria desse grupo migrante. 
Traçado o perfil desses indivíduos, o autor analisa o impacto desse processo para os sexos. Analisando os censos de 1890 e 1893, ele observa que o incremento de mulheres em São Paulo era maior que o dos homens. As razões dessa maior presença feminina na cidade é explicada da seguinte forma:
Ora, a mulher encontrou maior facilidade de ajustamento ao trabalho livre. De um lado, no regime escravocrata os serviços domésticos, principalmente nas zonas urbanas, não envolviam a mesma degradação do seu agente que o duro "labor da roça". Êles provocavam maior contato permanente com os brancos, e facilitavam as relações paternalistas ao velho estilo. Portanto, várias condições favoreciam a estabilidade "mulher negra", como e enquanto serviçal doméstica (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 42).
Assim sendo, o homem negro encontrou mais dificuldades para conseguir uma ocupação em comparação com a mulher; então ligada aos serviços domésticos. De principal agente de trabalho no período escravocrata, o negro e o mulato se viram deslocados da nova ordem. De uma forma geral, Florestan assim resume a instabilidade e dificuldades do negro e do mulato no contexto urbano:
  1. Apenas uma parcela da população negra tinha experiência com a vida urbana; 
  2. As rápidas e repentinas transformações da cidade de São Paulo, transformou esses libertos em estranhos inseridos em uma "cidade estrangeira"; 
  3. Essa população por não ter traquejo que a vida urbana, acabavam ocupando atividades periféricas e marginal; 
  4. E, por fim, dentro dessa população as mulheres encontraram condições mais favoráveis em comparação com os homens.   
Sobre o último ponto, esclarece o autor: 
Por causa de sua investigação à rêde de serviços urbanos, é a mulher (e não o homem), que vai contar como agente de trabalho privilegiado - não no sentido de achar um aproveitamento ideal ou decididamente compensador, mas por ser a única a contar com ocupações persistentes e, enfim, com um meio de vida (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 43).
Essa situação precária acabou sendo uma grande decepção para negros e mulatos que enxergavam com fascinação a cidade.  Esse fascínio era presente, graças ao importante papel que a cidade exerceu na degradação do regime servil. A cidade não se apresentava apenas como um espaço menos degradante para os escravos (mergulhados na lavoura), mais também se constituiu como palco de uma opinião pública organizada que combateu o trabalho escravo e os excessos dos senhores; seja pela via jurídica (Luís Gama) ou pela via direta (Antônio Bento). 
Nesse sentido, a cidade afirmava-se como um símbolo e uma promessa de liberdade. Viver nela, pura e  simplesmente, parecia aos olhos dos que saíam do cativeiro uma condição ideal para se despojarem mais depressa do que houvesse de ignóbil de "escravo" ou de "liberto" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 45).
Porém, a realidade foi outra. A cidade de São Paulo logo quebraria a ligação desse liberto com o passado rural mas ao mesmo tempo não o inseriu devidamente no novo contexto urbano. Florestan chama a atenção para a dubiedade que se encontrava em São Paulo, dubiedade que dificultava ainda mais a inserção do negro e do mulato. Isso porque a capital paulista cresceu demais para reproduzir totalmente os antigos costumes, entretanto, ainda mantinha resquícios tradicionais e/ou provincianos que impediam que um pleno estilo de vida urbano se apresentasse. O resultado desta dubiedade foi devastador, pois: 
O negro ou o mulato não encontravam, nela, as vantagens típicas da grande cidade, em particular as possibilidades de isolamento cultural, de tolerância e de êmprego em massa; e, doutro lado, também não contavam com as vantagens das "cidades" convicta ou conformadamente rurais brasileiras, a estabilidade social, a vigência de concepções tradicionalistas e as compensações da economia de subsistência. Essa dubiedade, característica da fase de transição, expunha os elementos de extração rústica e estranhas contradições (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 45).
Esse avanço do progresso só estava alinhado aos interesses da classe dominante e dos imigrantes, então empenhados no enriquecimento súbito. Entretanto, Florestan admite que todas as classes envolvidas nesse processo carregavam traços rústicos, possuindo esse imaginado progresso um aspecto exterior e nada homogêneo. A superação desses traços rústicos iria depender das funções que esses indivíduos viessem ocupar nas atividades econômicas existentes na cidade. Os negros e mulatos sentiram essa situação da pior forma possível, pois "Êle se viu tolhido nos anseios e perpetuar a parcela da herança cultural, que se atravessara a escravidão ou se formara graças a ela. Contudo, ficou imobilizado dentro de um tradicionalismo tôsco e inoperante" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 46). Com isso, as perdas culturais foram mais presentes que a aquisição de novos modos de agir e pensar. E os outros grupos étnicos em meio a esse processo? Diz o autor: 
Os demais grupos étnicos, nacionais ou estrangeiros, também eram portadores de uma herança rural e também a perpetuaram parcialmente. Contudo, êles tiveram chances de entrosarem-se, mais ou menos, com as "exigências da situação", modernizando seus estoques de idéias, de comportamentos ou de valores nas áreas vitais à participação vantajosa nas tendências e nos proventos da urbanização (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 47).
Esse processo de exclusão do negro/mulato e possibilidade de inclusão dos outros grupos étnicos, acabou gerando o que Florestan denominou de "círculo vicioso" que dava ao negro uma participação marginal no crescimento urbano paulista.  Tal processo acabou desenvolvendo uma segregação espacial e racial. Esse círculo vicioso vai impedir que o negro/mulato desenvolva constelações psico-sociais que o ajudem na inserção na ordem social competitiva. Por conta disso, eles acabaram interpretando de forma equivocada o significado da liberdade que acabaram de conquistar, através da Abolição. Florestan aponta três equívocos que os negros reproduziam no tocante liberdade: a) a noção de que a liberdade significa a plena disposição sobre si, podendo escolher quanto, onde e como trabalhar; b) a noção de que a dignidade do homem livre significa não aceitação a serviços degradantes; c) a noção pré-capitalista de que o trabalho deve ser regulado pelas necessidades do consumo do indivíduo. 

Esses posicionamentos dos libertos, entraram em atrito com os interesses dos fazendeiros que, primeiro, tinham dificuldades em tratar esse ex-escravo como homem livre; e, segundo, não se aceitavam essa auto-determinação dos negros/mulatos nem as suas consequências (trabalho indisciplinado e irregular). Citando o relato de um fazendeiro, Florestan mostra a oposição desses aos negros e mulatos recém-libertos que eram considerados exigentes, morosos e indisciplinados. Demoram nas horas de refeição, param o trabalho para fumar e em caso de qualquer ofensa largam as ferramentas e se vão. Sobre esse problema, aponta Florestan: 
Faltava ao liberto, portanto, a auto-disciplina e o espírito de responsabilidade do trabalhador livre, as únicas condições que poderiam ordenar, espontâneamente, a regularidade e a eficácia do trabalhador no nôvo regime jurídico-econômico. Como existia a alternativa de substituí-lo, pois os imigrantes eram numerosos e tidos como "poderosos e inteligentes trabalhadores", as fricções engendradas pela persistência daquelas três constelações psico-sociais eram fatais ao negro e ao mulato (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 49).
Tudo isso acaba desenvolvendo uma má reputação dos negros que acabavam banidos do mercado de trabalho ou forçados a ocupar atividades indesejáveis, insignificantes e marginais. Essas condições psico-sociais acarretaram consequências devastadoras para a população negra. Entre aqueles que rumaram às cidades após a Abolição, a maioria eram jovens. Os mais velhos optavam por ficar no campo e, com frequência, nas mesmas fazendas em que foram escravos. Na cidade, esses jovens negros ocupavam atividades marginais como serventes de pedreiro ou biscateiros e as mulheres, como já foi dito acima, trabalhavam em empregos domésticos. Diante dessa situação, "o negro tinha de agir com grande oportunismo, "aceitando o que aparecesse", e quase sem fazer exigências. Servir de carregador, aceitar serviços de limpeza de casas, entregar folhetos ou transportar cartazes, trabalhar nas cavalariças, como serviçais nas pensões ou como ajudantes de pedreiros, de carpinteiros, de pintores, etc" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 50). 

Atividades lucrativas, como que modestas como peixeiro, eram ocupadas por imigrantes e em especial pelos italianos. Baseando-se em relatos, Florestan mostra que alguns informantes negros e mulatos chamam a atenção para a falta de amparo moral mas admitem a inconstância ao trabalho. Alguns atritos existiram entre negros e brancos (imigrantes italianos em particular) com os primeiros caçoando dos imigrantes que se privavam do conforto para guardar dinheiro. Apesar desses atritos, os informantes brancos dão um maior foco em seus relatos ao relaxamento do trabalho por parte dos negros, ficando os conflitos em segundo plano. Os negros também mantiveram conflitos com os senhores e as famílias tradicionais que os abarcavam. Florestan descreve esses conflitos: 
De fato, os atritos registrados envolviam, em regra, conflitos de expectativas de comportamento, tendo comumente por protagonistas negros ou mulatos jovens e representantes das famílias tradicionais. Ou a empregada "preta" queria que tratassem seu filho "como gente" ou ficava chocada com a desconsideração ostensiva no trato com os patrões, com seus filhos e com seus amigos; ou o trabalhador "prêto" ressentia-se com o "orgulho" dos patrões, dos colegas e dos freguêses. O resultado constante de tais atritos cifrava-se no abandono imediato do trabalho, às vezes precedido de um desabafo emocional pelo "ofendido" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 51).
E mais, 
Êsses destemperos eram facilitados pela propensão dos ex-senhores, mencionada tenazmente pelos informantes negros e mulatos, de se recusarem a pagar pelo "serviço do negro" ou pela inclinação alternativa de atribuir-lhe um valor vil, em flagrante contraste com o que sucedia, em situações análogas, no intercâmbio com os estrangeiros (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 51).
Esse tratamento desigual fazia os negros acreditarem que os membros dessas famílias tradicionais sentiam ódio dos libertos por causa da Abolição e se vingavam humilhando-os de propósito. Florestan admite que esse ódio pudesse existir de fato, pois vários relatos de membros dessas famílias fazem referência a "ingratidão do negro" e seu "espírito interesseiro". Todavia, relatos de negros mostram que o paternalismo tradicionalista ainda se fazia presente mesmo diante desse cenário. E a presença desse paternalismo faz Florestan pontuar uma oposição entre: o negro da casa grande e o negro do eito. 

O negro da casa grande mantinha um maior contato com os brancos e por isso receberam uma melhor educação. Alguns sabia ler e escrever, possuindo também melhores maneiras de se portar ao copiar os comportamentos dos antigos senhores. As mulheres aprendiam a administrar a casa, acumulando diversos conhecimentos como serviços domésticos, costura, cozinha etc. Com a Abolição esses negros tiveram uma melhor inserção na nova ordem social competitiva. "A proteção do branco abria duas compensações: a herança das roupas usadas; o "cartucho" para alguns emprêgo melhor" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 52). Graças ao protetor branco, esses negros herdavam roupas que possibilitavam abrir caminhos na busca de empregos. Eles poderiam trabalhar em escritórios, mas sempre em empregos subalternos dentro desses espaços. Porém, apesar de modestas, eram atividades que lhes garantia uma boa renda e prestígio social, em comparação com os negros do eito. E "Por isso, pela década de 20 êsse estrato da população negra começava a aparecer como a elite de côr paulistana ou, na linguagem do informante, "os pretos de salão" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 52).

Já os negros do eito foram aqueles que sentiram de uma forma mais cruel as consequências da mudança do trabalho escravo para o livre. Eram os mais pobres e desqualificados da população negra. Sem o mesmo vestuário dos negros da casa grande, os negros do eito encontravam muitas dificuldades para encontrar emprego. "Tímidos e ingênuos, preferiam sofrer calados e isolar-se até dos companheiros melhor sucedidos" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 53). 

Porém, apesar dessa presença paternalista, são casos isolados que não podem ser vistos de uma perspectiva estrutural. Destaca Florestan: 
Dificilmente a persistência do paternalismo, na escala em que ela se deu e marcadamente como um processo de defesa da posição das grandes famílias na estrutura de poder da sociedade nacional, poderia beneficiar, em grosso, tôda uma categoria de ex-escravos. Parece que, na verdade, os "negros da casa grande" ou do "sobrado" tiveram certas vantagens relativas, através de suas ligações com os brancos, na competição por segurança com os "negros do eito" ou da "lavoura". O que isso representou, como mecanismo de ajustamento do liberto ao mundo urbano, não pode nem deve ser exagerado (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 54). 
Em suma, o número de negros da casa grande era bem menor que os do eito. Desses negros do eito, Florestan chama a atenção para a dependência financeiro que o homem tinha da mulher. Com dificuldades para encontrar emprego, esses homens se encontraram dependentes das mulheres que encontravam mais facilidade na busca por um meio de vida. Essa condição de dependência acabou sendo, com o tempo, consentida e aprovada socialmente. "Doutro lado, a perpetuação dessa condição em grande número de casos favoreceu uma ampliação do ócio em um meio no qual havia pouco o que fazer, construtivamente, com o tempo e com as energias humanas. Muitos homens entregaram-se, assim, à ociosidade permanente e descobriram, no convívio com outros homens da mesma condição, um ótimo passatempo" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 54). 

A consequência desse ócio dos homens negros foi o desenvolvimento de reuniões em público que logo começaram a ser dispersadas pelas forças policiais. Logo após a Abolição, a reunião de negros em espaço público era proibido com a justificativa de prezar pela "segurança da ordem" e "moralidade dos costumes". Mas aos poucos ficava claro que os libertos não representavam nenhuma ameaça a ordem, sobrando apenas uma fiscalização preventiva que gerava desconforto em negros tidos como "trabalhadores" e "ordeiros". Porém, se antes os negros eram vistos como perturbadores da ordem, agora novos estereótipos foram criados como o de vagabundo, cachaceiro etc. Logo, 
O terror diante do liberto e do alcance ou das consequências de suas agitações foi substituído por outra espécie de temor, que correspondia, literalmente, à redefinição do negro pelo branco. Já não aparecia como o "inimigo da ordem", porque conspirasse pela liberdade; mas como uma ameaça ao decôro, à propriedade e à segurança das pessoas (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 56).
Essa situação gerou denúncias de alguns círculos abolicionistas, representados por veículos de comunicação como os jornais A Redempção e O Diário Popular. A leitura dessas denúncias levam a crer que os negros conquistaram apenas parcialmente uma segurança material e moral. Apesar dessas insatisfações, a situação do negro não modificara. Além do mais, muitas dessas indignações estavam galgadas de tradicionalismo. Pois, "Na opinião dos brancos aristocráticos, mas tolerantes e simpáticos ao ex-escravo, êstes não possuíam qualidades intelectuais e morais para conduzir sua própria vida. Daí, onde e quando não recebessem a orientação dos antigos senhores, tinham de sofrer e pagar um preço elevadíssimo pela liberdade" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 57). Florestan chega a citar relatos desses aristocratas que carregavam forte teor nostálgico a escravidão, onde os negros seriam mais felizes, especialmente, quando trabalhavam para bons senhores. Segundo esses aristocratas, o negro não tinha cabeça para se organizar socialmente sozinho, sendo necessário seus auxílios que foram descartados com o fim da escravidão. Contestando esse pensamento, afirma Florestan: 
O que lhe faltava não era, propriamente, a continuidade da tutela dos ex-senhores. Era experiência e domínio das técnicas sociais e culturais do ambiente, de cujo uso se viram sempre privados, como escravos, e a cujo acesso se viam excluídos, apesar da liberdade, no meio urbano (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 57).
Diferentemente desses aristocratas saudosistas do período escravocrata, os militantes do movimento abolicionista criticavam essa visão de que os negros precisavam da tutela de seus antigos senhores. Para esses militantes, os negros tinham capacidade de agirem e pensarem pela própria cabeça. A proposta desses abolicionistas era de que negros e brancos desfrutassem das mesmas regalias, da vida econômica à política. Entretanto, abolicionistas como Antônio Bento também reproduziram esse tradicionalismo, visto nos discursos dos aristocratas. Florestan mostra dois pontos que provam sua tese. O primeiro estaria na proposta utópica de que as condições sócio-econômicas do negro melhorariam com a organização de cursos ou a fundação de escolas destinadas para os libertos e seus filhos. Sobre essa utopia, diz Florestan: 
Não bastava alfabetizar o negro ou prepará-lo, intelectualmente, para certos ofícios. Impunha-se prepará-lo para tôdas as formas sociais de vida organizada, essenciais na sua competição com os brancos por trabalho, por prestígio e por segurança e garantir-lhe, além e acima disso, aproveitamento regular de suas aptidões e autonomia para pôr em prática os seus desígnios (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 58).
O segundo ponto que comprova a presença do tradicionalismo em abolicionistas como Antônio Bento, está no seu reacionismo ao criticar as instituições republicanas e passar a defender, nostalgicamente, o período monárquico que também foi incapaz de auxiliar o negro. Com o tradicionalismo dos aristocratas e do abolicionistas, faltava a formação de uma intelectualidade negra independente e realista. Tal ausência é, inclusive, apontada por informantes negros e mulatos. Enquanto essa consciência independente não se formava, os negros da casa grande que conquistaram algum espaço por conta própria ou por conta da proteção dos brancos, procuravam se diferenciar dos negros do eito. Essa "elite de côr" (termo utilizado pelo Florestan), visava reproduzir o mundo dos brancos, se afastando como podiam dos "negros reles". Por outro lado, esses negros reles esperavam o advento de uma segunda Abolição. Sobre a oposição entre esses dois grupos, mostra o autor:
O negro que se integra à ordem social competitiva, mesmo em posições marginais ou secundárias, repudia as condições anacrônicas de existência, com todo o seu séquito de consequências letais; o negro que fica à margem da vida social organizada e de tôda esperança, sucumbe à própria inércia (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 59).
Esse distanciamento cultural será motivo de atritos entre esses dois grupos. O negro traquejado e inserido, mesmo que minimamente, na nova ordem social competitiva percebia o preconceito que sofria dos brancos. Eles apenas buscavam se identificar com esses para atingir mais depressa seus objetivos. Já os outros negros, tímidos e inexperientes, mantinham um respeito exagerado pelos brancos e por isso achavam melhor não protestar contra as adversidades. Resume Florestan: 
Em suma, um segmento pequeno e relativamente exclusivista da "população negra" predispunha-se ao inconformismo construtivo e começava a forjar uma consciência realista da situação de contato, tendo em vista os interêsses do negro nos processos econômicos, sociais e políticos. Mas, por sua vez, afastavam-se da realidade e do presente. Ansiavam por um estilo de vida que não se coadunava sequer com os propósitos dos brancos estrangeiros, que construíam sua independência sem atentar para os padrões de decôro das antigas camadas senhoriais; e negavam, como os próprios brancos, sua solidariedade diante dos verdadeiros componentes da "ralé negra da cidade", afastando-se e envergonhando-se dela, como se todos não tivessem um destino e uma causa comuns (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 60).
E foram esses negros letrados que começaram a refletir sobre a situação do negro com um teor inconformista. Assim como os brancos, acreditavam que os negros não estavam preparados para a liberdade. Todavia, conseguiam aprofundar mais o debate em comparação com os brancos. Por exemplo, "quase doentiamente, ressaltam que o negro não encontrou nenhum amparo, oficial ou particular, enquanto o imigrante estrangeiro absorvia tôdas as atenções e recursos existentes" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 60). Também mostravam que a herança dos negros, seja ele protegido ou não pelo branco, foi cercada de miséria, abandono e corrupção. Essa péssima herança seria uma injustiça com aqueles que construíram o progresso do país, sendo os principais agentes de trabalho nos ciclos da cana, do ouro e do café. 

Apesar de avançarem em comparação com os brancos, esses intelectuais negros defendiam propostas de superação próximas das pensadas por Luís Gama. Porém, como aponta Florestan, essas propostas se encontravam anacrônicas e que só teriam tido eficácia durante a ordem social tradicionalista. Com o desenvolvimento de uma nova ordem social, fazia-se necessário pensar em outras soluções para o problema. Além disso, eles reproduziram outro erro: a personificação do processo, responsabilizando os antigos senhores que teriam ódio dos negros. Florestan admite que a classe dominante era de fato a culpada pelo processo em curso, mas não com base em argumentos personificados como os vistos por esses intelectuais. Isso porque, "A vontade pessoal dos fazendeiros, polarizada na direção de "auxiliar" ou de "prejudicar" os antigos "braços negros", não teve influência relevante discernível no encaminhamento das fôrças históricas" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 61).

Porém, apesar de não colocar o andamento do processo como uma simples reprodução de ódio dos brancos contra os negros, ele admite que existiu um "egoísmo cego e exclusivista" de senhores que pensaram mais nas suas lavouras do que na situação dos libertos. Admitindo esse egoísmo, Florestan conclui afirmando que esses intelectuais negros também se limitavam ao colocar a culpa do processo no passado, sem avançar em uma consciência clara e objetiva do presente. "Em outras palavras, as convicções nucleares que alimentavam as avaliações críticas dos círculos mais "realistas", "independentes" e "insatisfeitos" da população negra não eram suficientes para criar um horizonte cultural próprio do "homem de côr livre"" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 61).

O resultado disso tudo foi o desenvolvimento de um pessimismo que afetava não só essa intelectualidade como os negros mais afetados pelo processo. E esse desalento em toda a população negra, impedia o florescimento de uma contestação organizada, mesmo diante das condições objetivas que propiciava essa contestação. "Sem perspectiva de criar para si o "mundo do homem livre", nada mais contava ou importava para a imensa maioria" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 61).

Dito isso, Florestan descreve cinco depoimentos de negros que analisam, oralmente, as consequências de toda essa situação. O primeiro relato destaca a falta de orientação dos negros após a Abolição que acabou o tornando vulnerável a uma série de vícios onde "muitos negros encontraram a morte pelo excesso da bebida, pela falta de confôrto dos mais comezinhos, pela fome e por outras misérias, oriundas da Abolição mal aplicada" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 62); no segundo relato é destacado os limites da lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, que deveria ter sido precedida de uma educação que ensinasse o negro a viver em liberdade; no terceiro relato o informante mostra que vigorou uma igualdade aparente após a promulgação da lei Áurea, "Suprimiram-lhes os castigos corpóreos e impigiram-lhe uma igualdade jurídica que, ainda agora, poucos conseguiram entender" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 62); no quarto relato aparece uma culpabilização do Estado, considerado como o principal responsável pelo desequilíbrio social e político que abandonou o negro; por fim, o quinto relato aponta para a ausência de uma transição que inserisse os negros na sociedade de classes, já que "Os espíritos bem formados que compartilharam dessa magnífica parada de civismo, extirparam um cancro horrendo do organismo social de nossa Pátria. Todavia, não se preocuparam com o órgão atacado, que no caso era o negro; não lhe fizeram um tratamento de cura absoluta" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 63). Ao final deste último relato, o informante acredita que apesar das dificuldades impostas o negro conseguiu se adaptar e "Venceu a lei apregoada pelos proclamadores do racismo e da superioridade racial" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 64).

Em meios a esses relatos surgiu o conceito de "espoliação secular" e a comemoração do 13 de maio como uma afirmação da liberdade do negro. Também prevalece a ideia de que o negro passou de uma escravidão física para uma moral, sendo esta última mais difícil de ser combatida, pois suscitaria controvérsias até entre os próprios negros. Uma dessas controvérsias é mostrada por Florestan de negros saudosistas dos tempos da escravidão. Segundo um informante, os tempos da escravidão eram melhores quando se tinha a sorte de encontrar um bom senhor. Outro, mais intelectualizado, faz essa defesa de um modo sutil ao afirmar que a monarquia foi melhor para o negro, pois proporcionou o desenvolvimento de várias personalidades negras, diferente da república. Essa escravidão moral apontada, suscitaria a necessidade, segundo Florestan, de uma segunda Abolição que teria o seguinte papel histórico: 
A escravidão está no próprio cerne do destino do negro na cidade de São Paulo - não a escravidão que foi destruída de repente, pela transformação da ordem legal, mas a escravidão que ficou dentro dos homens. Impunha-se estabelecer com nitidez os traços dêsse quadro complexo, que evidencia a historicidade da noção de Segunda Abolição e o fator humano de que ela depende - o negro em luta com sua herança social e cultural, construindo a sua história e determinando a significação que a liberdade deve ser em sua vida (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 65).
Por isso a obra tem sua importância ao visar ligar passado e presente, pois enquato uns sofreram o impacto terrível deste processo, outros podem extrair dele uma consciência histórica. Além do mais essa segunda Abolição só faz sentido para os negros e não pelo movimento abolicionista liderado por brancos, como bem aponta Florestan: 
Nem o espírito prático mais penetrante, nem o ardor democrático mais extremado, nem o idealismo mais puro dariam ao branco imaginação para perceber a realidade do drama do negro brasileiro, como êle se exprimia na cidade que democratizou mais depressa seus padrões e seu estilo de vida social (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 66).
E conclui, 
A idéia de uma Segunda Abolição, com o conteúdo, amplitude e a profundidade com que ela se apresenta na consciência do negro e do mulato de São Paulo, pareceria um absurdo e um jôgo vazio de palavras para o senso comum do branco. Só através do próprio "negro", no processo de transformação de seu modo de ser e de interagir com a sociedade paulistana, seria possível determinar o sentido dessa idéia e, portanto, o que o sombrio período de desorganização pessoal e social representa como uma etapa da árdua luta do "homem de côr" pela liberdade (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 66).
Neste caso, diz Florestan, a cidade não foi essencialmente desumana com o negro; ela apenas repeliu o "escravo" e o "liberto", pois esses não possuíam atributos psico-sociais condizentes com o comportamento social do homem livre. O negro se encontrava, então, duplamente desorganizado socialmente: precisava de livrar dos traços culturais herdades da escravidão e, ao mesmo tempo, era cobrado para contrair os padrões de comportamentos da nova ordem social competitiva. 

Já rumando para o final do capítulo, Florestan levanta algumas questões. Primeiro, ele não acredita que a repulsa da cidade ao negro foi resultado de uma mera rejeição racial. O negro foi rejeitado por não desenvolver capacidades específicas que se tornaram necessárias para viver naquela nova sociedade que surgia. Tal repulsão tinha um lado positivo para Florestan, pois "Representava uma exigência e, sobretudo, um desafio do "negro", para que se despojasse da natureza humana que adquirira anteriormente e adotasse os atributos psico-sociais e morais do "chefe de família", do "trabalhador assalariado", do "empresário capitalista", do "cidadão", etc" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 67). E mais, 
Entenda-se que, sociologicamente, a exclusão teria caráter especificamente racial se o negro ostentasse essas qualidades e fôsse, não obstante, repelido. Os dados expostos sugerem o inverso. Em proporção com a posse de rudimentos dêsses atributos ou em que se revelasse capaz de adquiri-los com certa intensidade, o "negro" encontrava o caminho aberto, classificando-se, socialmente (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 67-68).
Por último, Florestan mostra que já no primeiro quartel do século XX o negro foi entendendo a dinâmica da ordem social competitiva e passou a se adaptar; "tendo cabeça" e lidando melhor com a sua liberdade. Ele passa a desenvolver, segundo ele, um "espírito mais realista" da situação e passa a rever certos comportamentos como rejeitar determinadas atividades por considerá-las deprimentes e/ou indignas. Em suma, "A sua tragédia abrira-lhe os olhos tanto para as consequências deletérias do "mau uso" da liberdade, quanto para os dilemas da integração social. Compreendera, afinal, que sem a assimilação prévia de modelos de comportamento social que eram levianamente rejeitados, pois pareciam uma cadeia, ficaria eternamente à margem da prosperidade geral" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 68).

Para se tornar em um homem livre, o negro precisava primeiro viver em liberdade. Se a utilizou de uma forma errada ou contra si, era porque não conseguia agir de outra maneira. Enquanto escravo, não tivera o ensinamento os limites da liberdade e assim, "cada vez mais apto a empregar, responsável e construtivamente, o seu poder de decisão, forçando-se a substituir o deixar de fazer pelo fazer algo na direção socialmente possível (ou desejada) (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 69). Para analisar a situação do negro na ordem social competitiva, Florestan utiliza a seguinte fórmula que foi vista durante todo o capítulo: Estrutura do mundo urbano + Propulsões Psico-sociais = Situação do negro na ordem social competitiva. Essa fórmula ajudaria a entender não só o "foi" mais também o "viria a ser" a situação do negro nesta nova ordem social. E com a seguinte reflexão, ele encerra o capítulo: 
Sem exagêro, êste período da história social do "negro" na cidade de São Paulo merece ser considerado como o dos anos de espera. Os anos do desengano, em que o sofrimento e a humilhação se transformam em fel, mas também incitam o "negro" a vencer-se e a sobrepujar-se, pondo-se à altura de suas ilusões igualitárias. Enfim, os anos em que o "negro" descobre, por sua conta e risco, que tudo lhe fôra negado e que o homem só conquista aquilo que êle fôr capaz de construir, socialmente, como agente de sua própria história (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Dominus, 1965, p. 69). 
   
 
 
 
 
 
 

 
  
 
 
 
 


 
 


 

 
 
 
 




 

 
 
 

 
 



terça-feira, 14 de julho de 2020

Da Divisão do Trabalho Social

  • Sobre o autor: Émile Durkheim foi um sociólogo, nascido em 1858 na cidade de Épinal, nordeste da França. É considerado um dos pais da Sociologia, junto com Karl Marx e Max Weber. Suas ideias ajudaram a fundar nas Ciências Sociais o que conhecemos como perspectiva funcionalista. Essa perspectiva recebeu muita influência das ideias de Augusto Comte e que acabou influenciando na produção intelectual de vários sociólogos e antropólogos no decorrer do século XX. Entre suas principais obras, podemos citar: a) As Regras do Método Sociológico; b) As Regras Elementares da Vida Religiosa; c) O Suicídio. Durkheim faleceu em 1917 na cidade de Paris, capital francesa. 


Da Divisão do Trabalho Social - Émile Durkheim - Editora Martins Fontes


Introdução - O Problema

Émile Durkheim atesta a longa duração da divisão do trabalho que teria expressões desde a Antiguidade, mas que somente no final do século XVIII que começaram a surgir estudos específicos sobre sua existência e importância. O economista escocês Adam Smith é usado como o primeiro a teorizar sobre a divisão do trabalho, sendo o criador do termo. Em seguida, ele mostra o avanço da divisão do trabalho como um fato dado e que só tende a desenvolver-se cada vez mais. Essa tese fica nítida no seguinte trecho: 
Não há mais ilusão quanto às tendências de nossa indústria moderna; ela vai cada vez mais no sentido dos mecanismos poderosos, dos grandes agrupamentos de forças e capitais e, por conseguinte, da extrema divisão do trabalho. Não só no interior das fábricas, as ocupações são separadas e especializadas ao infinitum, como cada manufatura é, ela mesma, uma especialidade que supõe outras (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 1). 
O avanço da divisão do trabalho é tão grande que afetou à agricultura, contrariando as teses de Smith e Stuart Mill que enxergavam a atividade agrícola como uma resistência a essa mudança. Entretanto, "os principais ramos da indústria agrícola são cada vez mais arrastados pelo movimento geral"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 2). Os economistas posteriores a Smith e Mill, enxergando esse movimento geral, já não contesta-o e, pelo contrário, "Nela vêem a lei superior das sociedades humanas e a condição do progresso"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 2).

Mas a divisão do trabalho consegue ir além da esfera econômica, não afetando apenas à indústria e à agricultura; ela também consegue abarcar outros aspectos da vida social como as funções políticas, administrativas, judiciárias, artísticas e científicas. Como exemplo desta extensão, Durkheim comenta sobre o conhecimento científico, comparando como ele era produzido nos séculos XVIII e XIX. Até o século XVIII, diz ele, o cientista não tinha uma definição bem estabelecida e poderia ser enquadrado como matemático, astrônomo, filósofo, físico etc. E, de fato, ele se debruçava sobre essa variedade de conhecimentos como é o exemplo de Isaac Newton e Wilhelm Leibniz, ambos citados no texto. Porém, a situação era completamente diferente no século XIX em que ele, Durkheim, estava inserido: 
No século XIX, essa dificuldade não mais existe, ou, pelo menos, é raríssima. Não apenas o cientista já não cultiva simultaneamente ciências diferentes, como sequer abarca o conjunto de uma ciência inteira. O círculo de suas pesquisas se restringe a uma ordem determinada de problemas, ou mesmo a um problema único (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3).
Após esse exemplo de como a divisão do trabalho avançava por esferas para além da econômica, Durkheim coloca essa divisão como uma expressão social e consequente do que já existia como lei orgânica. Para isso ele faz menção a pesquisas na área da Biologia que mostram a divisão do trabalho na vida orgânica. Assim sendo, a divisão do trabalho existe tanto na vida biológica quanto na vida social, sendo esta última uma reprodução de uma lei formada na primeira. Para esclarecer melhor o que foi dito acima, vamos citar o próprio Durkheim que afirma o seguinte: 
A lei da divisão do trabalho social se aplica tanto aos organismos como às sociedades; pôde-se inclusive dizer que um organismo ocupa uma posição mais elevada na escala animal quanto mais as suas funções forem especializadas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3). 
A preocupação do autor é vincular a divisão do trabalho social às pesquisas biológicas, justificando um processo social com base nas ciências naturais. É desta perspectiva que o Durkheim enxerga na divisão do trabalho uma prática remota, pois sua expressão inicial e fundante se encontra na natureza, sendo por isso "quase contemporâneo ao advento da vida no mundo"  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3); sendo por isso um fenômeno de Biologia geral que se manifesta de forma consequente na sociedade. E assim, ele conclui o raciocínio desta forma:  
A divisão do trabalho social passa a aparecer apenas como uma forma particular desse processo geral, e as sociedades, conformando-se a essa lei, parecem ceder a uma corrente que nasceu bem antes delas e que arrasta no mesmo sentido todo o mundo vivo  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4). 
Durkheim afirma que o desenvolvimento da divisão do trabalho, gera consequências morais para os homens; dividindo-os entre aqueles entregues ao movimento e os contrários. Diante desses fatos, ele faz algumas perguntas importantes: 1) diante da dualidade entre simpáticos a divisão do trabalho versus contrários a divisão do trabalho, qual caminho deve-se seguir?; 2) se a divisão do trabalho é considerada como lei da natureza, podemos concluir que ela também seja uma regra moral de conduta humana?; 3) caso possa ser considerada como regra moral de conduta humana, por quais motivos e em que medida? Sobre os questionamentos, responde o autor: 
Sem dúvida, parece que a opinião se inclina cada vez mais no sentido de tornar a divisão do trabalho uma regra imperativa de conduta, a impô-la como um dever. Os que a ela se furtam não são, é verdade, punidos com uma pena precisa, fixada em lei, mas são criticados (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4)
Diante dessa regra imperativa de conduta, a divisão do trabalho prevalece sobre seus críticos e o homem que não se dedica exclusivamente a nada, dotado de compreender tudo, é cada vez menos presente pois é fruto de "uma disciplina frouxa e relaxada". Sobre o advento da divisão do trabalho sobre essa disciplina, diz Durkheim: "O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vemos, antes, a perfeição no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 5). E é por essa razão que a noção de homem uno e detentor de um conhecimento universal, vai se desmembrando e gerando a passagem do homem impessoal para o homem pessoal. Para encerrar essa passagem, ele cita o exemplo da educação: 
Um fato entre outros torna sensível esse estado de opinião; é o caráter cada vez mais especial que a educação adquire. Cada vez mais, julgamos necessário não submeter todas as nossas crianças a uma cultura uniforme, como se devessem levar todas a mesma vida, mas formá-la de maneira diferente, tendo em vista as diferentes funções que serão chamadas a preencher  (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6). 
E finaliza: 
Numa palavra, por um de seus aspectos, o imperativo categórico da consciência moral está tomando a seguinte forma: coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6).
Por outro lado, Durkheim chama atenção mais uma vez para os críticos da nova moral que surge com o advento da divisão do trabalho. E, enquanto uns se entusiasmam com essa divisão, outros chamam a atenção para seu lado negativo por conta de sua excessiva especialização. Porém, ele considera como natural tal disputa no campo moral e isso fica nítido neste trecho: "A vida moral, como a do corpo e do espírito, corresponde a necessidades diferentes e mesmo contraditórias; logo, é natural que ela seja feita, em parte, de elementos antagônicos que se limitam e se ponderam mutuamente" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 7). 

Por fim, o sociólogo francês encerra a introdução comentando sobre o método usado para a análise da divisão do trabalho; assim como traça resumidamente o objetivo da obra. Primeiramente ele deixa claro que seu método de análise não se baseia em pressupostos subjetivos, logo, apenas por intermédio da objetividade é que a ambiguidade descrita acima poderá ser finalmente resolvida. Essa subjetividade criticada por Durkheim é representada no texto pelo que ele chama de "métodos ordinário dos moralistas". O subjetivismo desses moralistas os levariam a propor uma legislação ideal a ser aplicada integralmente na realidade e "Não nos oferecem, pois, um resumo das características essenciais que as regras morais apresentam de fato em determinada sociedade ou em determinado tipo social, mas exprimem apenas a maneira como o moralista representa a moral" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 7). 

Diferentes desses moralistas, Durkheim coloca sua abordagem metodológica e teórica como objetiva, visando se afastar de impressões pessoais. Assim ele descreve sua forma de lidar com o objeto de estudo: 
A única maneira de chegar a apreciar de maneira objetiva a divisão do trabalho é estudá-la primeiro em si mesma, de uma maneira totalmente especulativa, investigar a que ela serve e de que depende - numa palavra, formar a seu respeito a noção mais adequada possível. Feito isso, estaríamos em condições de compará-la com outros fenômenos morais e de ver que ela desempenha um papel similar a alguma outra prática, cujo caráter moral e normal é indiscutido... (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8).
Diante dessa objetividade metodológica, Durkheim traça o caminho da obra que seguirá a seguinte estrutura: 1) em um primeiro momento, ele procura saber a função da divisão social do trabalho, ou seja, busca a necessidade social que ela atende; 2) depois visa determinar as causas dessa divisão do trabalho; 3) e, por último, classifica as anormalidades que essa divisão do trabalho pode apresentar. Sobre esse terceiro e último ponto da obra, diz Durkheim: "Este estudo oferecerá, além disso, o interesse de que, aqui como em biologia, o patológico nos ajudará a compreender melhor o fisiológico" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 9). Enumerada a trajetória que seguirá à obra, Durkheim encerra a introdução reforçando a importância da abordagem objetiva para a compreensão da divisão do trabalho, pois para entendê-la não basta reproduzirmos a ideia que temos dela, mas faz-se necessário enxergá-la como "fato objetivo"; observando sua estrutura e comparando com outros fenômenos. 

Livro II - As causas e as condições

Capítulo II - As causas - I. O capítulo visa abordar as causas que deram origem a divisão do trabalho. A primeira condição para o desenvolvimento da divisão do trabalho é o enfraquecimento do que Durkheim chama no texto de "estrutura segmentária". Mas o que seria isso? Seria o equivalente a sociedades tradicionais, marcada por uma forte ruralização da vida. Sobre a queda dessa estrutura segmentária e consequente desenvolvimento da divisão do trabalho, diz o autor: "Ela só pode existir na medida em que ele deixou de existir. Sem dúvida, uma vez que existe, esta pode contribuir para acelerar a regressão daquele, mas só se mostra depois de ele ter regredido. O efeito reage sobre a causa, mas não perde, com isso, a qualidade de efeito" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 251-252).

A divisão do trabalho consegue enfraquecer a estrutura segmentário, pois traz consigo uma maior concentração e inter-relação entre os indivíduos. Os vazios, típicos da vida rural em isolamento, são destruídos por um aumento das inter-relações sociais. "Em consequência, há um intercâmbio de movimentos entre partes da massa social que, até então, não se afetavam mutuamente" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 252). Assim sendo, 
As relações sociais - diríamos mais exatamente inter-sociais - se tornam, por conseguinte, mais numerosas, pois se estendem, de todos os lados, além de seus limites primitivos. Por conseguinte, a divisão do trabalho progride tanto mais quanto mais houver indivíduos suficientemente em contato para poderem agir e reagir uns em relação aos outros (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 252).
Porém, tal densidade moral em que os indivíduos se encontram estabelecendo intensas relações sociais, deve ser acrescentada de uma densidade material que possibilita a reunião em um território determinado. Logo, a densidade moral está atrelada umbilicalmente a densidade material o que faz Durkheim afirmar que não existe uma relação causa/efeito entre os dois conceitos; considerados como inseparáveis. Dito isso, Durkheim enumera três causas históricas que possibilitaram esse condensamento das sociedades. 

A primeira causa é o aumento do volume social, entendido como o aumento quantitativo da população de uma determinada região. Mas esse aumento do volume social não é suficiente e ele é acrescido de uma maior densidade material. Essa densidade material é a capacidade dessa população se concentrar em uma determinada área, território ou região. Segundo Durkheim, "Enquanto as sociedades inferiores se estendem sobre áreas imensas, relativamente ao número de indivíduos que a compõem, entre os povos mais avançados a população vai se concentrando cada vez mais" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 253). 

O desenvolvimento industrial visto nas cidades é apontado pelo autor como uma demonstração desta transformação histórica. Diferente do nomadismo ou da agricultura (apesar dele reconhecer que esta admite um pequeno estreitamento das relações sociais em comparação com o nomadismo, porém, não o suficiente para desenvolver a divisão do trabalho), a indústria representa um motor deste condensamento social em uma região circunscrita. Ademais, as sociedades europeias são vistas como pioneiras neste processo, pois "viram sua densidade aumentar de maneira contínua, apesar de alguns casos de regressão passageira" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 253). É por isso que ele coloca os europeus em posição de superioridade, quando comparados com tribos selvagens, descritas por Herbert Spencer. 

A segunda causa apontada por Durkheim é o desenvolvimento das cidades. As cidades incutem nos indivíduos a necessidade de manterem contato íntimo uns com os outros, o que permite o aguçamento da densidade moral. Sendo assim, o desenvolvimento ascendente das cidades significa o consequente enfraquecimento das organizações sociais segmentárias, pois "Não há cidade nas sociedades inferiores; não a encontramos nem entre os iroqueses, nem entre os antigos germanos" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 254). A partir disso, Durkheim conclui que a tendência do campo afluir para as cidades se mostra como uma tendência generalizada do mundo civilizado e que data desde o século XVII. 

Todas as sociedades humanas iniciam seu estágio no período agrícola e a passagem para as cidades é vista apenas em sociedades superiores. Uma das principais características dessas sociedades é o encurtamento da organização social segmentário no curso do seu desenvolvimento. Ou seja, as sociedades vistas por Durkheim como superiores são aquelas que rapidamente conseguiram superar o seu período agrícola. Diante daqueles que consideram o desenvolvimento das cidades como um sinal de velhice e decadência, contrapõe o sociólogo francês: 
A aceleração regularmente crescente desse desenvolvimento demonstra que, longe de constituir uma espécie de fenômeno patológico, ele deriva da própria natureza das espécies sociais superiores (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255).
E continua, sentenciando o futuro aniquilamento do período agrícola nas sociedades humanas: 
Supondo-se, pois, que tenha hoje atingido proporções ameaçadoras para nossas sociedades, que talvez já não tenham flexibilidade suficiente para se adaptar a ele, esse movimento não deixará de continuar seja através delas, seja depois delas, e os tipos sociais que se formarão depois dos nossos se distinguirão verossimilmente por uma regressão mais rápida e mais completa ainda da civilização agrária (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255).
Por último, a terceira causa que favoreceu o desenvolvimento da divisão do trabalho foi o aumento e aprimoramento das comunicações. Sobre esse fator, diz Durkheim: "Suprimindo ou diminuindo os vazios que separam os segmentos sociais, elas aumentam a densidade da sociedade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 255). Logo, a densidade moral proporcionada pelo aprimoramento das comunicações, gera como efeito o desenvolvimento da divisão do trabalho. Isso porque o condensamento da sociedade propicia a divisão do trabalho que, por sua vez, aumenta o adensamento social. "Mas não importa, porque a divisão do trabalho permanece o fato derivado e, por conseguinte, os progressos por que passa devem-se aos progressos paralelos da densidade social, quaisquer que sejam as causas destes últimos (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 256).

Analisada a influência da densidade social (material e moral) sobre a divisão do trabalho, ele chama a atenção para outro importante fator: o volume social, visto como o aumento da população. Logo, densidade social e volume social são fatores que precisam andar em consonância para que a divisão do trabalho, baseada no adensamento das sociedades, possa florescer. E conclui, "De fato, as sociedades são geralmente tanto mais volumosas quanto mais avançadas e, por conseguinte, quanto mais dividido é o trabalho" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 256). E para sustentar sua tese, cita Spencer que afirma que as sociedades iniciam sua evolução como gérmen e, assim como os corpos vivos, se transformam em entes diferentes da sua origem. 

É por isso que foi partindo da inferioridade que as sociedades superiores chegaram a tal posição. Apesar disso, ele admite que no interior das sociedades superiores possa existir vestígios da organização social primitiva que o antecedeu, sendo necessário o constante aumento do volume social para superar essas particularidades. Porém, Durkheim chama a atenção para exceções como o caso da China e da Rússia. E sobre essas duas exceções, diz o autor: 
A China e a Rússia são muito mais populosas do que as mais civilizadas nações da Europa. Por conseguinte, entre esses mesmos povos a divisão do trabalho não é necessariamente um sinal de superioridade, se a densidade não aumenta ao mesmo tempo e na mesma proporção (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
E continua, 
Porque uma sociedade pode alcançar dimensões enormes, por compreender um grande número de segmentos, qualquer que seja a natureza destes últimos; portanto, se mesmo os mais vastos dentre esses só reproduzirem sociedades de um tipo muito inferior, a estrutura segmentária permanecerá muito pronunciada e, em consequência, a organização social, pouco elevada (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
É por conta dessas exceções que Durkheim reitera sua tese: a divisão do trabalho social só tem condições de florescer com o aumento simultâneo do volume social, da densidade material e moral. "Portanto, o crescimento do volume social nem sempre acelera os progressos da divisão do trabalho, mas apenas quando a massa se contrai ao mesmo tempo e na mesma medida" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 258). Resumindo a ideia central desta primeira parte do capítulo, ele conclui da seguinte forma: 
Podemos, pois, formular a seguinte proposição: A divisão do trabalho varia na razão direta do volume e da densidade das sociedades, e, se ela progride de uma maneira contínua no curso do desenvolvimento social, é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e, em geral, mais volumosas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 257).
Durkheim acredita que o adensamento social, visto através da articulação entre volume social e densidade social, não meramente permitem a divisão do trabalho como requerem esta divisão. Ou seja, o adensamento social encontra na divisão do trabalho uma necessidade, visto o aumento de cooperadores e suas aproximações íntimas. É daí que surge a especialização das funções como meio de melhor organizar esta nova configuração societária. 

II. Durkheim afirma que o volume social tem influência sobre o desenvolvimento da divisão do trabalho, mas não a determina. Além disso, ele admite a possibilidade das condições externas influenciarem na especialização das sociedades. É o caso, por exemplo, de regiões de um país que por conta de condições exteriores acabam desenvolvendo uma especialidade como criação de bois, carneiros ou trigo. Porém, as condições externas também não determinam essa especialização, apesar do autor reconhecer a possibilidade da primeira influenciar à segunda. E por isso ele adverte e exemplifica: 
Porém, mesmo onde as circunstâncias externas inclinam mais fortemente os indivíduos a se especializarem num sentido definido, elas não bastam para determinar essa especialização. Por sua constituição, a mulher é predisposta a levar uma vida diferente do homem; no entanto, há sociedades em que as ocupações dos sexos são sensivelmente as mesmas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 261).
Dito isso, Durkheim conclui que as condições externas apesar de ter a condição de influenciar a divisão do trabalho, não a determina. Isso, pois, existe a possibilidade das condições externas existirem, mas não serem seguidas como foi dado no exemplo da família. Logo, faz-se necessário não só a existência dessas condições externas como também da articulação de outros fatores. Para encerrar, ele pergunta: mas qual a necessidade da especialização da divisão do trabalho? 

Spencer não conseguiu responder essa pergunta de uma maneira satisfatória, pois colocou a como necessidade da felicidade humana que aumenta com a força produtiva do trabalho. Se a divisão do trabalho propicia o avanço desta força produtiva, então logo a adotamos. Mas Durkheim busca dar outra resposta a essa pergunta que pode ser vista no seguinte trecho: 
Na realidade, esse meio só tem valor para nós se dele precisarmos e, como o homem primitivo não tem necessidade alguma de todos esses produtos que o homem civilizado aprendeu a desejar e que uma organização mais complexa do trabalho tem por efeito, precisamente, fornecer-lhes, não podemos compreender de onde vem a especialização crescente das tarefas, a não ser que saibamos como essas novas necessidades se constituíram (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 262).
III.  Durkheim inicia essa terceira parte do capítulo, afirmando que a divisão do trabalho se desenvolve para atender a uma necessidade de luta pela vida. Para fundamentar sua tese, ele irá utilizar exemplos do mundo natural com base em reflexões feitas por Charles Darwin. Concordando com Darwin, ele mostra que a concorrência entre dois organismos tende a aumentar se forem da mesma espécie. Caso os recursos de que necessitam para viver estejam em abundância, a concorrência aparece timidamente; mas a partir do momento em que sua quantidade aumenta ao ponto de colocar essa abundância em risco, surge então um conflito violento em busca pela sobrevivência. Tal conflito não existe em caso de organismos que não fazem parte da mesma espécie, pois neste caso esses organismos dependeriam de necessidades diferentes para sobreviver.

Trazendo essa lei natural para o entendimento das sociedades humanas, afirma Durkheim: "Os homens são sujeitos à mesma lei. Numa mesma cidade, as profissões diferentes podem coexistir sem serem obrigadas a se prejudicar reciprocamente, porque elas perseguem objetivos diferentes" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 264). Porém, ele admite a possibilidade de uma concorrência em profissões semelhantes que, por diferentes meios, acabam atendendo a necessidades semelhantes. Sobre esse caso específico, ele dar o exemplo do cervejeiro e do vinhateiro e também do poeta e do músico. Já aqueles que desempenham a mesma atividade profissional, seu sucesso depende do detrimento de seus concorrentes. Em suma, conclui da seguinte forma: 
Posto isso, é fácil compreender que todo adensamento da massa social, sobretudo se for acompanhado de um aumento da população, determina necessariamente progressos da divisão do trabalho (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 265).
Isto posto, o sociólogo francês desenvolve sua tese afirmando que o maior adensamento da massa social tende a gerar novas necessidades, ocasionando consequentemente uma maior produção, concorrência e especialização do trabalho. E essa especialização é impulsionada justamente pela concorrência pois, os mais fracos, quando perdem na lógica concorrencial só encontram dois caminhos: desaparecer ou transformar-se. Quando opta pela segunda opção, aceita se transferir de uma setor em que foi superado para um outro que tentará se estabelecer. Logo, temos então uma dinâmica que propicia a concorrência e também uma constante especialização. Diz o autor sobre, "Não é necessário acrescentar que, se a sociedade conta efetivamente com mais membros e que estes, ao mesmo tempo, são mais próximos uns dos outros, a luta ainda é mais acesa e a especialização que dela resulta, mais rápida e mais completa" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 267).

Apesar de se mostrar simpático ao desenvolvimento da divisão do trabalho, Durkheim não acredita que sua presença gere consequentemente uma maior felicidade entre os homens. E isso fica claro no seguinte trecho: 
De todas essas mudanças, acaso resulta um aumento da felicidade média? Não vemos a que causa ele se deveria. A maior intensidade da luta implica novos e penosos esforços, que não são de natureza a tornar os homens mais felizes. Tudo acontece mecanicamente. Uma ruptura do equilíbrio na massa social suscita conflitos que só podem ser resolvidos por uma divisão do trabalho mais desenvolvida: este é o motor do progresso (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 268).
Apesar disso, Durkheim acreditava que o desenvolvimento da divisão do trabalho geraria um melhor aproveitamento dos homens. Diferente de povos chamados por ele de inferiores, onde todo organismo imperfeito deve ser expurgado, nas sociedades mais avançadas até o indivíduo enfermiço pode encontrar seu espaço em que seja possível prestar algum serviço. Se for fraco de cérebro, terá a sua disposição atividades que exijam dele menos o uso das sua limitada capacidade intelectiva; mudança  que também pode ocorrer com um indivíduo for fraco de corpo, mas com um cérebro brilhante e que passa a ocupar atividades de gabinete e especulativa. 

Além disso, ele chama a atenção para situações anômicas em que atividades diferentes podem entrar em atrito. Essa anomia ocorre quando, "Em tempo de fome ou de crise econômica, as funções vitais são obrigadas, para se manterem, a garantir sua subsistência em detrimento das funções menos essenciais. As indústrias de luxo periclitam, e as porções da fortuna pública que serviam para mantê-las são absolvidas pelas indústrias de alimentação ou de artigos de primeira necessidade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 269). Porém, Durkheim deixa claro que são casos anômicos e que só ocorrem quando o organismo (no caso, a sociedade) não é nutrida regularmente. Ou seja, o equilíbrio funcional é visto como o meio de evitar tais problemas. 

Já se encaminhando para o final desta terceira parte, Durkheim questiona a origem das novas necessidades que levam ao desenvolvimento da especialização do trabalho. Ele acredita que essas necessidades surgem como um efeito da luta pela vida. Para que os progressos sejam realizados, faz-se necessário uma violenta e árdua luta pela vida que gera consigo custos e fadigas. Para reparar essas fadigas, os homens acabam criando novas necessidades que acabam facilitando o desenvolvimento da especialização. No texto, ele cita o exemplo da alimentação: 
É assim que o camponês, cujo trabalho é menos estafante do que o operário das cidades, se mantém igualmente bem, embora com uma alimentação mais pobre. Este não pode contentar-se com uma alimentação vegetal e, ainda assim, mesmo nessas condições, tem muita dificuldade para compensar o déficit que um trabalho intenso e contínuo aprofunda a cada dia no orçamento do seu organismo (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271).
Dito isso, ele considera que essas novas necessidades criadas estão relacionadas a um maior desenvolvimento do sistema nervoso central dos homens. Aqui Durkheim une o biológico com o social ao afirmar que "a vida cerebral se desenvolve ao mesmo tempo que a concorrência se torna mais acesa, e na mesma medida" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271). Essa evolução cerebral é vista não apenas entre as elites, mais também entre as classes baixas e aqui Durkheim compara o camponês e o operário mais uma vez, mostrando como o primeiro é inferior em comparação com o segundo. Mas não é apenas novas necessidades que esse desenvolvimento cerebral pode causar, sendo motivo também do desenvolvimento de problemas mentais. Durkheim debate isso no seguinte trecho: 
Aliás, não é sem razão que as doenças mentais caminham a par e a passo com a civilização, nem que elas grassam nas cidades de preferência ao campo, e mais na grandes cidades do que nas pequenas. Ora, um cérebro mais volumoso e mais delicado tem exigências diferentes das de um encéfalo mais grosseiro (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 271).
Logo, a nossa inteligência se desenvolve porque temos que exercê-la mais dentro de um contexto em que a luta pela vida se intensifica. É por essa razão que ele acredita que a humanidade estaria mais apta para captar uma cultura mais intensa e variada. Por fim, ele encerra essa parte do capítulo afirmando que o não atendimento a essas novas necessidades gera dor, porém, a produção dessas novas necessidades não resultam consequentemente em uma maior felicidade. Ou seja, ocorreram mudanças na sociedade mas elas não significam necessariamente progresso ou felicidade. Dito isso, ele encerra com a seguinte reflexão: 
Vê-se o quanto a divisão do trabalho nos aparece sob um aspecto diferente do que se mostra aos economistas. Para eles, ela consiste essencialmente em produzir mais. Para nós, essa maior produtividade é apenas uma consequência necessária, um reflexo do fenômeno. Se nos especializamos, não é para produzir mais, e sim para podermos viver nas novas condições de existência que nos são criadas (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 274).
IV. A principal tese desta última parte é que para o florescimento da divisão do trabalho, faz-se necessária a formação precedente de uma sociedade. É por isso que ele acredita que a divisão do trabalho separa e une os indivíduos ao mesmo tempo. Ela separa ao incentivar uma maior concorrência e especialização, mas une ao permitir que essa luta se trave em sociedade. "Ora, a divisão do trabalho une ao mesmo tempo que opõe; faz convergir as atividades que diferencia; aproxima aqueles que separa. Já que a concorrência não pode ter determinado essa aproximação, é necessário que esta última tenha preexistido; é necessário que os indivíduos entre os quais a luta se trava já sejam solidários e o sintam, isto é, pertençam a uma mesma sociedade" (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 275).

Em suma, a especialização requer um desenvolvimento anterior da sociedade. É preciso que existam vínculos morais preexistentes para esse desenvolvimento que necessita de base para assentar-se. Durkheim busca inserir a importância do social e combate uma perspectiva individualizada do desenvolvimento da divisão do trabalho. Ele insiste na tese: 
O trabalho não se divide entre indivíduos independentes e já diferenciados, que se reúnem e se associam para porem em comum suas diferentes aptidões. Porque seria um milagre que diferenças nascidas assim, ao acaso das circunstâncias, possam se ajustar tão exatamente de modo a formar um todo coerente. Longe de precederem a vida coletiva, dela derivam. Elas só se podem produzir no âmbito de uma sociedade e sob pressão de sentimentos e necessidades sociais; é o que as faz serem essencialmente harmoniosas. Portanto, há uma vida social fora de toda divisão do trabalho, mas que esta supõe (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 277).
Com isso, a cooperação para Durkheim é resultado da construção precedente de uma sociedade. Baseando-se em Comte, ele afirma que a cooperação só tem espaço quando os indivíduos se formam coletivamente e essa formação é impulsionada por afinidade consaguínea, apego a um determinado solo, culto a determinados ancestrais etc. Ou seja, o fator social/coletivo precede a possibilidade da existência da cooperação. É com base nessas ideias que colocam extrema importância do fator social que Durkheim se diferencia e critica os utilitaristas, pois eles concebem a gênese da sociedade sob uma perspectiva individualizada e isolada. 

Para o sociólogo francês, essa perspectiva individualizada não tem fundamento e comprovação de sua veracidade. Isso porque das individualidades não pode sair nada que não seja individual e, como a cooperação é um fato social, ela se encontra submetida as regras sociais e não a impulsos isolados. Assim sendo, afirma categoricamente: 
A vida coletiva não nasceu da vida individual, mas, ao contrário, foi a segunda que nasceu da primeira. É apenas sob essa condição que se pode explicar como a individualidade pessoal das unidades sociais pôde formar-se e crescer sem desagregar a sociedade (DURKHEIM, Émile. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 279).
Sob essa perspectiva durkhemiana, o indivíduo não seria anti-social, pois é um produto da sociedade. Logo, a cooperação desses indivíduos requer o desenvolvimento precedente de uma sociedade.