quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Sobrados e Mucambos - Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano



  • Sobre o autor: Gilberto Freyre nasceu (março de 1900) e morreu (julho de 1987) em Recife, capital do estado de Pernambuco. Filho do juiz Alfredo Freyre e de Francisca Freyre, Gilberto é descendente dos primeiros colonizadores do Brasil. Aos 18 anos vai estudar nos EUA com bolsa concedida pela Igreja Batista e se forma em Artes Liberais. Também estudou na Universidade de Columbia, EUA, onde conheceu sua principal referência intelectual: o antropólogo alemão Franz Boas. Pelo conjunto de sua obra, Freyre é considerado como antropólogo, sociólogo e historiador. Também foi poeta (ocupando a Academia Pernambucana de Letras em 1986), jornalista e pintor. Na sua vida política, foi filiado da União Democrática Nacional (UDN), chegando a presidir a sigla em Pernambuco. Foi eleito deputado constituinte em 1946 e, após o apoio ao golpe militar de 1964, tornou-se membro do Conselho Federal de Cultura a convite do então presidente Emílio Médici. Um dos principais nomes das Ciências Sociais no Brasil, Freyre tem como destaque as seguintes obras: a) Casa-Grande e Senzala, 1933; b) Sobrados e Mucambos, 1936; c) Ordem e Progresso, 1959. 


Sobrados e Mucambos - Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano - Gilberto Freyre - Editora Global


O Brasil como morada: apresentação para Sobrados e Mucambos - Roberto DaMatta - Nesta breve, mas profunda apresentação, é apresentada a relevância não só dessa obra como também da trajetória intelectual de Gilberto Freyre. De início, DaMatta enumera cinco motivos que o fizeram simpático da escrita de Freyre: 01) seu forte viés culturalista ao analisar os fatos, enxergando o Brasil menos como um Estado-nação e mais como um estilo de pertencer, tudo envolta por uma configuração de costumes que criou uma identidade distinta; 02) sua audaciosa intuição sociológica; 03) seu conhecimento profundo sobre a história do Brasil; 04) seu distanciamento de teorias que forjem uma receita a ser seguida pelo Brasil; e 05) sua atenção analítica a acontecimentos cotidianos, interligando micro e macro-realidade. 

Apesar dessa devoção a obra de Freyre, o autor dessa apresentação pontua o que acredita ser uma limitação das reflexões freyreanas: a não menção ou análise referente ao Estado e seus tentáculos (governo, leis e a arena política). DaMatta acredita que a oposição entre Casa-Grande e Senzala e, em seguida, Sobrado e Mucambos é limitada. Ela desconsidera a "rua", vista por DaMatta como um espaço exterior a casa e que tem uma dimensão pública. Podemos resumir dessa forma a crítica apresentada por DaMatta: 
No meu entender, portanto, a dialética do sistema brasileiro não seria a da casa-grande com a senzala e do sobrado com o mucambo, mas da casa com a rua, da pessoa (relacionada e particularizada por elos pessoais) e do indivíduo-cidadão, destituído de nome de família, de cor e de gênero, sujeito a leis que devem valer para todos (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 13).
Porém, o objetivo de DaMatta não é focar nas suas críticas a Freyre e sim aproveitar o momento em que a obra do pernambucano vem sendo rediscutida para pontuar sua importância. Isso é muito importante para o autor dessa apresentação, principalmente quando essa volta a Freyre ocorre após um intolerante tratamento dado a sua obra durante anos no Brasil. Diante disso, DaMatta afirma: a obra Sobrados e Mucambos tem relevância capital quando o assunto é discutir o que seria esse lugar que chamamos Brasil. Seu objetivo é tratar: 
De um Brasil lido como uma sociedade que nasce e rotiniza-se baseado na família extensa "patriarcal" e "tutelar", dominada pelo pater familiar (ou, em inversões significativas, pela mulher-mãe), e por uma multidão de personagens subordinados, dotados de graus diferenciados de prestígio e autoridade como os capelães, os filhos, os bastardos, os criados e, claro está, por uma pletora igualmente hierarquizada de escravos cuja posição no grupo era marcada por sua paradoxal presença como estrangeiros-íntimos e mortos sociais mas, sem os quais o sistema não teria vida, já que eles eram os seus braços, pernas, mãos e, posteriormente, conforme se acentua reiteradamente neste livro, máquinas e bestas de carga (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 13).
Diferente da obra Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos passou por diversas transformações até a sua fase final. Publicada originalmente em 1936, a obra teve sua primeira modificação em 1939. Já em 1951 foi vista uma segunda mudança, mais drástica que a primeira, adicionando cinco novos capítulos. DaMatta considera a primeira obra mais fechada, enquanto Sobrados e Mucambos seria mais uma extensa etnografia do cotidiano e suas transformações. Casa-Grande e Senzala, publicada em 1933, teria três grandes objetivos: 
  1. Combater o racismo: ao combater a visão oficial sobre o Brasil da época, considerada por Freyre como racista, e combater o paradigma racista com base no conceito de Cultura. Seu objetivo foi interpretar o Brasil sob um viés culturalista, afastando-se dos determinismo geográficos e biológicos que desaguavam no preconceito racial; 
  2. Trazer o papel da mestiçagem: ao analisar as relações sexuais entre senhores e escravos, quebrando o tabu sobre as intimidades sexuais e colocando a mestiçagem como um método de colonização. Olhando positivamente para o processo de mestiçagem, Freyre colocava o racismo da época as avessas; 
  3. Destacar a contribuição do negro: sendo o primeiro intelectual na história do pensamento social brasileiro a dar ênfase ao papel exercido pelo negro na formação do que conhecemos como Brasil. O negro, considerado como o grande responsável pelo atraso civilizacional do Brasil, seja por sua preguiça, malandragem ou sensualidade; era visto como parte fundamental e positiva na formação do nosso país. 
E, "Ao mostrar que o Brasil é o que é, precisamente por causa do português, do negro e do índio; que ele não é mesmo burguês - francês ou inglês - como gostaríamos que fosse, Gilberto Freyre abre espaço para uma visão positiva de nós mesmos" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 15). Sendo assim, faltou unidade política, mas também houve integração através das relações existentes na casa-grande. De fato, tivemos escravidão, mas isso não impediu uma ascensão social do mulato e não desenvolveu uma guerra fixada em leis entre brancos e negros, como foi visto nos EUA e na África do Sul. O povo brasileiro assistiu de longe grandes processos políticos como a Proclamação da República em 1889, mas isso não impediu que atuasse firme no campo cultural, inventando festas populares como: o carnaval, o samba, o jogo do bicho, o futebol etc. É também fato que não tivemos nenhuma guerra civil ou revolução duradoura e sangrenta que rompesse com antigas estruturas, mas conseguimos grandes transformações ao eleger um presidente operário. Em suma, criamos a nossa própria modernidade, chamada por DaMatta de "modernidade brasileira". 

Falado os objetivos de Casa-Grande e Senzala, DaMatta chega em Sobrados e Mucambos. Essa obra tem um objetivo central: analisar a "aculturação" que a sociedade brasileira, fundada pelo patriarcalismo, sofreu da chamada modernidade. Ou seja, Freyre busca compreender as mudanças sociais existentes dessa transição de uma sociedade rural para uma urbana, baseada em princípios liberais e modernos. Em ambas as obras, Freyre manteve sua essência intelectual. E qual essência ou princípio estamos falando? Segundo DaMatta, 
No trabalho de Gilberto Freyre é extraordinário e, sem dúvida gratificante, essa visão do Brasil recheado de presenças. De fato, em contraste com as interpretações marcadas pela ênfase nas ausências (o Brasil não foi colonizado por "raças arianas" ou "povos adiantados", ele "não teve burguesia", "ele não tem um povo homogêneo", "não tem, sequer, vergonha na cara", "não tem patriotismo", etc., etc., etc...); no Brasil gilbertiano, não há nada inadequado, patológico, tarado ou fora do lugar. Muito pelo contrário e em oposição reitero a muitos dos seus contemporâneos (e, diga-se a bem da verdade, sucedâneos), Gilberto viu o Brasil antropologicamente, com o que ele tinha e com o que era, ou seja: sem preconceitos comparativistas negativos, quando ele não era lido em seus próprios termos, mas em função de um outro estalão civilizatório. Para ele, o diferente não significa inferioridade ou, muito menos, superioridade (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 16).
O principal elo entre as duas grandes obras de Freyre é, segundo DaMatta, a centralidade em torno da "casa" como ponto de partida para sua análise social. Essa casa é onde podemos encontrar as diversas facetas da vida social, como os sentimentos, as mudanças socioculturais e também econômicas. A casa é vista por Freyre como uma partida analítica, onde se concentram as relações sociais em sua vasta variedade e complexidade. Seja na casa-grande, senzala, sobrado ou mucambo a hierarquia básica do sistema social foi mantida. Com isso, "Sua contribuição mais importante é que ela chega não só no sistema de dominação (feito de senhores e escravos e, em seguida, de patrões e empregados ou dependentes), mas no modo específico pelo qual essa dominação se faz no caso brasileiro. Pois é na casa "grande" ou de sobrado que as polaridades irreconciliáveis do sistema se materializam, e são igualmente amaciadas, conciliadas e mediatizadas. No Brasil, portanto, a "casa" é mais que local de moradia" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 18).

As relações de dominação entre senhores e escravos é descrita e analisada a partir das relações sociais engendradas e desenvolvidas nas casas. Eis a grande inovação e contribuição teórica da obra freyreana. Essa casa seria, segundo DaMatta, uma espécie de "fato social total", conceito desenvolvido pelo antropólogo francês Marcel Mauss. Continua DaMatta: 
O que Gilberto tenta demonstrar, correndo o risco de ser chamado reacionário e um ideólogo de um escravismo doce, é que o sistema funcionava hierarquicamente. As diferenças não corriam em paralelo, mas faziam parte de uma geometria social de inclusão, uma figura na qual os senhores englobavam mas eram também englobados por seus escravos, com os quais mantinham laços de interdependência. Nesse sistema, o senhor dependia tanto do escravo (que era seu braço, suas mãos e pernas e posteriormente, suas máquinas e animais de carga) quanto o escravo dependia do senhor (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 20).
A presente obra visa estudar como esse sistema permaneceu de pé sob um novo contexto, agora marcado pela industrialização e urbanização do país. Se já analisada as relações de dentro das casas-grandes e das senzalas, agora Freyre visa entendê-las de dentro dos sobrados e mucambos. Seu objetivo é entender a "modernidade brasileira" que teria, segundo DaMatta, a seguinte natureza: 
Essa modernidade que, no caso do Brasil, teria a imensa tarefa de liquidar a escravidão como um sistema, como percebeu com rara sensibilidade Joaquim Nabuco, além de promover uma série de reações aculturativas destinadas a europeizar-se, liquidando eventuais orientalismos, amaciando as posições rígidas entre os sexos e as idades, promovendo o bacharel livresco e identificado com o chique radical em detrimento do ricaço rural dotado de sólido bom-senso, domesticando festas, comidas, diversões e sensibilidades e, acima de tudo, lidando com doses variáveis de cinismo, hipocrisia e franca honestidade mas jamais sem personalismo, para mudar o quadro das gigantescas diferenças de posição social, de cor da pele, de educação, de classe e de região que são a herança maior do escravismo embasado por um esquema de vida aristocrático (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 20).
Capítulo VII - O brasileiro e o europeu

O capítulo busca analisar a relação entre brasileiros e europeus, focando no processo de europeização que para Freyre começa a ocorrer a partir do Século XIX. O marco inicial desse processo foi a vinda do rei D. João VI para o Brasil em 1808. A expressão "para o inglês ver" surge dessa época, dizem que em referência ao próprio D. João VI que mandou iluminar a Bahia (cidade onde aportou após sua chegada de Portugal) para que os ingleses vissem. Essa expressão vingou e é utilizada para retratar a subordinação do brasileiro (e também do português) para com os ingleses, vistos como superiores. Já no segundo parágrafo, Freyre deixa claro a problemática que o capítulo: 
Sob o olhar desse ente superior, o brasileiro do século XIX foi abandonando muitos de seus hábitos tradicionais - como o de dançar dentro das igrejas no dia de São Gonçalo, por exemplo - para adotar as maneiras, os estilos e o trem de vida da nova camada de europeus que foram se estabelecendo nas nossas cidades. Desde as dentaduras postiças ao uso - até o contato maior com os ingleses quase insignificante - do pão e da cerveja (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 429).
Durante seus três primeiros séculos de existência, o Brasil manteve uma relação pequena com a Europa não-ibérica. Basicamente nosso contato com os europeus se limita a portugueses e espanhóis, ambos parte da península Ibérica. E assim criamos um tipo de senhor, de homem, de mulher e de mulato, visto por Freyre como um "meio-termo" que conseguia certa ascensão social. Essa considerada "meia-raça" fazia o papel de uma débil classe média, dentro desse rígido sistema patriarcal. Sendo assim, "Definira-se igualmente uma paisagem social com muita coisa de asiático, de mourisco, de africano: os elementos nativos deformados num sentido francamente oriental e não puramente português" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 430). 

Coisas como casa com os bicos do telhado vermelho e em forma de asa de pombo; janelas recortadas em losangos miúdos; o uso de palanquins e banguês; o ideal de mulher gorda, bonita, com peitos grandes e nádegas carnudas; o costume das mulheres taparem quase todo o rosto para irem à igreja; uso de azulejos na frente das casas; uso intensivo de temperos; árvores de fruto em volta das casas etc., tudo isso são descritos por Freyre como traços da influência asiática e africana nos três primeiros séculos de colonização. Diante de tal cenário: 
A colônia portuguesa da América adquirira qualidades e condições de vida tão exóticas - do ponto de vista europeu - que o século XIX, renovando o contato do Brasil com a Europa - que agora já era outra: industrial, comercial, mecânica, a burguesia triunfante - teve para o nosso País o caráter de uma reeuropeização. Em certo sentido, o de uma reconquista. Ou de uma renascença - tal como a que se processou na Europa impregnada de medievalismo, com relação à antiga cultura greco-romana. Apenas noutros termos e em ponto menor (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 430-431).
Freyre conclui que em fins do século XVIII e início do XIX, ocorreu no Brasil um processo de reeuropeização baseado em três "ão": assimilação, imitação e coerção. O último, imposto guela abaixo pelos ingleses através do Tratado de Methuen que praticamente resumia Portugal a uma dominação política do Brasil. Segundo ele, esse processo introjetou padrões de vida na sociedade brasileira que, espontaneamente, dificilmente seriam adotadas pelos brasileiros. Esse processo de reconquista do Brasil enfrentou resistências, tanto de ordem cultural quanto de ordem natural. 

Sobre a resistência de ordem natural, Freyre se refere as doenças típicas de países tropicais que afetaram fortemente os europeus não-ibéricos que começaram a rumar para o Brasil. Malária, febre amarela, sífilis, peste bubônica, bexiga e o bicho-de-pé foram alguns problemas de ordem natural que os europeus tiveram que enfrentar. Porém, 
Uma vez iniciada a reconquista do Brasil pela Europa, não cessou; e ainda hoje nos abafa, embora substituído o europeu da Europa pelo quase-europeu dos Estados Unidos da América do Norte. Os mártires louros que venceram - em parte, pelo menos - a batalha entre os nórdicos e o trópico, travada no Brasil. A febre amarela é que terminou vencida. E essa reconquista alterou a paisagem brasileira em todos os seus valores. Reeuropeizou-a - ou a europeizou - o quanto pôde (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 432).
O processo de reeuropeização trocou o colorido africano e asiático pelo tom empalidecedor do europeu não-ibérico. Essa substituição das cores foi tratada por Freyre da seguinte forma: "A nova Europa impôs a um Brasil ainda liricamente rural, que cozinhava e trabalhava com lenha, o preto, o pardo, o cinzento, o azul-escuro de sua civilização carbonífera. As cores do ferro e do carvão; o preto e o cinzento das civilizações "paleotécnicas" de que fala o Prof. Mumford; o preto e o cinzento dos fogões de ferro, das cartolas, das botinas, das carruagens do século XIX europeu. Talvez "coloração protetora", insinua o sociólogo norte-americano para explicar esse excesso de preto das coisas e do vestuário, da Europa burguesa e principalmente da Vitoriana. Ou o efeito de uma "depressão dos sentidos" sob o industrialismo capitalista? O certo é que esse cinzento nos atingiu com uma rapidez espantosa de efeitos" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 433).

E sobre as origens desse triunfo cinzento, temos D. João VI e seu neto: D. Pedro II. A ligação dos dois é feita por Freyre da seguinte forma: "A sobrecasaca preta, as botinas pretas, as cartolas pretas, as carruagens pretas enegrecem nossa vida quase de repente; fizeram do vestuário, nas cidades do Império, quase um luto fechado. Esse período de europeização da nossa paisagem pelo preto e pelo cinzento - cores civilizadas, urbanas, burguesas, em oposição às rústicas, às orientais, às africanas, às plebéias - começou com D. João VI; mas acentuou-se com D. Pedro II. O segundo imperador do Brasil, ainda meninote de quinze anos, já vestia e pensava como velho; aos vinte e poucos era o monarca "mais triste do mundo", na opinião de um viajante europeu" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 433). D. Pedro II, considerado como mórbido, não gostava sequer de montar a cavalo, fazendo Freyre o chamar de típico "europeu de cidade".

Esse imperador mórbido e ridiculariza pelos republicanos por conta de sua voz fina, tornou-se o modelo para as novas gerações de brasileiros. Ele representava o advento da moda européia sobre as coisas de origem oriental e africana que tanto marcou os três primeiros séculos de colonização. Esse povo autêntico que desenvolvia estilos de vida apropriados ao clima, como a roupa leve dentro de casa e o chinelo sem meia, passa a ter o cinzento como tendência a ser seguida. Enfim, o Brasil do século XIX era o país com ar de luto fechado. Freyre critica essa imitação de tudo oriundo da Europa e essa inquietação fica nítida no seguinte trecho:
Hábitos - repita-se - que haviam se alterado no sentido de uma imitação mais passiva de trajos de climas frios e de civilização parda e cinzentamente carbonífera. No sentido da substituição das cores vivas pelo preto sonele e pelo cinzento chic - problema não apenas de estética mas de higiene, pelo menos mental, criado pela repressão de um gosto de base possivelmente fisiológica, e certamente, tradicional. No sentido de novas espessuras de panos: o uso, sob um sol como o nosso de vestuários de panos grossos, felpudos, quentíssimos, fabricados para países de temperatura baixa, mas que estava no interesse do novo industrialismo europeu sobre base capitalista, e portanto estandardizador e uniformizador dos costumes e trajos, estender às populações tropicais. Ânsia de mercado. Fome de mercado. "Imperialismo colonialista", diria um marxista ortodoxo (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 435).
Essa imitação do europeu, trouxe consequências sérias para a saúde dos brasileiros. Pelo menos era o que dizia o Dr. Joaquim de Aquino Fonseca que culpava o vestiário europeu pelo surto de casos de tuberculose no Império. Nessa nova moda, as crianças eram verdadeiras martirezinhos, segundo Freyre. Sequer as indicações médicas tiraram dos pais a ânsia em seguir a moda do Velho Mundo. E não só as vestimentas, como a alimentação havia sido modificada a partir dessa imitação. Especulação ou não, o fato é que a tuberculose teve aumento quantitativo no Império e coincidiu com o processo de reeuropeização do país. Em contraste com essa imitação do século XIX, tínhamos o XVIII. "No século XVIII - que foi, talvez, quanto aos costumes, o mais autônomo, o mais agreste, o mais brasileiro na história social do País - Vilhena rebatera as críticas de alguns viajantes europeus, com relação ao traje solto, à vontade, chamado "à fresca", dos brasileiros, quando na intimidade de suas casas. Mostrara que esse relaxamento, tão repugnante para quem vinha de climas mais frios, correspondia às condições de clima tropical da colônia" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 436).

Depois de analisar as mudanças na arquitetura, nas vestimentas e na alimentação; Freyre chega na educação. E na análise desse ponto, Freyre enxerga pontos positivos nesse processo de reeuropeização. O contato com as ideias vindas, principalmente, da França e da Inglaterra, desenvolviam no brasileiro uma abstração e espontaneidade até então impossíveis de florescer em meio a educação portuguesa de cunho clerical e doutrinário. Sobre os avanços no campo educacional a partir da reeuropeização do país, destaca Freyre:
A monocultura, devastando a paisagem física, em torno das casas, o ensino do colégio de padre jesuíta devastando a paisagem intelectual em torno dos homens, para só deixar crescer no indivíduo ideias ortodoxamente católicas, que para os jesuítas eram só as jesuíticas, quebrara no brasileiro, principalmente no de classe educada, não só as relações líricas entre o homem e a natureza - rotura cujos efeitos ainda hoje se notam em nossa ignorância dos nomes de plantas e animais que nos cercam e na indiferença pelos seus hábitos ou pelas suas particularidades - como a curiosidade de saber, a ânsia e o gosto de conhecer, a alegria das aventuras de inteligência, de sensibilidade e de exploração científica da natureza. Essa curiosidade, esse gosto, essa alegria nos foram comunicados nos fins do século XVIII, e através do XIX, pelos enciclopedistas e pelos revolucionários franceses e anglo-americanos. Através do século XIX, também por mestres franceses e ingleses que aqui estabeleceram colégios, para grande indignação dos padres (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 437).
Esse ensino uniformizador do português católico, importante na integração social do Brasil, foi encontrando um tipo de ensino que incentivava a abstração, a sensibilidade e a espontaneidade intelectual que inexistiam nos colégios jesuítas. O que se ensinava nesses colégios jesuítas? Basicamente o foco era no aprendizado do latim, já língua morta na época. Lia-se latim e obras como as de Virgílio, Tito Lívio, Horácio e Ovídio. O prazer intelectual de quem se formava nesses colégios era aprender a ler e decorar textos antigos de poetas latinos. O latim, "Era uma disciplina severa; e teria sido ótimo, se não fosse exclusivo. O aluno atravessava a fase mais dura das declinações e dos verbos sob a vara de marmelo e a palmatória do padre-mestre. Mas acabava não sabendo escrever um bilhete, senão com palavras solenes e mortas; e evitando as palavras vivas até na conversa" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 438). A retórica existia atrelada a pensadores latinos como Cícero, por exemplo. Em suma, tivemos muito latim e muita retórica desenvolvida por padres, vindo daí a tendência brasileira a valorizar a oratória que o inibe de analisar e pensar os fatos analiticamente.

A partir do século XIX, com a chegada do francês e do inglês, a elite brasileira então acostumada a uma monocultura intelectual baseada no latim; começara a ter contato com doutrinas e filosofias que fervilhavam na Europa. E daí, eclodiram vários movimentos políticos sob influência dessa nova literatura. Entre esses movimentos, Freyre cita a Revolução Pernambucana de 1817, liderada por padres que liam francês e inglês. Por seu caráter reflexivo e contestatório que acaba desenvolvendo, as línguas francesa e inglesa passaram a ser consideradas perigosas.

Feita essa primeira exposição, Freyre começa a descrever experiências anteriores ao século XIX que colocaram brasileiros e europeus em contato. E a primeira descrita é a experiência holandesa no Nordeste que, segundo ele, marcou uma europeização do Brasil, mas em um sentido diferente do visto pelos portugueses. Os holandeses trouxeram pioneiramente essa abstração e espontaneidade que se viu através de franceses e ingleses no século XIX. Foi na Bahia sob domínio holandês que surgiu o primeiro centro de cultura médica no Brasil. E "O Recife judaico-holandês tornou-se o maior centro de diferenciação intelectual na colônia, que o esforço católico no sentido da integração procurava conservar estranha às novas ciências e às novas línguas" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 441).

O Nordeste acabou tendo um desenvolvimento diferente das outras regiões do país, pois aqui se viu a não exclusividade portuguesa. Isso seja na arquitetura, religião, estilos de vida etc. Em Recife, por exemplo, se falava uma variedade de línguas européias e africanas. A intolerância religiosa imperante na colônia sob hegemonia portuguesa, sofria de um enfraquecimento em regiões onde os holandeses administravam. E como diz Freyre, "Foi abusando dessa liberdade, que as parteiras da terra deram para batizar os meninos dos protestantes segundo o rito católico; os judeus, para se reunirem publicamente no mercado e até para seduzirem cristãos para o judaísmo, os mais afoitos chegando a circuncidar filhos de cristãos" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 442). E quais as consequências posteriores desses acontecimentos? Freyre bem responde:
O domínio holandês foi, assim, uma época de interpenetração de influências diversas: conquistadores transigiam enormemente com os povos conquistados. Mas estes ficaram com a experiência do tempo dos flamengos a agir sobre a sua vida no sentido ecumênico; nunca mais seria perfeita sua reintegração ao império português na América. Não seria absoluta sua reintegração social no complexo lusitano (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 443).
Além do Nordeste, a então capitania de Minas Gerais também desenvolveu fortes relações com os europeus por conta do comércio do ouro e dos diamantes. É "Daí as relações comerciais de Minas com a Europa não-ibérica - relações a que se juntaram as intelectuais e políticas no sentido liberal; e também as técnicas, as de estilo de vida, que se deixariam surpreender no maior uso do vidro nas suas casas-grandes e sobrados - neste ponto superiores aos do litoral, durante o século XVIII" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 444). A opulenta riqueza da elite mineira não condiz com a realidade da elite em outras capitanias ou regiões do país e aqui Freyre lembra dos ricos de Campos de Goitacases que viviam em casas semelhantes a mucambos Eles viviam, segundo um viajante europeu, em um modo de vida antieuropeu. O mesmo pode ser visto por ricos no Rio Grande do Sul, moradores de simples ranchos. Sobre esse caso, Freyre deixa escapar sua perspectiva teórica culturalista na análise dos fatos:
As regiões que mais se europeizaram nem sempre foram as mais ricas. O determinismo econômico falha, sozinho, na interpretação de longa série de processos sociais, do mesmo modo que o determinismo geográfico, quando pretende, isolado e puro, explicar fatos tão complexos e dinâmicos como os humanos (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 444).
Descritas as relações entre brasileiros e europeus antes do século XIX, com destaque para o caso de Pernambuco e de Minas Gerais, Freyre conclui esse amaranhado de contatos da seguinte forma:
O diamante, atraindo para Minas os interesses do comércio europeu e, sobretudo, a mediação plástica da técnica judaica e da finança israelita, tão cheia de tentáculo por toda parte, venceu a distância que separava aquela região, da Europa; e criou uma série de relações especialíssimas entre a burguesia rica dos sobrados de Ouro Preto, Sabará, Santa Luzia e a civilização industrial e urbana do norte da Europa. Acentuaram-se, sob o estímulo da maior variedade de contatos com o estrangeiro, forças de diferenciação social, que não custaram a romper, vulcanicamente, as de integração. Daí a revolução Mineira: expressão nítida da diferenciação cultural, e não apenas econômica, que se operara na área mediterrânea. Do mesmo modo, as revoluções pernambucanas: a de 1710, a de 17, a de 24, a chamada Revolta Praieira. Sobre todas elas atuaram motivos econômicos. Forças econômicas . Apenas não atuaram sozinhas. Condicionaram, junto com outras influências, as demais especializações de cultura - inclusive o pendor para as formas liberais de governo - que se verificaram nas duas regiões, a mediterrânea e a levantina, tão diversas na sua topografia. Não se nega a influência de tais forças; o que se diz é que não determinaram, de modo rígido ou absoluto, especializações regionais de cultura - resultados de causas ou influências complexas (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 447).
O que também essas regiões tem em comum são os benefícios conquistados através do comércio internacional dos judeus, sendo de vital importância a presença desse povo para uma valorização do intelectual, do científico e do técnico. Esse judeu, não muito estranho aos povos ibéricos, desenvolveu entre nós uma valorização do bacharelismo e do intelectualismo. Sobre a função desempenhada por esse povo na colonização, Freyre afirma: "O que o judeu trouxe para o Brasil como elemento de diferenciação foi principalmente a capacidade para o comércio internacional, que nos enriqueceria de uma variedade de contatos, impossíveis dentro da exclusividade portuguesa. Também a especialização científica e literária que neles se aguçara por efeito daquela riqueza de contatos, distanciando-se dos portugueses rurais e cristãos-velhos" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 449).

Os judeus tiveram um papel crucial nas relações entre europeus e brasileiros, antes do século XIX. A sua presença foi significativa, tanto em Pernambuco (em uma maior expressão), quanto em Minas Gerais. E quais as possíveis projeções dessa atuação estrangeira, durante o período colonial? Além dos movimentos políticos já citados acima, "Há também quem ligue à influência do liberalismo de Nassau sobre a mentalidade dos colonos do Norte no século XVIII, certo pendor, porventura mais acentuado no pernambucano que nos brasileiros de outras regiões, para a insubordinação política e para as formas liberais de governo" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 451). Em Minas Gerais, o ouro e os diamantes proporcionaram uma relação entre europeus e brasileiros tão intensa que a capitania se tornou a área do país que mais sofreu os padrões da europeização. A moda e as casas mineiras são mostras disso. Tamanha a influência que "Saint-Hilaire, tendo ido a um baile oferecido à sociedade mineira pelo governador D. Manuel de Castro Portugal, não encontrou entre os estilos de vestir das senhoras montanhesas e as modas européias, a distância enorme que esperava" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 452).

Passada as relações entre europeus e brasileiros no século XVIII, focando em Pernambuco e Minas Gerais, Freyre chega na análise da reeuropeização no século XIX, seu apogeu. Segundo sua análise, esse processo afetou mais homens que mulheres. Os homens se mostraram mais adeptos a moda européia, enquanto as mulheres guardavam consigo certos traços orientais, rurais e asiáticos. É a partir do século XIX que mudanças profundas começam e se intensificam. Por exemplo, a substituição do chapéu de palha pelas cartolas pesadas; o piano em vez do violão ou harpa; o advento da cerveja, já importada dos EUA desde pelo menos 1848. E:
"Os anúncios de jornais documentam abundantemente essas transformações de gostos que, durante a revolucionária primeira metade do século XIX, foram afastando o brasileiro de costumes já castiçamente luso-brasileiros para aproximá-los de modas francesas, inglesas, italianas, alemãs, eslavas; e também norte-americanas que, desde então, começaram a competir com as européias" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 454).
A decadência do comércio escravo e da economia apoiada por ela, o processo de reeuropeização foi intensificado, pois agora o europeu não era apenas o médico, o dentista ou o governante, mas também o operário, pequeno agricultor e carpinteiro que vinha para substituir a mão-de-obra escrava. Os jornais, citados acima, anunciava a mais recente moda na Europa. Seja na música, na dança, na arquitetura ou na ciência. Na ciência, os laboratórios químicos (então chamados de "chimico") surgiam para enfraquecer os tradicionais remédios caseiros aprendidos com a índia ou com a preta. A alimentação também passou a ser imitada. Enfim,
A pintura para a barba, a fazenda, o calçado, o vestido, o chapéu, o remédio, o alimento, o adorno de pessoa e de casa, o meio de transporte, tudo passou a ser importado da Europa, um ou outro artigo dos Estados Unidos. Eram artigos nem sempre da melhor qualidade, embora os preços fossem os mais altos. Os vestidos, os calçados, os chapéus nem sempre eram os de última moda, embora vendidos aqui por duas, três vezes, o preço de Paris (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 458).
Completa Freyre:
O brasileiro, mal saído das sombras do sistema patriarcal e da indústria caseira, deixou-se estontear da maneira mais completa pelos brilhos, às vezes falso, de tudo que era artigo de fábrica vindo da Europa. Um menino diante das máquinas e das novidades de Londres e de Paris (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 459).
Aproveitando esse fascínio do brasileiro a tudo vindo da Europa, muitos acumularam fortunas enganando com charlatanismos diversos. Isso ficou tão forte que se chegou a criar a expressão "negócio afrancesado" para se tratar de produtos de qualidade duvidosa. Sobre esse assunto, vale a pena a citação dessa história descrita por Freyre:
Num navio, informa ainda D'Assier ter ouvido conversa bem característica da atitude de negociantes franceses com relação ao Brasil. Era o grupo que conversava na intimidade. Um contava como fazia contrabando de relógios. Outro que chegara ao Brasil apenas com "40 sous" no bolso: sua fortuna já subia a 200 contos. Ganhara tão gorda soma vendendo chapéus-de sol. Chapéus-de-sol de pano e de armação ordinária; mas tão bonitos, que brasileiro nenhum resistia ao encanto deles. E quando algum ingênuo lhe aparecia para se queixar da má qualidade do artigo, ele alegava todo espantado que a mercadoria era de Paris: Paris, o nome mágico! (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 460).
Freyre continua...
E quando alguém objetou que vender por cem mil-réis o que custava cinco francos talvez fosse furto, todos perguntaram a um tempo, e indignados, que espécie de furto. Furto o deles, que se aventuravam ao perigo da febre amarela, às picadas dos mosquitos, à vida no meio de negros fétidos? Além do que, tudo era tão caro no Brasil - caríssimos, na verdade, os alimentos, com a monocultura dificultando a sua produção - que se os negociantes europeus não vendessem por tão alto preço seus artigos aos súditos de D. Pedro II, eles, europeus, é que acabariam arruinando-se no Brasil. "E os brasileiros" - perguntara um francês do grupo - "não roubam os negros?" (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 461).
O processo de reeuropeização trouxe consigo uma variedade de produtos adulterados para o Brasil. Esses produtos invadiram lojas do Rio de Janeiro, do Recife, de Salvador, de São Paulo, de Porto Alegre e de São Luís. Segundo Freyre, as comidas produzidas preparados no Brasil eram mais sãs que os alimentos conservados vindos da Europa. Porém, era "chic" (termo do próprio autor) comer à francesa, à inglesa ou à italiana. Os doceiros europeus substituíram os tradicionais doces das iaiás dos sobrados e dos negros de tabuleiro. Nos sobrados, os móveis se afrancesaram. Esses móveis não eram mais fabricados nos engenhos, mas em oficinas por artífices brancos e louros.

Diante desse cenário, era "Natural que fosse se acentuando a rivalidade entre o artífice ou o operário da terra - em geral, o preto ou o mulato livre, porque o escravo negro não podia dar-se o luxo de rivalidade com ninguém - e o operário ou o artífice estrangeiro, que surgiu com grande réclame pelos jornais ou protegido pelo governo"  (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 462).

Essa rivalidade entre o brasileiro e o estrangeiro europeu, culminou em conflitos violentos como a Revolta Praieira no Recife e a Cabanada no Pará. "Mas a europeização do trabalho, e até certo ponto do comércio, se impusera com o declínio da economia rigidamente patriarcal e com a industrialização da vida brasileira. Com o novo ritmo de vida: ritmo que veio exigir relógios, tão raros na época em que o tempo quase não se contava por horas, muito menos por minutos, só pelo nascer do sol, pelo sol a pino, pelo pôr-do-sol. Com os novos estilos de vida, de conforto, de arquitetura criados pela abertura dos portos ao comércio europeu e para satisfazer os quais não estava apto o artífice de engenho, o mulato livre, o operário da terra"  (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 463). Encerrando o capítulo, Freyre assevera a vitória da organização social industrial e burguesa trazida pelos europeus, sobre o modo de vida rural, agreste e patriarcal que vigorou no país durante três séculos de colonização. Sobre as consequências desse triunfo do branco europeu, Freyre encerra o capítulo:
Mas o técnico europeu repita-se que acabou triunfando. Até que o mulato aprendeu com ele a dirigir os trens, os tornos, as máquinas, a fabricar o vidro, a fazer macarrão e aletria. O sábio norte-americano John Casper Branner, viajando, já no fim do século XIX, pelo interior do Brasil, espantou-se da rapidez com que, diante dele, dos seus olhos claros de anglo-saxão, simples mulatinho de Minas endireitou certa vez as rodas de enorme balduína, que se desconsertara no meio da viagem. Era a assimilação da técnica do europeu e do anglo-saxão pelo "mulato da terra". Uma nova fase nas relações entre o europeu e o brasileiro. Também uma nova fase na economia e na convivência brasileiras, com a valorização, pela perícia técnica, do descendente de escravo, da gente de cor, moradora de mucambo; e a desvalorização, pelo imperícia, do descendente de senhor de casa-grande, de figaldo de sobrado, de morgado de canavial  (FREYRE, Gilberto. São Paulo: Global, 2006, p. 464).







  
  
  

























sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Futebol, Cultura e Sociedade



  • Sobre o autor: Jocimar Daolio é graduado e pós-graduado (mestrado e doutorado) em Educação Física. A graduação e o mestrado foram concluídos na Universidade de São Paulo (USP), enquanto o doutorado foi realizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Daolio ainda é graduado em Psicologia, pela USP. Foi professor titular da UNICAMP, ligado ao Departamento de Educação Física e se aposentou em abril de 2019. 


Futebol, Cultura e Sociedade - Jocimar Daolio (org.) - Editora Autores Associados


Estudo Um - A Superstição no Futebol Brasileiro - Jocimar Daolio - A perspectiva desse estudo feito por Jocimar Daolio, visa enxergar o futebol como expressão da sociedade e não meramente como uma modalidade esportiva para fins recreativos. Ou seja, "Em outras palavras, só é possível discutir a superstição no futebol brasileiro se o olharmos como fenômeno sociocultural que expressa e reflete a própria condição do ser humano nacional" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 4). Somente as Ciências Humanas, e a Antropologia Social em particular, terá ferramentas para explicar ou refletir a superstição em torno do futebol brasileiro. 

Não é novidade estudar o futebol como um fenômeno sociocultural e para isso, Daolio traz três autores que seguem essa linhagem. São eles: a) Roberto DaMatta, antropólogo, "afirmou que o futebol constitui-se em veículo para uma série de dramatizações e representações da sociedade brasileira, permitindo a expressão e vivência de problemas nacionais" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 4-5); b) Arno Vogel, pensou o futebol como uma expressão ritualística (vista como uma representação de si para si mesma) utilizada pela sociedade brasileira para expressar questões mais profundas como o luto e a euforia; c) José Sebastião Witter, acredita que estudar o futebol é se debruçar sobre a própria história e formação do povo brasileiro que se mantém conectado a esse esporte durante todo o século XX. Assim, para esses autores: 
O futebol brasileiro tem se constituído, ao mesmo tempo, em expressão da sociedade brasileira e em um modelo para ela, espelhando toda a sua dinâmica, com todas as contradições e todas as riquezas nela presentes (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 6).
Tomando como base Eunice Durham, o autor afirma que a cultura é formada por um conjunto de símbolos que orientam e dão significado as nossas ações. Tomando esse conceito de cultura, pode-se afirmar que o futebol é dotado de um conjunto de símbolos que expressam a sociedade brasileira em que ele está inserido. Segundo Geertz, "o futebol é parte da teia de significados que os humanos, em sua dinâmica social, vão construindo, constantemente atualizando e revivendo, teia essa que constitui a própria cultura de um povo" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 6). 

Sendo assim, se a sociedade brasileira tem como base a reprodução de um conjunto de crenças e superstições em sua dinâmica cultural, nada mais que natural que essas características também estejam presentes no futebol. É nessa ligação que o estudo se baseia. E como Daolio deixa bem claro no texto: sua visão de superstição não é negativa ou como uma característica tradicional da nossa sociedade a ser modernizada. O estudo se baseia na vinculação inerente entre superstição e futebol, entrelaçados e inseridos numa sociedade que leva ambos em consideração. 

A superstição no futebol é vista diariamente entre os diversos atores que compõem esse esporte: jogadores, técnicos, imprensa esportiva, cartolas etc. Para justificar sua ideia, Daolio traz algumas manchetes de jornais entre as quais podemos citar duas referentes a Copa do Mundo de 1994: "Parreira adere a superstição" e "Zagalo, o homem do 13: ele acredita no título, baseado no seu número de sorte". Não se deve, contudo, pensar que o futebol cria o pensamento supersticioso. Ele apenas expressa e reproduz uma visão de mundo que é própria da sociedade brasileira. Essa sociedade busca, a todo momento, dar explicações sobre fenômenos inexplicáveis e para isso utilizam de um conjunto de crenças e superstições sem comprovação científica.  

Porém, o objetivo do trabalho não é menosprezar esse conhecimento do senso comum baseado em crendices. Daolio não o considera nem pior e nem melhor que o conhecimento científico, ele apenas afirma que o senso comum "nada mais é do que a forma como cada pessoa, disposta em uma dada dinâmica sociocultural, lida com as manifestações do mundo e procura sentido para nele se orientar" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 13). Se baseando em Clifford Geertz, o autor mostra que o conhecimento do senso comum parte de cinco características. São elas:  
  1. Naturalidade: essa característica "diz respeito ao fato de que o senso comum considera determinados acontecimentos como partes de uma natureza dada e tradicional" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 14);
  2. Praticabilidade: essa característica significa "a busca que os indivíduos empreendem no sentido de que as suas ações tenham um fim prático, que resultem naquilo que eles esperavam alcançar" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 15);
  3. Leveza: é a capacidade do senso comum mostrar ou apresentar um fato como se fosse exatamente aquilo que parece ser, naturalizando sua visão sobre o acontecimento; 
  4. Não-Metodicidade: em vez do uso de teorias e fórmulas, o senso comum utiliza de piadas, provérbios populares, lendas etc para expressar sua visão de mundo e "Esses provérbios, histórias e frases compõem aquilo que se chama de sabedoria popular, um conjunto de crenças que perpetua determinadas formas de viver e de explicar o mundo" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 16-17);
  5. Acessibilidade: por fim e sendo uma consequência das outras quatro características, aqui o conhecimento produzido pelo senso comum é visto como de fácil entendimento e sua obtenção não requer nenhum tipo de saber especializado. 
Essa visão de senso comum do Geertz, permite uma interpretação desse conhecimento como culturalmente construído, afastando-se de concepções preconceituosas. Mas qual sua utilidade para os estudos sobre o futebol brasileiro, enquanto reprodutor de superstições? Para Daolio:
Para o estudo do futebol brasileiro, que se constitui em uma das principais manifestações culturais de nossa sociedade, essa análise do pensamento de senso comum é importante pois permite a compreensão do funcionamento dessa tradição sem preconceitos e sem cientificismos que neguem as formas de expressão da cultura popular. Isso talvez explique o fato de os comportamentos supersticiosos persistirem no futebol brasileiro ao longo dos anos, mesmo com todo o avanço científico das ciências do esporte (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 18).
Estudo Três - Futebol-Arte ou Futebol-Força? O estilo brasileiro em jogo - Sérgio Settani Giglio - O início da oposição Futebol-Arte e Futebol-Força - Assim como no estudo um, feito pelo Jocimar Daolio, esse estudo três segue o mesmo preceito: olhar o futebol como um fenômeno sociocultural e não meramente um esporte com fins recreativos. A ideia da existência de um futebol-arte e um futebol-força, esbarra na noção de estilos de jogo bastante debatida dentro dos estudos sobre futebol. Para muitos, cada país acabaria desenvolvendo um tipo específico de jogar futebol, com base em sua dinâmica cultural.

Foi tendo essa ideia como base que se criou a bipolaridade futebol-arte e futebol-força, sendo a primeira representante do estilo de jogar dos brasileiros e a segunda dos europeus. Essa criada ideia de futebol-arte, serviu para consolidar nossa identidade interna e externa. Mas qual a natureza dessas duas formas de jogar futebol? Segundo Sérgio,
Uma das características que o futebol-arte apresenta é o fato de o jogo ser encarado como espetáculo. A estrutura da partida está centrada na plasticidade das jogadas encenadas pelos artistas da bola em um gramado, ou melhor, em um teatro de arena. No futebol-força, prevalece a competição e, consequentemente, a eficiência passa a ser a norteadora do objetivo a ser alcançado. Aqui também podem acontecer jogadas bonitas, mas essa não é uma característica frequente deste tipo de futebol (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 56).
A habilidade e ginga, inerente ao futebol-arte, é tratado como inato. É a expressão de um dom, uma espécie de dádiva ou presente natural que apenas os brasileiros conseguem desenvolver. Mas essa ideia de dom inato e natural é criticado pelo autor. Ele afirma o seguinte sobre essa afirmação:
Não podemos analisar o dom sem considerar o aspecto cultural. Se aceitamos a ideia de que uma pessoa possa ter um dom ou "talento natural", precisaríamos fazer essa análise pela ótica da cultura, ou seja, nesse caso o dom pode ser entendido como algo aprendido culturalmente, como um componente adquirido que aperfeiçoa e melhora a natureza inata de cada um (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 57).
Do ponto de vista biológico, seria impossível afirmar que o brasileiro é um povo geneticamente mais propenso a prática do futebol. Sem essa cientificidade concreta, como esse discurso de futebol-arte se baseia? Qual sua argumentação e justificativa? O improviso e a brincadeira são elementos usados para comprovar esse inatismo do brasileiro. Individualista e intuitivo, o jogador brasileiro "não pensa para jogar", ele improvisa suas jogadas a depender das dificuldades encontradas durante o jogo. Já a espontaneidade é fruto do processo de socialização do brasileiro que, desde cedo, é incentivado a jogar futebol na rua. Futebol no Brasil é sinônimo de infância e brincadeira. E isso desenvolve uma forma de jogar que não teme o erro, tratando uma partida de futebol como diversão. Essas representações do futebol-arte teve seu auge entre os anos de 1930 a 1974 e os craques eram produzidos nas ruas, nos campos de várzea. As escolinhas de futebol como conhecemos hoje só vai surgir após esse período e fruto de uma mudança no cenário urbano que reduziu o número de campos.

O Futebol-Arte e o Futebol-Forças nas Copas do Mundo - As edições de Copas do Mundo é o recorte usado por Sérgio para desenvolver suas reflexões. O início do que conhecemos como futebol-força foi a Copa de 1966, realizada na Inglaterra e que teve os anfitriões como campeões. O futebol-força foi um meio utilizado pelos europeus de bater de frente com o futebol sul-americano, hegemônico em Copas do Mundo até então. Por conta da campanha vexatória da Seleção Brasileira naquela edição, o futebol-arte praticado pelo Brasil foi questionado. A principal pergunta era: como manter os antigos resultados, frente a objetividade e eficiência do futebol-força? 

A partir da Copa de 1966, o fator físico começou a ganhar maior destaque na preparação dos clubes e da seleção. A figura do preparador físico começava a ganhar protagonismo e uma ruptura com o romântico futebol-arte foi realizada a partir daquele momento. A Copa do Mundo seguinte, realizada em 1970, no México, marcou o tricampeonato do Brasil e também a utilização dos recursos técnicos do futebol-força no planejamento da Seleção Brasileira. Aquela edição marcou uma mesclagem entre o futebol-arte, representado por uma geração de talentosos jogadores; e o futebol-força, representado por novas técnicas de treinamento. O preparador físico Carlos Alberto Parreira, futuro técnico da Seleção Brasileira, foi uma importante figura dessa conquista. O futebol ali apresentado é considerado por Sérgio como o melhor modelo, aquele que mais recebeu aprovação do povo brasileiro. Em 1970 a qualidade técnica dos jogadores ganhou tanta importância na mídia que até se esqueceu do fato de ter sido a primeira edição em que métodos científicos e inovadores foram utilizados na preparação. 

A partir dos anos de 1990, o futebol-força ganhou maior notoriedade no futebol brasileiro, sendo representado pela chamada "Geração Dunga". A Copa de 1990, realizada em solo italiano e sob o comando técnico de Sebastião Lazaroni, marcou o triunfo do futebol de resultados que marcaria a Seleção Brasileira nas edições posteriores. Essa nova forma de jogar sofreu duras críticas em 1990, por conta da campanha fraca feita pelo Brasil naquela edição. Porém, em 1994, sob a mesma lógica de obediência tática acima da criatividade técnica, o Brasil conquistou o tetracampeonato mundial. 

Apesar disso, pequenos traços do antigo futebol-arte ainda podem ser vistos na Seleção Brasileira, graças a seus destaques individuais. Isso ficou claro na Copa de 2002, edição do pentacampeonato, onde se viu a organização tática ser acrescida dos destaques individuais como Ronaldo e Rivaldo. 

Futebol-Força ou Futebol-Arte? - Para Sérgio, a dualidade futebol-força e futebol-arte se esgotou. O que se ver no Brasil é uma mistura das duas lógicas, assim como podemos enxergar traços do futebol-arte entre os europeus. E se fomos pensar numa essência do estilo de jogo brasileiro, podemos constatar o seguinte: 
O futebol brasileiro caracteriza-se, principalmente, pela apurada habilidade e criatividade de seus jogadores. A qualidade do jogador brasileiro pode ser explicada pela influência que o futebol possui em nossa sociedade. Dentro da cultura brasileira, a rua sempre ocupou um lugar de destaque no aprendizado do futebol. Assim, o futebol deve ser analisado como parte integrante de nossa cultura e muitas habilidades desenvolvidas na infância são capazes de explicar "o dom do jogador brasileiro para o futebol" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 69).
Existe uma tendência para o futebol-arte, individualizado e focado nos atributos técnicos. Entretanto, é impossível desconsiderar a existência de fortes características do futebol-força, como a valorização do condicionamento físico. Encerra Sérgio, "Sendo assim, podemos associar elementos que num primeiro momento são opostos, como o jogo e o esporte, habilidade e força, artístico e competitivo, individual e coletivo" (DAOLIO, Jocimar. Campinas-SP: Autores Associados, 2005, p. 70).