sábado, 22 de junho de 2019

Ciência e Política - Duas Vocações



  • Sobre o autor: Maximillian Karl Emil Weber, ou simplesmente Max Weber, nasceu em Erfurt em 1864. Seu pai foi um jurista bem-sucedido e sua mãe uma liberal culta que o criou sob fortes bases protestantes. Weber se formou em Direito pela Universidade de Heidelberg. Como acadêmico de renome trabalhou em Universidades como as de Berlim, Freiburg, Viena, Munique e na própria Heidelberg. É considerado um dos fundadores da Sociologia, tendo papel crucial no desenvolvimento dessa ciência na Alemanha. Entre suas principais influências intelectuais temos: Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Immanuel Kant. Dentre suas principais obras, podemos citar: a) A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo; b) A Ciência como Vocação; c) A Política como Vocação; d) Economia e Sociedade. Max Weber faleceu na cidade de Munique em 1920, vítima de uma pneumonia. 



Ciência e Política - Duas Vocações - Max Weber - Editora Cultrix



Notícias sobre Max Weber - Nessa breve introdução, escrita por Manoel Tosta Berlinck, encontramos um breve resumo da vida e obra de Max Weber. Não se perdendo muito em aspectos de sua vida pessoal, e partindo já para sua densa produção teórica, destacamos que para Berlinck a teoria sociológica weberiana tem como foco o entendimento da racionalidade. Seus estudos sobre religião, surgimento do sistema capitalista, impressões sobre poder e burocracia assim como suas percepções metodológicas tinham ao fundo o objetivo de responder as seguintes questões: quais as origens e condições que assentaram o desenvolvimento da racionalidade?; qual a natureza da racionalidade?; quais as consequências da racionalidade? 

A racionalidade em Weber é representa por uma equação entre meios e fins. Ou seja, toda ação humana é impulsionada por valores e metas. Essa ação sempre é relativa, pois: a) existem várias formas de agir; b) a ação humana move uma variedade de valores e metas a serem atingidas. É daí que ele tipifica as ações humanas em: 
  • Ação Tradicional: baseada em hábito tradicionais de longa prática; 
  • Ação Afetiva: baseada em motivações puramente emocionais; 
  • Ação Racional com Relação a Valores: baseada em motivações valorativas que permeiam comportamentos religiosos, éticos etc; 
  • Ação Racional com Relação a Fins: baseada numa racionalidade que busca os melhores meios para atingir aos fins desejados. 
Nas obras presentes (tanto A Ciência como Vocação quanto A Política como Vocação) o foco de Weber é no entendimento do último tipo de ação social, típica do processo de racionalização do mundo. Com isso, "Em A Política Como Vocação, tal interesse se volta para as condições necessárias ao funcionamento do Estado moderno, para a burocracia como organização numa orientação zwecrational de ações e nas consequências da burocratização do Estado moderno para a sociedade em que se encontra inserido" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 11/12)

Já "Em A Ciência Como Vocação", o interesse de Weber pela orientação zwecrational se manifesta no exame da própria prática da racionalidade. Segundo ele, a Ciência ou a prática da Ciência contribui para o desenvolvimento da tecnologia, que controla a vida"  (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 12). Esse controle da vida pela tecnologia acarretaria num adestramento do pensar em que o homens sabem o que querem e o devem fazer para obter o que querem. 

Por fim, o contexto dessa essa se insere no momento em que demagogos de toda espécie começam a ganhar espaço na vida acadêmica, preocupando Weber. O espírito crítico e a liberdade de pensamento vinham sendo atingidas graças a aqueles que utilizam das cátedras para proferir discursos políticos demagogos com forte inspiração autoritária. Era o germe do futuro desenvolvimento do Nazismo na Alemanha. E é por conta desse contexto que observamos a tentativa de Weber em resgatar princípios como a objetividade na prática científica e docente. Sua obra torna-se um clássico da Sociologia ao buscar ligar orientações baseadas em valor com comportamentos reproduzidos em estruturas sociais. 

A Ciência como Vocação (1917) - Nessa palestra que tornou-se livro, Weber inicia sua exposição de ideias com a seguinte pergunta: quais são, no sentido material do termo, as condições de que se equivale a ciência como vocação? Essa pergunta é seguida de outra: quais são as perspectivas de alguém que decida dedicar-se profissionalmente à ciência, no âmbito da vida universitária? Para responder tais indagações, ele opta por uma comparação entre os sistemas universitários da Alemanha e dos EUA. Esses dois países apresentam realidades completamente diferentes no que tange ao tratamento dado aos cientistas iniciantes em suas carreiras. 

O jovem cientista alemão precisa primeiramente ocupar a posição de Privatdozent. Após densos estudos ao lado de especialistas, esse jovem iniciante na carreira acadêmica busca sua habilitação através da redição de uma tese. Após isso ele se submete a um exame para assim ser integrado ao corpo docente da Universidade. Integrado, está apto para ofertar cursos com temáticas escolhidas por ele. Porém, sem qualquer tipo de remuneração. O único meio de tirar dinheiro é lotando sala e recebendo das taxas pagas pelos estudantes. 

Já nos EUA ocorre um processo diferente. A primeira função de um jovem cientista é de um assistente onde desde o início de sua jornada é lhe garantido um pagamento. É garantido logo no início de sua carreira acadêmica uma estabilidade, apesar do pagamento estabelecido ser semelhante a de um trabalhador semi-especializado. Dito isso, Weber conclui que "A diferença que nosso sistema apresenta em relação ao americano significa que, na Alemanha, a carreira de um homem de ciência se apóia em alicerces plutocráticos"  (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 18). Predomina nos EUA um sistema burocrático, já no caso alemão predomina um sistema arcaico que liga produção de conhecimento a não-remuneração bem aos antigos moldes aristocráticos. Porém, observa Weber, as Universidade alemães passavam por importantes transformações internas que orientavam suas práticas de acordo com o visto nos EUA. 

Mas enquanto esse processo não se conclui, a antiga estrutura ainda predomina. Nela o papel do acaso é destacada por Weber como muito presente. É somente ao acaso que o Privatdozent poderá apostar suas fichas quando seu desejo é obter o cargo de professor titular de alguma Universidade alemã. Esse acaso fica claro quando Weber comenta de sua própria experiência: conseguiu uma vaga como professor titular em detrimento de colegas que produziram muito mais que ele. Isso são problemas referentes a seleção de professores, Weber enxerga outros no tocante a prática desses professores. 

Quanto ao tocante a prática, ele já alerta aos jovens: caso desejem adentrar na carreira acadêmica, faz-se necessário o entendimento de que nela ocuparão a tarefa dupla de cientista e professor. E é possível ser um belíssimo cientista, mas um pífio professor. Weber afirma que a grande preocupação das universidade alemãs é atrair estudantes. E como o pagamento do professor depende desses estudantes, sua prática docente se limita a busca incessante em lotar salas de aula. Seu sucesso ou insucesso é medido pela quantidade de estudantes que venham assistir suas aulas. E é a partir dessas observações que Weber faz a seguinte contestação: 
"Quando de um Dozent se diz que é mau professor, isso equivale, na maioria das vezes, a pronunciar uma sentença de morte universitária, embora ele seja o primeiro dos cientistas do mundo. Avalia-se, portante, o bom e o mau professor pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a honrá-lo. Ora, é indiscutível que os estudantes procuram um determinado professor por motivos que são em grande parte - parte tão grande que é difícil acreditarmos em sua extensão - alheios à ciência, motivos que dizem respeito, por exemplo, ao temperamento ou à inflexão da voz" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 23)
A esse problema Weber de aristocracia espiritual. O professor universitário alemão precisa conter esse espírito para que consiga seu objetivo: lotar sala de aula, conquistando estudantes. Caso consiga isso garante um sucesso duplo que se materializa na garantia do seu pagamento e também no prestígio da universidade em questão. É certo que Weber atesta a importância de uma educação científica, ou seja, uma técnica que expõe problemas científicos de maneira entendível para aqueles não iniciados. Mas sua contestação gira em torno de que isso não pode ser medido pelo número de ouvintes, pois essa capacidade depende muito mais de um dom pessoal do professor do que propriamente seu êxito nessa educação científica. E é em meio a esse completo acaso cego que Weber lança todo seu pessimismo:
"Impõe-se, porém, que a todos os outros candidatos também se pergunte. 'Você se acredita capaz de ver, sem desespero nem amargor, ano após ano, passar à sua frente mediocridade após mediocridade?'. Claro está que sempre se recebe a mesma resposta: 'Por certo que sim! Vivo apenas para minha vocação'. Não obstante, eu, pelo menos, só conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situação sem grande prejuízo para suas vidas interiores" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 24).  
Tudo debatido até aqui Weber denomina de "condições exteriores da ocupação de cientista". E as interiores? O primeiro fator interior que se espera de uma imaginada "vocação científica" é a especialização, vista como um processo onde o cientista pode falar para si: "desta vez, consegui algo que permanecerá". Em suma, a carreira científica exige que o cientista se torne um especialista. Outro fator interno trazido pelo Weber é a existência de uma paixão, vista por ele como uma espécie de "inspiração". Essa paixão como parte da vocação científica se opõe a uma visão mecânica que enxerga a prática científica como uma pura operação de cálculo que se realizaria em laboratórios e escritórios. Até nos laboratórios, fábricas ou escritórios faz-se necessário o desenvolvimento de um espírito que inspire o trabalhador para além do cálculo frio. Podemos definir ideia de Weber da seguinte forma:
  • Trabalho + Paixão = Intuição
O trabalho mais calculista somado a uma paixão inspiradora pode ocasionar no jovem cientista uma intuição bastante frutífera em suas reflexões. Sendo assim, "A intuição, ao contrário do que julgam os pedantes, não desempenha, em ciência, papel mais importante do que papel que lhe toca no campo dos problemas da vida prática, que o empreendedor moderno se empenha em resolver" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 26/27). Quanto a natureza do trabalho científico, Weber admite que sua sina é o envelhecimento. Ou seja, toda produção intelectual tem um prazo de validade que significa tornar-se algum dia "ultrapassado" após novas indagações que venham a surgir. Dedicar-se à ciência, deve resignar-se a tal destino, pois esse progresso tende a se perpetuar como característica do conhecimento científico. Diante dessa constatação, Weber questiona: "Que obras significativas espera o homem de ciência realizar graças a descobertas invariavelmente destinadas ao envelhecimento, deixando-se aprisionar por esse cometimento que se divide em especialidades e se perde no infinito?". 

A essa pergunta, Weber responde que o progresso científico é um fragmento de um processo maior: o de intelectualização. Mas o que significa esse processo de intelectualização ou racionalização intelectualista? Com as próprias palavras do Weber: "A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nós não mais se trata, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é a significação essencial da intelectualização" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 31). Dito o conceito de intelectualização, Weber se questiona: e quais a implicância e/ou consequências desse processo que despoja de magia o mundo? E é mais uma vez recorrendo as próprias palavras do autor que respondemos esse questionamento: 
"O homem civilizado, ao contrário, colocado em meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuadamente de pensamentos, de experiências e de problemas, pode sentir-se 'cansado' da vida, mas não 'pleno' dela. Com efeito, ele não pode jamais apossar-se senão de uma parte ínfima do que a vida do espírito incessantemente produz, ele não pode captar senão o provisório e nunca o definitivo. Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que não tem sentido. E porque a morte não tem sentido, a vida do civilizado também não o tem, pois a 'progressividade' despojada de significação faz da vida um acontecimento igualmente sem significação" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 31)
Em suma, todo o conjunto de conhecimentos formados a partir do processo de intelectualização, tornou a vida do homem moderno um ninho de possibilidades onde não lhe resta outra alternativa a não ser aceitar a inacessibilidade do que é produzido. Captando apenas o superficial, e nunca o essencial ou definitivo, a consequência direta disso é o desencantamento do mundo por parte desse homem moderno. Mas isso nem sempre foi assim. Trazendo o exemplo dos gregos, especificamente da obra de Platão, Weber observa que naquela época os instrumentos e/ou ferramentas intelectivas estavam à serviço da procura pela verdade eterna. O principal instrumento da época era o conceito, visto como meio possível de se chegar ao ideal e correto. Indo um pouco mais além, e chegando no Renascimento, Weber observa a descoberta da experimentação racional. Essa experimentação que foi crucial para o desenvolvimento das Ciências da Natureza, tinham um significado simples: encontrar o caminho que conduz a Deus. Pois, "Deus está oculto, seus caminhos não são os nossos, nem seus pensamentos os nossos pensamentos. Esperava-se contudo, descobrir traços de suas intenções através do exame da natureza, por intermédio das ciências exatas, que permitiriam apreender fisicamente suas obras" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 34).

Mas qual o sentido da ciência e do seu conhecimento nos dias atuais? Weber é taxativo: hoje a ciência se constitui em um espaço de completa abstração que até se esforça, mas não consegue explicar e/ou atingir toda a complexidade da vida real. A busca por um conhecimento que seja ponte para uma verdadeira natureza, felicidade, arte ou Deus foi totalmente criticada e despedaçada pela própria ciência. E não tendo essa ciência princípios, vale o questionamento: que devemos fazer e como devemos viver frente a essa completa desorientação nebulosa?

A resposta do como se viver não nos é dada por esse novo estágio que se encontra a ciência. Weber trás exemplos disso nos mais variados ramos do conhecimento. Nas Ciências da Natureza, apesar de prezar pelo desenvolvimento de leis que devam explicar minimamente o devir cósmico, enxerga-se uma dificuldade em responder objetivamente o porquê esse mundo merece existir ou se ele encerra algum sentido. Na Medicina a preservação de uma vida, mesmo em estado terminal, ainda é vista como merecedora de ser preservada com base em argumentos estritamente técnicos que fogem da pergunta: isso tem algum sentido? Nas Artes, os conhecimentos produzidos não conseguem responder satisfatoriamente indagações do tipo: deveria haver obras de arte? Por fim, as chamadas por Weber de Ciências Históricas ao buscarem compreender fenômenos políticos, sociais, literários e econômicos não conseguem responder questões do tipo: esses fenômenos mereceriam realmente existir?

Saindo das perguntas sem respostas e se detendo a disciplinas que lhe são caras (ele cita no texto a Sociologia, a História, a Economia Política, a Ciência Política e a Filosofia), Weber busca finalmente traçar algum princípio no que tange a formação e reprodução do conhecimento científico. Nesse princípio procurado, Weber afirma que: não se deve misturar, em sala de aula, ciência com política. Isso porque se posicionar politicamente é visto por ele como o inverso de analisar cientificamente estruturas sociais e políticas. Se posicionar politicamente é proibido por parte do cientista? Não, mas que faça isso no lugar devido que são as reuniões públicas onde se pode substituir a análise científica pelo apego político. Por isso,
"Seria vil empregar as palavras de tal maneira em uma sala de aula. Quando, em um curso universitário, manifesta-se a intenção de estudar, por exemplo, a 'democracia', procede-se ao exame de suas diversas formas, o funcionamento próprio de cada uma delas e indaga-se das consequências que uma e outra acarretam; em seguida, opõe-se à democracia as formas não-democráticas da ordem política e tenta-se levar essa análise até a medida em que o próprio ouvinte se ache em condições de encontrar o ponto a partir do qual poderá tomar posição, em função de seus ideais básicos" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 39)
A rua e as reuniões públicas estão para os demagogos sendo um erro do professor usar de sua posição hierárquica para formar discípulos de suas próprias concepções políticas. Sendo assim, "O professor que sente a vocação de conselheiro da juventude e que frui da confiança dos moços deve desempenhar esse papel no contacto pessoal de homem para homem. Se ele julga chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, ou seja, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde queira" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 44). Dito isso, qual é a contribuição positiva da ciência para a vida prática e pessoal dos indivíduos? Weber destaca quatro pontos, são eles:
  1. Domínio técnico da vida, o conhecimento científico coloca o homem a par de ferramentas teóricas que permitem o domínio da vida por meio da previsão;
  2.  Formação de métodos de pensamento, ou seja, instrumentos e ferramentas que ajudam a instrumentalizar o pensar; 
  3. Clareza em mostrar diferentes perspectivas, onde mostra as várias possibilidades práticas em atender a problemas variados onde o papel do professor se limita a mostrar a necessidade de escolher um caminho sem direcionar para qual em específico; 
  4. Clareza em demonstrar a significação das coisas, onde o cientista pode esclarecer se tal ou qual visão se liga a uma e não de outra perspectiva. 
E encerrando, "Se um professor alcança esse resultado, inclino-me a dizer que ele põe a serviço de potências 'morais', ou seja, a serviço do dever de levar a brotarem, nas almas alheias, a clareza e o sentido de responsabilidade. Creio que lhe será tanto mais fácil realizar essa obra quanto mais ele evite, escrupulosamente, impor ou sugerir, à audiência, uma convicção. 

A Política Como Vocação (1919) - A pergunta inicial feita por Max Weber nessa conferência realizada em 1919 é: que é a vocação política e qual o sentido que pode ela revestir? Para sanar essa indagação, faz-se necessário primeiramente conceituar política. Sendo assim, ele considera política tudo aquilo que está em volta da instituição "Estado", então visto como um agrupamento político. Mas o que seria então o Estado? Na análise weberiana, o Estado enquanto agrupamento político é visto pelo meio que lhe é peculiar: o uso da coação física na manutenção de sua dominação. Weber deixa claro que a violência não é vista somente no Estado (que também utiliza outros meios para dominar), porém, é o uso desta é sua característica mais singular em comparação com outros agrupamentos. Sendo assim, o conceito de Estado em Weber seria:
"Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território - a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado - reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 56)
Já como política, entende Weber como "o conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 56). Em resumo, a política em Weber é o interesse em torno da divisão, conservação e/ou transferência do poder. E esse poder nada mais seria que a probabilidade de aceitação de uma dominação. Sendo necessária a divisão na sociedade entre dominadores versus dominados para a manutenção do Estado, surge outro questionamento no autor: em que justificações se apóia essa dominação?

Weber, inicialmente, enxerga três fundamentos que legitimam a dominação, são os famosos e conhecidos tipos de dominação que abaixo elencaremos:
  • Poder Tradicional: ou seja, "a autoridade do 'passado eterno', isto é, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizado nos homens, de respeitá-los" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 57). É o caso dos patriarcas e senhores de terra, segundo Weber;
  • Poder Carismático: ou seja, "a autoridade que se funda em dons pessoais e extraordinários pessoais depositadas em alguém que se singulariza por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dele fazem o chefe" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 57). É o caso dos grandes demagogos ou dirigentes de partidos políticos;
  • Poder Legal: ou seja, é uma autoridade assentada "em razão da crença na validez de um estatuto legal e de uma 'competência' positiva, fundada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outros termos, a autoridade fundada na obediência, que reconhece obrigações conformes ao estatuto estabelecido" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 58). É o caso do servidor do Estado, segundo o próprio Weber. 
Dois sentimentos mantém firmes os alicerces desses tipos de dominação, são eles: o medo da punição e a esperança de alguma recompensa. Seguindo a tradição em indagar antes de aprofundar seus reflexões, pergunta-se Weber: de que modo as forças políticas em torno do Estado conseguem manter sua autoridade para além das dominações descritas acima? Simples: necessita de ferramentas materiais que podem ser resumidas brevemente da seguinte maneira, 
"Toda empresa de dominação que reclame continuidade administrativa exige, de um lado, que a atividade dos súditos se oriente em função da obediência devida aos senhores que pretendem ser os detentores da força legítima e exige, de outro lado e em virtude daquela obediência, controle dos bens materiais que, em dado caso, se tornem necessários para aplicação da força física. Dito em outras palavras, a dominação organizada, necessita, por um lado, de um estado-maior administrativo e, por outro lado, necessita dos meios materiais de gestão" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 59).
Para que qualquer tipo de dominação se mantenha no poder é preciso o estado-maior administrativo (conjunto de ações que levem a obediência dos dominados) e também os meios materiais de gestão (recursos econômicos que venham a sustentar a estrutura a necessária força física). Dentre esses meios materiais de gestão, Weber destaca dois tipos: 01) o primeiro onde o próprio estado-maior administrativo é detentor dos instrumentos de gestão; 02) o segundo onde esses instrumentos de gestão são destituídos do estado-maior administrativo. O segundo caso é característico da sociedade feudal, onde o próprio vassalo arcava com as despesas no tocante a administração e segurança do território em que estava residindo, já o segundo é obra do Estado Moderno que ao centralizar os meios de gestão no estado-maior administrativo acabou criando uma espécie de "trabalhadores do Estado" que estão subordinados as ordens de políticos que detém o poder de distribuição dos cargos.

Sendo assim, "o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 62). E foi desse processo de centralização dos meios materiais de gestão nas mãos do estado-maior administrativo que surgiu uma nova espécie de homens: os políticos profissionais, responsáveis pela administração do Estado Moderno.

Outrora funcionário dos monarcas, os políticos profissionais são resultado do desenvolvimento de um processo que culminou na formação do que conhecemos hoje como Estado Moderno. Dito isso, Weber divide suas formas de se fazer política: 01) exercício ocasional da política, fazendo dela uma profissão secundária; 02) exercício permanente da política, fazendo dela uma profissão principal. Logo, "Nossa distinção assenta-se, portanto, num aspecto extremamente importante da condição do homem político, ou seja, o aspecto econômico. Daquele que vê na política uma permanente fonte de rendas, diremos que 'vive da política' e diremos, no caso contrário que 'vive para a política" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 65). O determinante aí, para Weber, seria a detenção ou não de propriedade privada por parte do indivíduo.

Apesar de não simplificar sua argumentação, concluindo que indivíduos com muito poder aquisitivo estarão imunes de praticar atividade política sem intenções de ganhos econômicos com ela, Weber afirma que no caso de indivíduos despossuidores de propriedade a condição em participar da política não é relacional mais sim regular e garantido. Esses empregos surgem em várias instituições ligadas diretamente ou indiretamente ao Estado sendo as lutas partidárias mais um resultado por busca de emprego que um resultado de inspirações ideológicas. Logo, "Dessa forma, aos olhos de seus aderentes, os partidos aparecem, cada vez mais, como uma espécie de trampolim que lhes permitirá atingir este objetivo essencial: garantir o futuro" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 69).

Essas disputas internas nos partidos seriam responsáveis por apenas um grupo de funcionários do Estado chamados aqui por "funcionários políticos". Porém, o Estado Moderno desenvolveu outro tipo de funcionário: os de carreira, inspirados por uma capacidade técnica e estritamente profissional no exercício de suas funções. Pontuada a existência desses funcionários de carreira, Weber volta ao debate sobre os partidos políticos e os funcionários políticos que neles se encontram. Enxergando os partidos políticos como uma empresa de interesses, o autor constata a importância que o tipo de dominação carismática exerce grande serventia aos interesses partidários ao sobrepor as qualidades individuais do líder aos programas partidários abstratos frente a população votante.

Feito essa longa reflexão e já se encaminhando para o fim da conferência, Weber questiona: quais são as características que deve conter alguém que deseje adentrar na carreira política? É bem verdade que o impulso daqueles que desejam essa carreira é o que ele chama de "sentimento de poder", basicamente representa como a consciência de deter em mãos um importante elemento da História. E é partindo para questões puramente éticas que Weber se pergunta: que tipo de homem deve ser esse que deseja ter em mãos a roda da História? Para ele, três são as características ou qualidades que o homem político deve conter. São elas: a) a paixão, vista como uma devoção apaixonada a uma causa; b) sentimento de responsabilidade; c) senso de proporção, vista como uma qualidade subjetiva e psicológica que promova no homem política a tranquilidade necessária para avaliar os fatos com temperança. É enxergar os fatos fora da mera paixão, em suma, "Quer dizer que ele deve possuir a faculdade de permitir que os fatos ajam sobre si no recolhimento e na calma interior do espírito, sabendo, por consequência, manter à distância os homens e as coisas" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 106). Isso porque "Faz-se política usando a cabeça e não as demais partes do corpo" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 106).

E o que esse homem político deve evitar? A vaidade, vista por Weber como "inimiga mortal" tanto da devoção a uma causa quanto a qualidade da proporção. A vaidade pode transformar a atividade política em mera "exaltação pessoal", o que pode fazer o homem político: a) se afastar de alguma causa; b) não ter sentimento de responsabilidade. Sendo assim, analisa Weber:
"O demagogo é obrigado a contar com o 'o efeito que faz' - razão por que sempre corre o perigo de desempenhar o papel de um histrião ou se assumir, com demasiada leviandade, a responsabilidade pelas consequências de seus atos, pois que está preocupado continuamente com a impressão que pode causar sobre os outros. De uma parte, a recusa de se colocar a serviço de uma causa o conduz a buscar a aparência e o brilho do poder, em vez do poder real; de outra parte, a ausência do senso de responsabilidade o leva a só gozar do poder pelo poder, sem deixar-se animar por qualquer propósito positivo" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 107).
Por fim, Weber encerra a conferência questionando: qual a ética da política? Ele divide a ética em duas faces: a) Ética da convicção, exemplificada na moral religiosa onde se busca um fim através de um meio; b) Ética da responsabilidade, vista como uma ética não pura que aceita certos desvios (ou pequenos avanços) dos meios para que se atinja os fins. A primeira segue a coerência pura, já a segunda preza pelo cálculo. Vamos supor um membro de uma seita pacifista. Na ética da convicção, esse membro agirá sob certos princípios irrenunciáveis como o não uso de violência na resolução de conflitos. Porém, pensando num ação baseada na ética da responsabilidade, o membro poderia adotar uma resistência contra certos invasores tendo como princípio a preservação de sua comunidade, mesmo que essa resistência passe por ações violentas. Existe então um paradoxo ético que o político deve sempre compreender e saber utilizar em seu proveito.

Dito isso, Weber alerta: sendo a política interligada com a dominação e o poder, seus meandros sempre levará a dilemas éticos. E esses dilemas éticos na política sempre acarreta conflitos irreconciliáveis, sendo a violência seu principal resultado. Apesar disso, espera-se do autêntico líder político que ele consiga unir em sua atividade as duas facetas da ética descritas acima, alcançando assim a vocação política por excelência.  Encerramos esse breve resumo com as últimas palavras do sociólogo alemão Max Weber nesta conferência e que resume a vocação política por excelência que falamos anteriormente:
"A política é um esforço tenaz e enérgico para atravessar vigas de madeira. Tal esforço exige, a um tempo, paixão e senso de proporções. É perfeitamente exato dizer - e toda a experiência histórica o confirma - que não se teria jamais atingido o possível, se não se houvesse tentado o impossível. Contudo, o homem capaz de semelhante esforço deve ser um chefe e não apenas um chefe, mas um herói, no mais simples sentido da palavra. E mesmo os que não sejam uma coisa nem outra devem armar-se da força de alma que lhes permita vencer o naufrágio de todas as suas esperanças. Importa, entretanto, que se armem desde o presente momento, pois de outra forma não virão a alcançar nem mesmo o que hoje é possível. Aquele que esteja convencido de que não se abaterá nem mesmo que o mundo, julgado de seu ponto de vista, se revele demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para merecer o que ele pretende oferecer-lhe, aquele que permaneça capaz de dizer 'a despeito de tudo!', aquele e só aquele tem a 'vocação' da política" (WEBER, Max. São Paulo: 2011, p. 123/124)















segunda-feira, 17 de junho de 2019

A Sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento


  • Sobre o autor: Florestan Fernandes foi um sociólogo brasileiro, nascido em São Paulo, contendo uma vasta carreira acadêmica entre os anos de 1950 e 1980. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Florestan logo se tornaria mestre e doutor pela universidade com base em estudos sobre a sociedade Tupinambá. Foi professor da USP até 1969, ano em que foi compulsoriamente aposentado pela Ditadura Militar, instalada no país em 1964. Exilado, Florestan trabalhou como professor visitante nas Universidades de Columbia e Yale. Também foi professor titular da Universidade de Toronto. Graças a anistia, retorna ao Brasil onde exerce sua profissão na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). A partir dos anos de 1980, Florestan se envolve com a política e se torna uma das figuras chaves que darão origem ao Partido dos Trabalhadores (PT). Pelo PT elegeu-se deputado constituinte em 1986 sendo reeleito para a Câmara de Deputados em 1990. Florestan morre em 1995 após erro médico, quando foi submetido a uma cirurgia de transplante de fígado. Entre suas principais obras, podemos citar: a) A função social da guerra na sociedade Tupinambá; b) A integração do negro na sociedade de classes; c) A revolução burguesa no Brasil; d) Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana.



A Sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento - Florestan Fernandes - Editora Vozes


Nota Explicativa - Florestan destaca aqui que a obra não é uma história cronológica e meramente descritiva do desenvolvimento da Sociologia no país. O livro foi construída com base em diversos ensaios, escritos em diferentes momentos e conjunturas, mas que seguem uma unidade intelectiva: pensar na prática do sociólogo brasileiro. Dito isso, faz-se necessário destacar um trecho do último parágrafo dessa nota explicativa: 
Se o pensamento científico nos obriga a quebrar o conformismo, era meu dever sugerir como o sociólogo que se liberta da coação externa contrapõe a explicação sociológica às expectativas conservadoras, calcadas na segurança da ordem, na estabilidade política e na aceleração do desenvolvimento econômico. Em uma era de crise de civilização, as escolhas extremas se voltam ou para as funções contra-revolucionárias ou para as funções revolucionárias que o uso das ciências sociais pode assumir na história em processo. Fiquei, naturalmente, do último lado, movido pela esperança de que, assim, ajudaria a colocar o pensamento sociológico na vanguarda das forças sociais que lutam por uma revolução democrática no Brasil (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 8)
PRIMEIRA PARTE - Os Quadros de Formação

Introdução - Florestan apenas expõe brevemente o que será analisado em cada capítulo. O livro é dividido em duas partes. A primeira do capítulo 01 a 06; e a segunda do capítulo 07 ao 12. Abaixo resumiremos cada capítulo.

01) Ciência e Sociedade na Evolução Social do Brasil - Esse artigo faz parte de um estudo mais amplo de Florestan Fernandes, então presente na obra "A Investigação Etnológica no Brasil e outros ensaios". Nele o autor debate de forma resumida o desenvolvimento da ciência no país. O conhecimento científico se desenvolveu historicamente assentado numa sociedade estratificada e diferenciada ao ponto de a tarefa de produzir intelectualmente estivesse sob responsabilidade de alguns indivíduos. Além disso, alguns elementos que ajudaram nesse processo foram acrescentados como: a) a difusão de uma concepção secularizada da existência humana e das instituições sociais; b) o alargamento do acesso a produção intelectual; c) a convivência de diferentes pensamentos disputando suas validades.

Todas essas condições só foram criadas no Brasil recentemente. Florestan faz um apanhado histórico de como se forjou a produção de conhecimento antes da formação dessas condições ideais. No Brasil Colonial o pouco de produção intelectual presente se encontrava monopolizado pelo clero. A Igreja Católica era responsável pela difusão da fé, formação de novas gerações e guia moral dos setores dominantes da sociedade colonial. Sendo assim, "A organização do clero na sociedade brasileira colonial fazia dele uma força de conservantismo cultural tão exclusivista quão intolerante" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 16). A organização social baseada na estratificação interétnica auxilia o domínio clerical, na medida que não oferecia condições materiais para que escravos (nativos ou oriundos da África) pudessem contestar intelectualmente essa estrutura. Além disso, existia a própria limitação do colono. Esses se encontravam dominando a esfera familiar e administrativa, sendo o último domínio circunscrito em sua propriedade rural ou vila, e presos a conhecimentos práticos que serviam para resolver problemas do cotidiano.

A situação começa a ser modificada após o primeiro decênio do Século XIX, sendo a vinda da família real portuguesa para o Brasil o principal marco dessa época. É nesse período que os primeiros passos para a formação de uma intelectualidade começam a serem dados com a criação de escolas superiores e núcleos urbanos de atividade intelectual. Esses primeiros centros receberam forte influência da produção intelectual européia, não se fazendo descobertas originais. Ou seja, o germe de uma Intelligentsia no Brasil será reprodutora do que é produzido na Europa. Mas adverte Florestan: "Isso, porém, não significa que essa Intelligentsia fosse desinteressada, em face da solução dos problemas que se levantavam na esfera da ação. Faltaram-lhe, como ocorreu com o clero no período colonial, elementos que permitissem inserir suas atividades intelectuais em um processo cultural dotado de dinamismo próprio" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 18). Cinco são as razões para o não dinamismo do que se produzia intelectualmente por aqui:
  1. O foco da aristocracia brasileira se encontrava em formações que dessem a ela suporte para a administração pública, logo, as Faculdades de Direito serão as mais procuradas nesse ainda principiante ensino superior; 
  2. O bacharel em Direito passava a ser um colaborador da organização social baseada na escravidão, no latifúndio e na monocultura sendo ele um representante do senhor rural na vida urbana;
  3. Por conta da forte estratificação que baseava a sociedade brasileira da época, o valor dos posicionamentos era validade (ou não) por quem o reproduzia e não pela contenção de uma racionalidade e/ou coerência argumentativa, ferindo a comunicação entre portadores de diferentes pontos de vistas;
  4. A escravidão excluía a valorização de profissões mecânicas, com isso o sucesso de um senhor rural advinha de sua posição enquanto proprietário e senhor de escravo, mas não pela sua competência técnica; 
  5. Por fim, o ofuscamento dos valores intrínsecos ao conhecimento científico em contraponto a valorização das tradições e da dominação de tipo patrimonialista. 
Esses cincos fatores são vistos por Florestan como fundamentais no entendimento da dependência intelectual brasileira já mencionada acima. É só no fim do Século XIX que as condições para o desenvolvimento de um pensamento científico começa a ganhar melhor modelação no país. O principal motivo era a quebra da escravidão e de toda uma organização societária baseada no tradicionalismo e no patrimonialismo. A transição de uma sociedade estratificada etnicamente para uma sociedade de classes foi primordial no desenvolvimento de atividades intelectuais.

Para exemplificar melhor o desenvolvimento desse pensamento científico, Florestan trás a cidade de São Paulo que em comparação com outros estados do país se encontrava na época com um desenvolvimento industrial singular. É nessa cidade que, mesmo ainda existindo traços do tradicionalismo representado pelo folclore e crenças religiosas variadas, encontram-se passos na elaboração de um conjunto de técnicas racionais que venham a servir como base na administração pública. Na prática, atesta Florestan:
Na esfera da educação, as necessidades de hoje são mais dramáticas que as de ontem. É preciso preparar o cidadão para dirimir uma organização política e administrativa. de engrenagem complicada ou para escolher os que se candidatam para aquele fim. É preciso instruir os indivíduos para ocupar posições em uma estrutura social internamente diferenciada e aberta: as fábricas, os armazéns, as lojas, os escritórios, os bancos, as escolas, os hospitais, exigem pessoal apto para diferentes atividades, que deixaram de ser transmitidas informalmente. É preciso criar técnicos e especialistas em diversos campos, em que a tecnologia moderna e a ciência aplicada se subdividem. E, principalmente, é preciso formar uma nova concepção da dignidade e do valor da pessoa humana (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 23)
Ademais, Florestan conclui atestando que o desenvolvimento do pensamento racional e científico no Brasil é recente e fruto de transformações sociais no seio da sociedade brasileira. Essas transformações criaram inovações que tendem a satisfazer necessidades novas forjadas por uma sociedade: dividida em classes sociais, sob um processo de industrialização e com a democratização de direitos sociais. Tudo isso, claro, tendo como pano de fundo a secularização dos modos de compreensão do mundo. São novas condições materiais e morais de existência criadas onde, apesar das adversidades de ordem econômica e até institucional, deverá ser guiada por tendências que seguem o contínuo processo de desenvolvimento de um sistema intelectual de explicação racional e científico de mundo.

02) Desenvolvimento Histórico-social da Sociologia no Brasil - I. Introdução; II. Épocas de desenvolvimento da Sociologia; III. Obstáculos culturais à aceitação da Sociologia; IV. Fatores sócio-culturais da inclusão da Sociologia; V. Limitações institucionais à expansão da pesquisa sociológica.

Florestan Fernandes considera o surgimento da Sociologia como um fenômeno histórico-cultural que depende de dois importantes fatores: a) secularização das atitudes humanas, junto a uma racionalização dos modos de compreender a existência humana e os eventos históricos; b) aparato institucional para que ofereça suporte ao seu desenvolvimento. Sendo assim, "As duas conexões indicadas são índices de que o aparecimento e o florescimento da sociologia, nos tempos modernos, se vinculam a necessidades intelectuais de explicação do comportamento humano e do mundo, que possuem uma origem histórico-social e o sentido de uma mudança cultural" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 25). Neste texto, Florestan visa analisar o surgimento da Sociologia justamente em sociedades que não passaram pelos dois fatores acima mencionados, como foi o caso da brasileira.

No Brasil, a Sociologia chega como uma novidade trazida pela sociedade européia e por isso os primeiros escritos locais são contemporâneos e buscam dialogar com pensadores pioneiros como Auguste Comte. Logo, a primeira fase da Sociologia no país é marcada pela dependência de interpretação, sem nenhum tipo de autonomia intelectual. E mais, segundo o autor: "A intenção não é a de fazer, propriamente, obra de investigação sociológica, mas de esclarecer certas relações, mediante a consideração dos fatores sociais" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 27). Dessa forma, a inteligência nacional passa a refletir sobre assuntos que foram estudados na Europa pelo pensamento racional pré-científico.

A segunda fase da Sociologia no país, visou utilizar o pensamento racional como condição para a investigação das condições histórico-social da sociedade brasileira; já a terceira fase buscou incorporar as reflexões teóricas com os padrões técnicos do trabalho científico. Essa terceira fase é recente e ainda em desenvolvimento.

Descrita essas três fases, Florestan busca analisar os obstáculos que a ciência sociológica enfrentou para se desenvolver no Brasil. E para ele dois fatores se destacavam, como: a) a ordem patrimonialista, confrontando-se com o exercício do pensamento livre e racional; b) e resistências culturais que se confrontavam com as concepções científicas de mundo. Sobre o primeiro fator, Florestan afirma que até era possível a incorporação de técnicas de consciência social, porém, elas deveriam se submeter à ordem patrimonialista. Era preciso fazer com que essas técnicas se habituassem a sociedade escravocrata e senhorial, por isso fazia-se necessário um peneiramento de modo a garantir essa fidelidade. "Em consequência, pela própria situação do sujeito criador, a atividade intelectual ficava, por assim dizer, sufocada dentro de um cosmos moral fechado, conservador e de interesses espirituais limitados" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 29). Sendo assim, tínhamos um ambiente inóspito para o desenvolvimento da Sociologia que depende de autonomia e liberdade na realização de sua atividade intelectual.

Já sobre o segundo fator, fica evidente que em uma sociedade patriarcal onde os costumes e as tradições exerciam forte relevância nas relações sociais, as concepções científicas de mundo não teria terreno frutífero para se desenvolver. Sobre tal ambiente, diz Florestan:
Nem mesmo os numerosos pontos de contacto e de comunicação da sociedade brasileira com o exterior foram suficientes para alterar o poder dos costumes. É que deles emanava a justificação moral da ordem existente, e, portanto, da escravidão, da dominação senhorial e de toda desigualdade social ou econômica inerente à organização patrimonialista. A dominação senhorial e a ordem patrimonialista repousavam na observância estrita dos costumes e das tradições. Por isso, um ponto de vista que tendesse a expor o comportamento humano à análise racional chocava a mentalidade dominante e suscitava desconfianças. Ele poderia ser tolerado em círculos restritos, como motivo de discussão literária ou evidência de ilustração. Mas não se inseria entre os componentes regulares e ativos do sistema de concepção de mundo (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 30).
Em tal contexto histórico e social, era difícil o desenvolvimento da Sociologia como um valor cultural a ser socialmente desejável. Mas quais os fatores sócio-culturais para o florescimento da ciência sociológica? Na Europa a Sociologia surgiu através de dois processos correlatos: o de secularização e o de racionalização. Para Florestan, tal processo só começa a ter início no Brasil após o enfraquecimento da sociedade escravocrata/senhorial e consequente advento do regime de classes sociais. Inicialmente, transformações políticas obrigaram a aristocracia rural a adentrar na arena política nacional, influindo na organização do Estado. Daí resultou o incremento de técnicas sociais racionais, mas que não chocassem com os interesses da ordem patrimonialista e senhorial. Porém, a partir do terceiro quartel do século XIX, o intenso desenvolvimento das cidades criou uma inteligência que reagiam as pressões impostas pelos conservadores.

É dessa inteligência radical e dissidente que surgem as primeiras reflexões independentes sobre o Brasil, sendo na verdade tentativas de reflexões sociológicas. Entre os pioneiros, Florestan coloca: Tavares Bastos, Perdigão Malheiros, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Aníbal Falcão e Paulo Egydio. O que esses pensadores tinham em comum, eram a atuação no movimento abolicionista que veio a exercer papel fundamental para o desenvolvimento de tal inteligência. Como mostra Florestan, "Os movimentos abolicionistas constituíram a primeira grande experiência histórica de população urbanas ou rural-urbanas brasileiras na esfera da secularização do pensamento e dos modos de entender o funcionamento das instituições" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 34).

A ruína da sociedade escravocrata resultou em duas consequências. Primeiro, o fim da escravidão representava para o movimento abolicionista a convicção de que o Brasil passaria por um pujante desenvolvimento econômico, político e social. Entretanto, após a abolição, tais expectativas não foram saciadas e isso resultou na consciência de que os problemas nacionais tinham causas mais profundas e essas deveriam ser devidamente investigadas. A obra Os Sertões de Euclides da Cunha se encontra nesse período de tentativa de explicar essas causas profundas, sendo considerado por Florestan um marco para o desenvolvimento da Sociologia no Brasil. Apesar de não ter intenções sociológicas diretas, a obra através de uma interpretação histórico-geográfica, representou uma importante reflexão sobre a vida e formação dos brasileiros. A partir dali a Sociologia aparecerá como uma importante técnica de explicação do mundo, se inserindo de vez no sistema sócio-cultural brasileiro.

Segundo, a crise mantida mesmo após a abolição, levou diversos intelectuais a buscarem soluções dando uma natureza pragmática as reflexões sociológicas. Alberto Torres é o principal teórico a se destacar no período, considerado por Florestan como o "pioneiro na formulação pragmática do pensamento sociológico do Brasil" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 35). E mais:
Em suma, é legítimo admitir que a desagregação do regime escravocrata e senhorial possui, para o desenvolvimento da sociologia no Brasil, uma significação similar à da revolução burguesa para a sua constituição na Europa. A ela se associam a formação de uma mentalidade nova, na Inteligência brasileira, a criação de um horizonte intelectual médio menos intolerante e conservador e, enfim, a autonomia do pensamento racional no sistema sócio-cultural (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 36).
As limitações existentes eram consequências da própria organização da sociedade brasileira. Por exemplo, o processo de secularização que seria uma das origens da Sociologia, ficou concentrado nos grandes centros urbanos, localidades onde a urbanização e a industrialização aceleravam o processo de divisão social do trabalho e de diferenciação social. A urbanização foi responsável pelo desenvolvimento da secularização e racionalização das atividades (e comportamentos) econômicas, sociais e culturais, possibilitando espaço para preocupações de cunho intelectual.

Já o ensino das Ciências Sociais veio a se mostrar presente no país a partir dos acontecimentos políticos causados pela Revolução Constitucionalista de 1932, findando dois objetivos: a) educar as novas gerações para a realização de tarefas econômicas, sociais e políticas; b) criar condições para a solução racional e pacífica dos problemas nacionais. A Sociologia se insere institucionalmente no Brasil no momento em que a intelectualidade busca realizar reformas educacionais que venham a combinar com uma ordem social democrática. E tem processos foram fundamentais para a consolidação da ciência sociológica no país: a) a criação de novas instituições que vieram a combinar com o regime de classes sociais, permitindo que a Sociologia se inserisse no sistema escolar; b) o processo de institucionalização, acarreta na inserção da Sociologia no mundo do trabalho, criando status e papéis sociais que a transformam em uma especialidade, podendo o profissional atuar como pesquisador (instituições oficiais e particulares), professor (escolas normais e superiores) ou auxiliar de ensino (ensino superior); c) a institucionalização do ensino e da pesquisa sociológica, proporcionou a formação de um público consumidor específico, no caso, o ensino universitário que veio a oferecer ao sociólogo uma carreira científica.

Nesse período novo e importante que a Sociologia atravessou no Brasil, intelectuais surgiram visando desenvolver ainda mais o ponto de vista sociológico (chamado por Florestan de investigação positiva). Entre os citados por Florestan, temos: Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque de Hollanda e Nelson Werneck Sodré. Também é a partir desse período que a Sociologia brasileira conhece a investigação de campo, explorada informalmente no passado por Euclides da Cunha, e agora supervisionada por professores estrangeiros; responsáveis pelo adestramento desse trabalho de campo as técnicas e normas científicas. Três consequências ocorrem a partir de tais processos: a) a Sociologia e seu ponto de vista passa a ganhar mais clareza, sendo melhor aplicada cientificamente; b) os interesses da Sociologia se ampliam, espalhando-se para todo o país e sob diversos temas; c) a Sociologia se solidifica como disciplina científica e ramo do saber, ganhando espaço institucional de ensino e pesquisa.

Por fim, Florestan debate os empecilhos que a pesquisa sociológica enfrenta. A primeira grande dificuldade é a falta de recursos econômicos, técnicos e humanos que se reflete em todo área mas é ainda mais sentida nas Ciências Sociais. A segunda grande dificuldade tem ligação com a origem do investimento, ainda resumido aos Estados e à União. O investimento privado em pesquisa sociológica são raras, o que acaba centralizando a fonte desses investimentos. Isso acarreta entraves e burocracias diversas que resultam na escassez ou incerteza das verbas. "Em regra, as ciências sociais não contam com o aparato material de pesquisa e com o reconhecimento de valor que beneficiam as ciências de laboratório" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 45). Já a terceira dificuldade se refere ao recente desenvolvimento científico do Brasil, o que torna as instituições científicas ainda em fase de desenvolvimento. Esse recente desenvolvimento acarreta problemas como: má aplicação dos parcos recursos destinados à pesquisa científica, indiferença na seleção das áreas de investigação etc. E, "As ciências sociais, por se acharem em pleno período de descoberta, seleção e consolidação de seus padrões de pesquisa empírico-indutiva, sofrem duramente (e quase sem defesa) o impacto de influências tão destrutivas" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 45). O texto termina com Florestan citando o exemplo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), propondo soluções para suas limitações e reconhecendo as dificuldades da implantação de tais soluções propostas.

03) O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros - I. Introdução; II. Reflexos da situação social na organização do trabalho científico; III. A reação societária aos estudos sociológicos; IV. Centros de interesses dominantes nos estudos sociológicos; V. Elementos formativos do horizonte intelectual dos sociólogos; VI. Um novo padrão integrativo de trabalho científico.

    
 




SEGUNDA PARTE - Os Quadros de Ruptura

08) Em busca de uma Sociologia crítica e militante - I. A formação; II. O confronto com a sociedade; III. Apêndice: autodefesa.

Florestan Fernandes afirma que o objetivo do texto é percorrer sua trajetória intelectual, passando pela sua formação e consequente atuação como sociólogo. O texto acaba se tornando uma autobiografia apesar dele, no auge de sua humildade, não se achar expressivo o suficiente para tal. Ele também se furta em traçar a trajetória do que muitos chamam de "escola paulista de sociologia", pois não concordava com essa alcunha.

Na primeira parte do texto, chamada "A formação", Florestan descreve sua trajetória até se tornar um sociólogo formado e atuante. Em uma tendência que ele chama de "intelectualista", normalmente se descreve a formação da escolarização até as últimas etapas que credenciam o indivíduo para a carreira acadêmica. Ou seja, o foco é na socialização acadêmica. Porém, Florestan se contrapõe a tal tendência e afirma que sua formação como sociólogo tem início a partir de sua socialização pré e extra-escolar, onde recebeu duras lições da vida. Ele defende tais experiências, vinculando-as a sua formação, mesmo que isso possa soar "anti-intelectualista". E afirma:
Portanto, ainda que isso pareça pouco ortodoxo e antiintelectualista, afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade, em uma cidade na qual não prevalecia a ordem das bicadas, mas a relação de presa, pela qual o homem se alimentava do homem, do mesmo modo que o tubarão come a sardinha ou o gavião devora os animais de pequeno porte (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 142).
E continua:
A criança estava perdida nesse mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar nas técnicas do corpo e nos ardis dos fracos os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 142-143).
Sua vida difícil (comparada por ele mesmo a situação do lupemproletariado), tornou-se um importante fator em sua formação. Por conta da variedade de empregos que sua mãe chegou a ocupar mais as constantes mudanças de endereço por conta da elevação dos aluguéis, Florestan teve contato com vários bairros diferentes, conhecendo uma variedade de pessoas. Como bem relata, viveu como um típico pobre dos anos de 1920, rústico e desenraizado, e que de urbano só tinha as relações com o sistema de trabalho e a localização geográfica. Interrompeu seus estudos muito cedo e só retornaria aos bancos escolares aos 17 anos de idade. Entretanto, diz que seus primeiros anos de estudo foram fundamentais para obter não só conhecimento básico para viver em uma cidade (como saber ler e escrever, além de regras de higiene), mais também adquiriu o gosto pela leitura que sempre o acompanhou, até mesmo antes de retornar aos estudos.

Quando decidiu retornar aos estudos, através do curso de madureza, Florestan encontrou não só a oposição de sua mãe (que temia que o filho passasse a ter vergonha dela), mas também de amigos que dentro daquela socialização tratavam a ignorância como uma virtude ou um estado natural do homem. Porém, apesar disso, Florestan faz elogios a tais homens simples e rústicos que encontrou na vida, pois foi com eles que ele recebeu sua "segunda capa de socialização" (palavras do próprio) comprovando a importância de se ter caráter que, naquela condição, significava suportar os desafios diários sem se corromper.

E foi trabalhando como garçom que Florestan iniciou o curso de madureza que transformaria por completo sua vida. Conciliar estudos com o trabalho de garçom já era algo grandioso para Florestan, pois pessoas como ele dificilmente pensariam em algum tipo de ascensão social. Ele, por exemplo, sequer com o auxílio dos familiares de sua madrinha (família Bresser), conseguiu uma ocupação com melhor condições de trabalho e remuneração. O curso abriu uma nova socialização para Florestan, afastando-o do que ele chama de "cultura de folk". Além dos estudos, Florestan também arrumou um novo emprego: deixaria de ser garçom para trabalhar em uma empresa de produtos químicos, chamada de Novoterápica, onde ascendeu rapidamente. Foi através desta nova ocupação que ele passou a lidar com as mesquinharias da vida pequeno-burguesa, conforme ele mesmo descreve. Esse novo emprego também foi responsável por novas relações sociais, inclusive as que apresentariam Florestan a literatura socialista.

Assim, "No Riachuelo não só aprendera as matérias dos cursos de madureza e alargara o meu horizonte cultural. Converti-me, gradualmente, em um intelectual. Comecei a pensar seriamente em fazer um curso superior e decidira que seria professor" (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 153). Precisando trabalhar para sustentar a casa, Florestan ficava impossibilitado de escolher algum curso superior integral, o que fez ele desistir de optar pela Engenharia Química. Seguiu então para as Ciências Humanas e escolheu o curso de Ciências Sociais sob a seguinte justificativa:
A escolha das Ciências Sociais e Políticas correu por conta das oportunidades que coincidiam com os meus interesses intelectuais mais profundos. No caso, a escolha de uma profissão quase não contou. Queria ser professor e poderia atingir esse objetivo através de vários cursos. O meu vago socialismo levou-me a pensar que poderia conciliar as duas coisas, a necessidade de ter uma profissão e o anseio reformista de modificar a sociedade, cuja natureza eu não conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 154).
Seu autodidatismo mais o curso madureza, fez Florestan ser aprovado no curso de Ciências Sociais, fazendo ele concluir que estava em pé de igualdade com aqueles que haviam feito o ensino primário e secundário sem interrupções. E tanto ele quanto os colegas, encontrariam dificuldades no curso ao lidar com professores estrangeiros que davam aula com seu idioma de origem e exigiam dos alunos brasileiros como se o nosso ensino pudesse ser comparado ao europeu. Após passar por uma dificuldade inicial, Florestan relata que conseguiu atingir um nível alto após optar por uma disciplina monástica de estudo. Com o tempo, ele observou que as atividades que exercia no trabalho não mais dialogavam com suas produções na universidade. Era preciso dedicar mais tempo à produção intelectual.

Após ser aceito pelos colegas de sala após um período de isolamento e da obtenção de vínculos com professores como Roger Bastide, Florestan dava início a sua trajetória acadêmica que o transformaria em um grande professor e pesquisador. A amizade com Antonio Cândido e Fernando de Azevedo, mais o tamanho da Faculdade de Filosofia (vista por Florestan como uma aldeia, onde rapidamente o destaque individual era notado e conhecido), foram facilitadores nesta trajetória. Após descrever sua entrada na pós-graduação, Florestan destaca alguns acontecimentos que o transformaram de um aprendiz de sociólogo para um sociólogo maduro.

Sua atuação política no movimento trotskista foi considerado por ele como um dos fatores de sua maturidade, pois foi através dessa atuação que ele teve contato profundo com as obras de Marx (sendo responsável pela tradução do livro Contribuição à Crítica da Economia Política) e finalmente pôde se afastar do intelectualismo abstrato que adquiriu em sua graduação. Foi a partir daquela fase que ele observou a impossibilidade de conciliar teorias opostas, como as propostas por Marx e Durkheim, e passou a se situar melhor sociologicamente, construindo a partir dali sua originalidade enquanto sociólogo e pesquisador. Concluído seu mestrado com o trabalho A Organização Social dos Tupinambás, Florestan conclui seu doutorado com A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá e passa a ocupar de forma substituta o professor Roger Bastide na cadeira de Sociologia I. Foi a partir daí, início dos anos 1950, que ele passa a buscar o desenvolvimento de uma Sociologia Brasileira. Sem desconsiderar o que vinha sendo produzido fora do país, Florestan visava construir padrões de trabalho que caminhasse autonomamente no entendimento da sociedade brasileira. E como ele descreve, entre 1955 a 1969, tal objetivo foi trilhado de forma rígida e fecunda.

Na segunda parte do texto, intitulada "O confronto com a sociedade", Florestan descreve sua luta em criar uma Sociologia autônoma. Primeiro ele relata sobre as dificuldades de se colocar em prática tal projeto. Diferente de outros pesquisadores, o sociólogo não detém um laboratório como seu local de trabalho. Logo, ele está sujeito às normas e critérios do saber científico, mas não detém as facilidades que a investigação experimental em outros campos do conhecimento proporcionam. Buscando amenizar tais limitações, ocorre que esse saber científico criterioso acaba enlaçando à pesquisa sociológica a tal ponto que a torna uma espécie de condição humana para o sociólogo. Caso fuja desta condição humana imposta por tais critérios, sua contribuição sociológica corre risco de ser tudo menos uma Sociologia científica.

O confronto entre sociólogo e sociedade ocorre quando o primeiro visa investigar a sociedade na qual vive. Diante disso, Florestan descreve três caminhos que podem ser seguidos: primeiro, seguir uma Sociologia formal que dar ao sociólogo a possibilidade de trabalhar com aspectos gerais da vida humana em sociedade, conciliando-se com uma objetividade científica que leve a uma tolerância social; segundo, estudar sociedades consideradas remotas ou exóticas, quando o sociólogo visa estudar um "passado morto" ou "contemporâneos de outras culturas", sendo um refúgio em não investigar a atualidade da sociedade em que se vive; e o terceiro caminho que baseado em uma neutralidade ética acarreta uma acomodação intelectual, onde o sociólogo oscila entre um "reformismo esclarecido" e "conservantismo consequente". Essa "apologia da ordem", como chama o Florestan, acaba se tornando em um verdadeiro empecilho para o pensamento científico da Sociologia.

Esse último caminho, muito comum entre os professores catedráticos, não foi o escolhido por Florestan. Seu papel de sociólogo entrava em atrito com tal prática e por isso ele logo percebeu que seu trabalho não encontraria simpatia entre as elites intelectuais conservadoras da época. Buscando driblar tais desafios, Florestan inicia seu trabalho em busca da formação de um conjunto de intelectuais autônomos que visassem o desenvolvimento da pesquisa sociológica no Brasil. A cadeira de Sociologia I que ele ministrava foi o palco institucional para o desenvolvimento desse projeto ambicioso. Considerado por ele como uma instituição dentro de outra, a cadeira criou laços sociais extra-acadêmicos e exerceu um importante papel de desenvolver quantitativamente e qualitativamente a pesquisa sociológica, ganhando auxílio do Departamento de Sociologia e Antropologia.

Apesar da formação de vários conflitos contra intelectuais que se levantaram contra aquelas mudanças, o grupo de desenvolveu com Florestan sempre visando a incorporação de auxiliares que buscassem o superá-lo no que se refere a produção intelectual, mas sem qualquer tipo de apadrinhamento ideológico. Pelo contrário, a autonomia intelectual era uma das bandeiras levantadas, além do combate a acomodação de quem adotava modelos ditados pelos professores estrangeiros sem a devida atualização de tais ferramentas para a nossa realidade. Sobre a importância da cadeira de Sociologia I, diz Florestan:
A cadeira serviu, em suma, para atingir fins que, na tradição do ensino superior brasileiro, conflitavam com a sua existência. Era como que uma revolução dentro da ordem. Sem modificar substancialmente as estruturas e as funções da instituição, nós obtinhamos dela um rendimento imprevisto, confirmando os antropólogos quando eles afirmam que as instituições são flexíveis (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 187).
Através do grupo que conseguiu reunir em torno dele e da cadeira, Florestan conseguiu expandir o projeto de pesquisa sobre as relações raciais e criou um fundo que visava doações externas de origem nacional. Quando veio o golpe militar em 1964 e a consequente intervenção na universidade, o grupo planejava aprofundar estudos sobre a sociedade brasileira, firmando parcerias com outros países da América Latina. O balanço que Florestan faz do grupo é positiva, destacando dois pupilos (Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni), pois conseguiu formar no Brasil sociólogos competentes para assumir a livre docência, sem precisar levar "lavagem de cérebro" (palavras dele) no exterior. Sobre os objetivos do grupo, ele afirma:
Queríamos um ensino básico que fosse suficientemente sólido e diferenciado para servir de base à preparação posterior de três tipos de especialistas - o professor de sociologia, o sociólogo-pesquisador e o sociólogo-técnico. Pretendíamos aumentar as oportunidades de escolha dos estudantes mais avançados, oferecendo vários cursos, que se abrissem para essa trifurcação (embora só tardiamente lográssemos algum êxito com referência à preparação de técnicos) (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 188-189).
O pano de fundo de tudo isso era a conciliação entre ensino, pesquisa e extensão. E, ao contrário de muitos, se agia sem a espera de reformas finais; as ações se baseavam em fins que estavam ao alcance do grupo. Tal trabalho de formiguinha sem o grupo lograr influência externa, furando a bolha e atingindo professores de outras áreas. Os estudantes também foram contagiados e logo os representantes da cadeira de Sociologia I (vistos negativamente pelos setores intelectuais conservadores), passou a ganhar destaque na luta por uma universidade que se alinhasse à pedagogia moderna. Logo, a reforma universitária passaria a ser uma bandeira política a ser defendida pelo grupo, agora não mais recluso em seu isolamento inicial. A luta pela reforma universitária fez o grupo, segundo Florestan, entrar no "circuito da história" e ir além da construção de um conhecimento sociológico crítico e autônomo.

Foi assim que a cadeira de Sociologia I acabou sendo mais importante para Florestan do que ele para a cadeira, segundo pensamento do próprio. Ela também serviu para que ele se atualizasse enquanto professor e pesquisador, tendo em vista que seus novos assistentes traziam novidades do que se produzia fora do país como Sartre e Goldman, por exemplo. Tal contato com essas novas ideias que surgiam, fez Florestan passar por uma atualização, típica de intelectuais que estão sempre abertos ao diálogo e ao estudo crítico. Aceitando atualizar-se, diz o sociólogo paulista:
Eu era obrigado a penetrar mais a fundo na compreensão do elemento positivo intrínseco à sociologia como ciência, despojando-me, de modo crescente, de resíduos deixados por uma longa contaminação naturalista, ligada principalmente ao período de aprendizagem e aos começos de minha formação sociológica (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 194).
Além desse contato com novas ideias através de jovens assistentes, Florestan admite dois fatores externos que também o ajudaram muito nessa sua reformulação e/ou atualização como sociólogo. A primeira tem um caráter prático e político, vinculando-se a sua atuação na Campanha de Defesa da Escola Pública, durante os anos de 1960. Através dessa militância, Florestan conseguiu tirar importantes lições que vieram a ajudá-lo no entendimento do país. Segundo o próprio, "Pela primeira vez em minha vida era provocado a definir a consciência burguesa em termos de uma equação concreta, que me ensinava que o controle burguês da sociedade civil estava bloqueando e continuaria a bloquear de modo crescente, no Brasil, a revolução nacional e a revolução democrática de recorte especificamente capitalista"  (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 200). Já o segundo fator tem origem teórica e diz respeito ao seu trabalho junto a pesquisas feitas pela cadeira de Sociologia I e teses de doutorado que buscavam entender o Brasil. Essas pesquisas e teses ajudaram Florestan a analisar o Estado brasileiro, a sociedade de classes e o capitalismo brasileiro sob novas lentes. Essas reflexões resultaram em estudos sobre a burguesia brasileira, então dependente, conservadora e pró-imperialista.

Desses novos estudos, os livros A Revolução Burguesa no Brasil e Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, encarnam essa nova fase do Florestan Fernandes. Essas obras mostram a natureza da burguesia brasileira e latino-americana, então incapazes de liderarem e coordenarem uma revolução de tipo democrática-burguesa em suas nações, pois estavam umbilicalmente ligadas aos interesses do imperialismo. Assim Florestan prova que não existe qualquer tipo de alternativa ao capitalismo dependente, sendo então necessária sua superação para dar fim a amarras históricas. Pois, "dentro do capitalismo só existem saídas, na América Latina, para as minorias ricas, para as multinacionais, para as nações capitalistas hegemônicas e a sua superpotência, os Estados Unidos"  (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 204).

Por fim, Florestan levanta questões em relação ao ofício de sociólogo. Ele considera que o trabalho do sociólogo acaba levando ele a ser um "intelectual orgânico da ordem" e que a superação disso só poderia ser realizada caso o sociólogo estivesse alinhado a um movimento socialista forte e atuante na sociedade. As fronteiras entre ideologia e ciência devem ser derrubadas no trabalho do sociólogo. A infiltração ideológica existe (e deve existir), não sendo por ele encarado como algo negativo. Essa infiltração só pode torna-se negativa, caso elimine a criatividade do horizonte intelectual e da reflexão crítica, caindo em um dogmatismo que o sociólogo deve evitar. Isso seria possível, pois, segundo ele:
Os socialistas distinguem o momento intelectual do momento político no que se refere ao conhecimento científico. Embora estejam empenhados em passar de um a outro e de estabelecer uma relação dialética entre ambos, para eles o conhecimento sociológico só possui valor se for obtido dentro dos cânones da ciência e puder ser submetido ao teste da prática, pelo qual se determina seu grau de verdade, de capacidade de transformar o mundo, ou o grau da revisão que se faz necessária  (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 205).
Defendida a junção responsável entre ciência e ideologia, Florestan diz que a cobrança pela coerência do sociólogo com o movimento socialista não deve existir. Isso porque para que o sociólogo trabalhe alinhado a tal movimento, faz-se necessária a existência e a força desse mesmo movimento. Caso contrário, o trabalho do sociólogo se torna infértil no seu isolamento político. Em suma,
A inexistência de um movimento socialista criativo, forte e independente significa que qualquer esforço na direção de uma sociologia crítica gravitará no vazio, ficando de antemão condenado ou como um radicalismo puramente subjetivo ou como uma oposição meramente simbólica. A esse respeito não basta o sociólogo chegue a assumir, concretamente, uma posição socialista  (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 207).
Tal desenvolvimento não era visto no Brasil. Por isso que Florestan ficou dividido entre aproveitar seu talento acadêmico ou atuar politicamente, tendo em vista a inexistência de condições para se tornar um sociólogo através e dentro do movimento socialista. Diante de tal situação, os sociólogos se encontravam em uma cruzada difícil de ser resolvida. De um lado, o conservadorismo que vincula todo sociólogo como subversivo (mesmo esse profissional sendo, na prática, enlaçado profissionalmente e institucionalmente em direção ao trabalho acadêmico e a defesa da ordem); e do outro o frágil movimento socialista que, sem ter condições materiais de formar uma sociologia crítica e militante, ainda trata a Sociologia como uma "ciência burguesa" sem muita importância. Tal cruzada impede o desenvolvimento de uma socialização que ligue o sociólogo a movimentos contestatórios, então preocupados com a transformação revolucionária da sociedade burguesa. Ou seja, a criação de uma sociologia crítica e militante se encontra totalmente afetada diante de tal cenário. E, conforme Florestan encerra o texto, "Somente por essa via ele poderá conquistar um novo patamar histórico, pelo qual a sociologia crítica se desprenderá do controle conservador e dos laços orgânicos com a ordem da sociedade capitalista"  (FERNANDES, Florestan. Petrópolis: 1980, p. 209).