quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Manuscritos Econômico-Filosóficos


  • Sobre o autor: Karl Marx foi um filósofo, economista e historiador nascido em 1818 na antiga Prússia. Faleceu em 1883 aos 64 anos de idade. A obra de Marx exerceu forte influência sobre acontecimentos políticos do Século XX, como: a Revolução Russa de 1917, a Revolução Chinesa de 1949, a Guerra Fria etc. Além desses acontecimentos, Marx influenciou uma geração de intelectuais como Sartre, Althusser, Florestan, Mariátegui entre outros. Suas reflexões abarcam diversas áreas do conhecimento como a Economia, a Sociologia, a História e a Filosofia. Junto com Friedrich Engels, buscou entender os mecanismos da sociedade capitalista, propondo o Socialismo como alternativa para esse sistema, visto por ele como fracassado. Entre suas principais obras, temos: a) O Manifesto do Partido Comunista; b) A Ideologia Alemã; c) O 18 Brumário de Luís Bonaparte. 


Manuscritos Econômico-Filosóficos - Karl Marx - Editora Martin Claret


Capítulo 6 - Terceiro Manuscrito

Propriedade privada e trabalho - Marx busca debater a relação existente entre propriedade privada e trabalho. Para isso, ele critica três correntes econômicas: o mercantilismo, a fisiocracia e à economia política inglesa. Para ele quando tratamos à propriedade privada como detentora de uma essência subjetiva, devemos ter em mente que esta essência não seria outra coisa a não ser o trabalho. É o trabalho que forma à propriedade privada como sujeito, como pessoa e como atividade para si própria. 

Dito isso, ele admite a importância da economia política inglesa em reconhecer a centralidade do trabalho, não enxergando à propriedade privada como uma expressão externa do homem. E mais, os economistas clássicos (Marx faz referência direta a Adam Smith), conseguem ver à propriedade privada "como um produto da indústria moderna e uma força que acelerou e intensificou o dinamismo e o desenvolvimento da indústria, até fazer deste um poder da consciência" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 131). Ao contrário da "economia política esclarecida" (termo utilizado pelo próprio autor), o "sistema monetário e mercantilista" não conseguiu captar a essência subjetiva da propriedade privada, pois a tratavam de forma objetiva e por isso exerciam um papel semelhante aos católicos. Por outro lado, os protestantes desta história (por isso, inovadores) era a economia política. E Marx trata os economistas clássicos como Smith da seguinte forma: 
Engels tem, assim, razão ao chamar a Adam Smith o Lutero da economia política. Assim como Lutero distinguiu na religião e na fé a essência do mundo real, tendo-se contraposto ao paganismo católico; assim como ele eliminou a religiosidade externa enquanto fazia da religiosidade a essência interna do homem, da mesma maneira que negava a distinção entre o sacerdote ee o leigo porque transferiu o sacerdote para o coração do leigo; assim também fica eliminada a riqueza externa ao homem e independente dele (podendo portanto adquirir-se e conservar-se a partir de fora) (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 131-132).
Em suma, conclui Marx: 
Quer dizer, a sua objetividade externa e mecânica é eliminada, pelo fato de a propriedade privada ser incorporada ao próprio homem e de este se reconhecer como a sua essência (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132).
Porém, apesar de no primeiro momento admitir os avanços da economia política sobre a essência subjetiva da propriedade privada, ele tece fortes e contundentes críticas a esses mesmos economistas. Isso porque ao, aparentemente, reconhecer o homem os economistas políticos acabam o negando de forma diferente da vista pelos mercantilistas. Logo, "O que antes era ser-externo-a-si-mesmo, a exterioridade real do homem, transformou-se agora em simples ato de objetividade, de alienação" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132). Apesar de reconhecer a autêntica essência da propriedade privada, o trabalho, eles se baseiam em ideias frágeis que ao libertar o homem das amarras da objetividade o transforma prisioneiro novamente mas agora  do processo de alienação que esses economistas clássicos não conseguiram identificar e criticar. 

É por isso que Marx afirma que "ao mesmo tempo em que mostra com maior unilateralidade, portanto, com maior claridade e lógica, que o trabalho é a única essência da riqueza; demonstra ainda que semelhante doutrina, em contraste com a concepção original, tem consequências antagônicas ao homem" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132). Por último, Marx também tece críticas aos fisiocratas e um deles é citado diretamente: o francês François Quesnay. Ele considera a fisiocracia como um pensamento transitório do mercantilismo para a economia política inglesa, representada por Adam Smith. 

Apesar de tentarem se desprenderem da propriedade feudal (e da sua lógica), os fisiocratas tratam à terra como única fonte de riqueza, porém, através de uma linguagem econômica e não feudal. Apesar desta linguagem econômica inovadora, à terra e à agricultural permanecem sendo encaradas como as únicas fontes de riqueza; a terra aqui não é ainda encarada como capital, mas em comparação com os mercantilistas (que consideravam os metais preciosos como os únicos meios de riqueza), os fisiocratas focam suas reflexões em um elemento natural e universal (à terra). Resumindo o avanço e os limites da fisiocracia, afirma Marx: 
E é só pelo trabalho, pela agricultura, que a terra existe para o homem. Por consequência, a essência subjetiva da riqueza situa-se já no trabalho. Mas, ao mesmo tempo, a agricultura é o único trabalho produtivo (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 133).
Os economistas clássicos vieram para mostrar aos fisiocratas que à agricultura não era o único meio exclusivo de produzir riqueza. Sendo assim, essa agricultura não diverge de nenhuma outra indústria, pois se une a essas pelo fator trabalho, visto como a essência e fonte da riqueza. E Marx segue, "A fisiocracia nega a riqueza específica, externa, puramente objetiva, ao declarar que o trabalho constitui a sua essência. Mas, logo a seguir, o trabalho reduz-se para ele à essência subjetiva da propriedade agrária (baseia o seu raciocínio neste tipo de propriedade que, do ponto de vista histórico, aparece como predominante)" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134).

Após criticar mercantilistas, economistas clássicos e fisiocratas Marx expõe sua visão sobre a subjetividade da propriedade privada. Para ele, a forma objetiva de realização da propriedade privada seria representada pelo capital industrial, pois "só neste estágio é que a propriedade privada pode consolidar o seu domínio sobre o homem e torna-se, na forma mais geral, o poder histórico-mundial" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134-135). Em suma, o desenvolvimento da indústria levaria a sua sobreposição sobre a propriedade agrária. E, por fim, Marx deixa isso claro no seguinte trecho: 
É evidente que, logo que se percebe a essência subjetiva da indústria, que se constitui enquanto indústria, em oposição à propriedade agrária, também esta essência inclui em si a oposição. Com efeito, assim como a indústria incorpora a propriedade de raiz abolida, assim também a sua essência subjetiva engloba a essência subjetiva a última (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134).
Propriedade privada e comunismo - Nesta parte dos Manuscritos, Marx busca pensar num novo modelo societário aonde à propriedade privada seria extinta. Para Marx, "o comunismo é a expressão positiva da eliminação da propriedade privada e, antes de tudo, a propriedade privada universal" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 135). Esse seria o seu comunismo, porém, Marx admite a existência de outros comunismos que ele chama pelo adjetivo de rude. Uma das críticas que Marx direciona para esse comunismo rude é que ele considera à mulher como um tipo de propriedade privada que, após o advento do comunismo, seria socializada assim como à propriedade. O casamento tornaria à mulher como propriedade privada, porém, ao aboli-la essas mulheres agora se organizam como comunidade de mulheres tornando-se uma propriedade comunitária. Sobre essa proposta, ele diz: "Pode afirmar-se que a ideia da comunidade de mulheres é o mistério aberto deste comunismo ainda inteiramente rude e impensado" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 136).

Criticado esse comunismo de tipo rude, Marx começa a descrever o que ele pensa de comunismo e como seria esse tipo novo de sociedade. Segundo sua formulação sobre o comunismo, ele seria: 
O comunismo é a eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana e, desta forma, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem. É, deste modo, o retorno do homem a si mesmo como ser social, ou melhor, verdadeiramente humano, retorno esse integral, consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 138).
Sobre essa última parte em que Marx diz que o comunismo "assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior", já podemos enxergar a diferença para o comunismo rude que ele critica, pois esse preza "pelo retorno à antinatural simplicidade do indivíduo pobre e carente, que não só não ultrapassa, mas nem sequer atingiu ainda a propriedade privada" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 136). O comunismo em Marx seria, segundo suas próprias palavras, "o decifrar do enigma da História" pois conseguiria resolver diversos problemas como: o conflito entre essência e existência, o conflito entre objetivação e auto-afirmação, o conflito entre liberdade e necessidade e, por fim, o conflito entre indivíduo e espécie. 

A propriedade privada a ser eliminada tem sua expressão material e perceptível, porém, também contém uma expressão sensível que é representada pela religião, família, Estado, Direito, moral, ciência etc., vistos por Marx como particularidades da propriedade privada material e que respeitam as suas leis gerais de funcionamento. É por este motivo que "A eliminação positiva da propriedade privada, tal como a apropriação da vida humana, constitui portanto a eliminação positiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da religião, da família, do Estado etc., à sua existência humana, ou seja, social" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 139). No comunismo, logo, se excluiria tanto a alienação religiosa (vista na esfera da consciência) quanto a alienação econômica (vista na esfera da vida real ou material). 

O comunismo seria responsável por produzir um novo homem que produziria a si próprio e os outros homens e "assim a sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é por ele produzida" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 139). É por isso que, para Marx, a sociedade significa para o homem a união com a natureza. Buscando resolver a dualidade entre indivíduo e sociedade, Marx diz que o espírito social e a atividade social (para ele unidos, como vimos acima) não são vistos apenas em atividades direcionadas diretamente para a comunidade. 
Mesmo nos momentos em que eu sozinho desenvolvo uma atividade científica, uma atividade que raramente posso levar ao fim em direta associação com outros, sou social, porque é como homem que realizo tal atividade. Não é só o material da minha atividade - como também a própria linguagem que o pensador emprega - que me foi dado como produto social. A minha própria existência é atividade social. Por conseguinte, o que eu próprio produzo é para a sociedade que o produzo e com a consciência de agir como ser social (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 140).
O que nós pensamos genericamente e abstratamente, afirma Marx, tem relação direta com a comunidade real que nos rodeia. O que pensamos e como agimos se liga ao que está acontecendo ao nosso redor e é por isso que espírito social (o pensar e/ou refletir) e à atividade social (o agir) estão totalmente imbricados. Ainda sobre essa dualidade entre indivíduo e sociedade: 
Antes de tudo, é importante evitar que a "sociedade" se considere novamente como uma abstração em antagonismo com o indivíduo. O indivíduo é o ser social. A manifestação e sua vida - mesmo quando não surge diretamente na forma de uma manifestação comunitária, realizada juntamente com outros homens - constitui, assim, uma expressão e uma confirmação da vida social (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 140).
O homem pensa de acordo com a sociedade em que está inserido, apesar também ser sujeito ativo na transformação desta mesma sociedade. Ou seja, "Como consciência genérica, o homem ratifica a sua vida social real e reproduz no pensamento apenas a sua existência real" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 141). O homem é um ser social com possibilidade de transformar à realidade, porém, apenas dentro das condições sociais em que se encontra. Segue Marx: 
Embora se revele como indivíduo particular, e é exatamente esta peculiaridade que dele faz um indivíduo e um ser comunal individual, o homem é igualmente a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade como pensada e sentida. Ele existe ainda na realidade como a intuição e o espírito real da existência social, como uma totalidade da manifestação humana da vida (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 141).
Dentro desse debate sobre o que é o homem, Marx acusa a propriedade privada de alienar o homem, tornando o objeto que ele produz através do seu trabalho um objeto estranho e não-humano. A manifestação da sua vida, o trabalho, na verdade, significa a desrealização de sua vida. Ainda sobre as nefastas consequências da propriedade privada, Marx critica: 
A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc., ou melhor, quando é utilizado. Embora a propriedade privada entenda todas estas formas diretas de propriedade como simples meios de vida, a vida à qual servem de meios é a vida da propriedade privada - o trabalho e a criação de capital (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142).
A conclusão que Marx chega é que os homens se encontra na completa miséria, pois "todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ter" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142). O objetivo do comunismo é superar essa busca pelo ter, desenvolvida pela propriedade privada. Assim sendo, 
A supressão da propriedade privada constitui, deste modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. Mas só é esta emancipação porque os referidos sentidos e propriedades se tornaram humanos, tanto do ponto e vista subjetivo como objetivo. O olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se transformou em objeto humano, social, criado pelo homem para o homem (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142).
Diante de tal cenário, a necessidade e o prazer perdem seu caráter egoísta, transformando o homem subjetivamente através de um processo objetivo. Esse processo que retira o homem da alienação é visto por Marx de um ponto de vista objetivo e subjetivo. No objetivo, os objetos produzidos passam a ser a objetivação do homem que passa a se reconhecer em tais objetos e não vê-los como estranhos a si. Logo, "Os objetos confirmam e realizam então a sua individualidade, eles são os seus próprios objetos, quer dizer, o homem torna-se pessoalmente o objeto" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 143). E qual sua repercussão na subjetividade? 

Marx diz que a subjetividade do homem e do não-homem (aqui visto como o homem alienado pela lógica que mantém viva à propriedade privada), são diferentes. Após a abolição da propriedade privada e consequente advento do comunismo, os sentidos do homem passam por uma transformação, mas não só os cinco sentidos mais também o que ele chama de "sentidos espirituais" que alargam toda a sensibilidade humana. E essa mudança se faz necessária, porque: 
O homem sufocado pelas preocupações, com muitas necessidades, não tem qualquer sentido para o mais belo espetáculo; o comerciante de minerais vê apenas o seu valor comercial, e não a beleza e a natureza própria do mineral; encontra-se desprovido do sentido mineralógico. Portanto, a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem e criar a sensibilidade humana correspondente a toda a riqueza do ser humano e natural (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 144).
Apesar de mencionar essa parte subjetiva da transformação do homem, Marx deixa claro que essa mudança só será possível através da vida real, pois não se trata de mero problema de conhecimento. Esse problema tem uma materialidade, uma faceta econômica que a filosofia, segundo ele, não conseguia enxergar. É nesta parte do texto que ele advoga pela união entre as ciências naturais, vista como aquelas que penetrou na vida prática do homem através do desenvolvimento da indústria apesar das consequências nefastas dessa, com a filosofia. Para Marx, "A ciência natural acabará um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrará em si a ciência natural; haverá apenas uma única ciência" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). 

Isso porque, segundo ele, ambas tratam de objetos semelhantes: a natureza e o homem, visto como expressão desta natureza. Logo, "O homem é o objeto direto da ciência natural, porque a natureza imediatamente perceptível constitui, para o homem, a experiência humana direta dos sentidos" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). Por outro lado, "Mas a natureza é o objeto direto da ciência do homem. O primeiro objeto do homem - o próprio homem - é natureza, sensibilidade, e as capacidades humanas sensíveis particulares, que unicamente encontram a realização objetiva nos objetos naturais, só podem alcançar o auto-conhecimento na ciência do ser natural" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). Em suma, "A realidade social da natureza e a ciência natural humana, ou a ciência natural do homem, são expressões idênticas" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146).

Ademais, o comunismo seria um estágio em que o homem finalmente teria condições de ser senhor de si. E é desta forma que Marx, encerrando o texto, define o papel do comunismo para o homem:
O comunismo constitui a fase da negação da negação e é, por consequência, para o seguinte desenvolvimento histórico, o fator real, imprescindível, da emancipação e reabilitação do homem. O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objetivo da evolução humana - a forma da sociedade humana (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 148).