quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Poder e Contrapoder na América Latina

  • Sobre o autor: Florestan Fernandes foi um sociólogo brasileiro, nascido em São Paulo, contendo uma vasta carreira acadêmica entre os anos de 1950 e 1980. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Florestan logo se tornaria mestre e doutor pela universidade com base em estudos sobre a sociedade Tupinambá. Foi professor da USP até 1969, ano em que foi compulsoriamente aposentado pela Ditadura Militar, instalada no país em 1964. Exilado, Florestan trabalhou como professor visitante nas Universidades de Columbia e Yale. Também foi professor titular da Universidade de Toronto. Graças a anistia, retorna ao Brasil onde exerce sua profissão na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). A partir dos anos de 1980, Florestan se envolve com a política e se torna uma das figuras chaves que darão origem ao Partido dos Trabalhadores (PT). Pelo PT elegeu-se deputado constituinte em 1986 sendo reeleito para a Câmara de Deputados em 1990. Florestan morre em 1995 após erro médico, quando foi submetido a uma cirurgia de transplante de fígado. Entre suas principais obras, podemos citar: a) A função social da guerra na sociedade Tupinambá; b) A revolução burguesa no Brasil; d) Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana.

Poder e Contrapoder na América Latina - Editora Expressão Popular


Notas sobre o Fascismo na América Latina - Este texto é resultado de uma mesa redonda na Universidade de Harvard, março de 1971, chamada "A Natureza do Fascismo e a Relevância do Conceito na Ciência Política Contemporânea". As alterações do texto, feitas por Florestan Fernandes, não mudam sua natureza inicial. Ela visa analisar a conjuntura latino-americana da década de 1960 e início da década de 1970. 

O argumento central de Florestan no texto é tentar mostrar a atualidade do conceito de fascismo no entendimento da realidade latino-americana. Para ele, o fascismo apesar de perder no campo de batalha, permanece vivo como realidade histórica, ideologia e utopia apresentando-se de forma difusa ou organizada. Ele também identifica uma nova expressão do fascismo que se apresenta através de traços e tendências, mas não de forma pura. Entretanto, aberta ou dissimuladamente, o fascismo segue atuante ao apresentar características como: a) o uso do poder político estatal para impedir uma revolução rumo ao socialismo; b) a tecnocratização e militarização do Estado capitalista; c) braço político armado da burguesia, visando a manutenção do que Florestan chama de sistema mundial de poder burguês. E sobre a utilidade deste conceito na América Latina, afirma o autor: 
Os países da América Latina não são - nem poderiam ser - uma exceção nesse vasto quadro. Nesses países, propensões internas para o autoritarismo e o fascismo foram largamente intensificadas e recicladas pela crescente rigidez política das "democracias ocidentais" diante do socialismo e do comunismo. Como a revolução socialista eclodiu em Cuba, a "ameaça do comunismo" deixou de ser um espectro remoto e nebuloso. Ele se apresenta como uma realidade histórica continental e um desafio político direto (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 34). 

Dito isso, Florestan aponta que o conceito de fascismo sofreu dois impactos negativos. O primeiro é oriundo da tentativa de esconder o uso do termo, reforçando outros como "autoritarismo", "totalitarismo" e "autocracias modernas".  A má aplicação desses conceitos tem um objetivo: esconder o uso do termo por conta de identificações ideológicas e/ou compromissos intelectuais. Assim, regimes nitidamente fascistas são descritos como "autoritários" e que surgiram com a finalidade de impedir um golpe por um movimento totalitário. O fascismo se camufla ou se transforma em uma "ditadura funcional" com feições essencialmente técnicas. Já o segundo impacto é relativo a uma limitação temporal do conceito, focando nas experiências alemãs e italianas, negligenciando outras expressões como as vistas em Portugal e Espanha. A principal consequência dessa negligência é a seguinte: "A consequência disso é que uma forma de fascismo de menor refinamento ideológico, que envolve menor "orquestração de massa" e um aparato de propaganda mais rudimentar, mas que se baseia fundamentalmente na monopolização de classe do poder estatal e em uma modalidade de "totalitarismo de classe" não seja bem conhecido sociologicamente" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 35-36). 

Florestan acredita que o fascismo se apresenta na região de modo complexo. Mas apresenta características gerais no seguinte trecho: "Como tal, ele pressupõe mais uma exacerbação do uso autoritário e totalitário da luta de classes, da opressão social e da repressão política pelo Estado, do que doutrinação de massa e movimento de massa" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 35). Além disso, o fascismo incita a guerra civil (potencial ou real), ao visar impedir tanto a "revolução dentro da ordem" quanto a "revolução contra a ordem existente". O último caso esteve presente nas experiências alemãs e italianas. Em suma, o fascismo se levanta contra qualquer tipo de democratização que vise mudanças estruturais, como também se coloca contrário ao movimento socialista organizado. 

Esse fascismo, presente também na América Latina, não se apresenta para o autor como uma espécie de herança colonial. As manifestações fascistas na região como resultado de um passado colonial, desembocando em conceitos como "sub-fascismo" é fortemente criticada por Florestan que atesta o seguinte: "O fascismo, em si mesmo, é uma força muito moderna e seus objetivos mais recentes estão relacionados com o "desenvolvimento com seguranças", um desdobramento da interferência das potências capitalistas hegemônicas e das empresas multinacionais com vistas a garantir a estabilidade política na periferia" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 36). Esse processo foi intensificado, graças a capitulação das burguesias locais aos interesses do imperialismo, abandonando suas tradições e clássicas bandeiras de um nacionalismo burguês revolucionário. Sendo assim, não se trata de "sub-fascismo", mas de "contrarrevolução organizada política e militarmente" que visam a manutenção do poder das classes possuidoras, anulando todas as tentativas de mudanças estruturais. 

Por conta do baixo nível de autonomia política, torna-se difícil uma delimitação empírica mais exata do fascismo na América Latina. Porém, a ausência de autonomia consegue ser a raiz da difusão de elementos fascistas ou fascistoides na região. Logo, "poder-se-ia afirmar que condições e processos externos à ordem política possuem uma relação funcional e causal com a proliferação tanto de manifestações embrionárias, quanto de variedades "maduras" de fascismo" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 37). Visando uma visão ampla da situação latino-americana, Florestan busca analisar como se desenrola esse processo nos diferentes países da região. Para isso ele toma como base as formações sociais de três países: a) o Haiti, tomado como um país em que ainda busca o desenvolvimento de um Estado-nação; b) o Paraguai, tomado como um país que alcançou uma limitada integração nacional e é regido sob a dominação oligárquica-tradicional; c) o Brasil (e a Argentina), tomado como um país de capitalismo dependente com certo avanço industrial, o que lhe permite inserir-se na economia mundial, apesar da faceta submissa e limitada de sua burguesia. 

No caso haitiano, os interesses, valores e estilos de vida da classe dominante local se reproduzem através de uma orientação particularista e tradicionalista. Por isso, esses setores dominantes entram em oposição à democratização do regime e à participação das massas na vida política. "Em consequência, a persistência do status quo depende de uma forma específica de despotismo, pela qual um caudilho (ou um déspota) se torna instrumental para o controle de estruturas de poder políticas e do governo pelos setores sociais dominantes" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 37). No caso paraguaio, os setores dominantes se organizam através de uma oligarquia tradicional, capaz de reproduzir seus interesses, valores e estilos de vida por intermédio de um controle rígido da política e do governo. Existe uma restrição da participação popular, assim como uma oposição a modelos de democracia mais participativos e ampliados. Por último, o caso brasileiro (e argentino) se apresenta mais diversificado e complexo, pois os setores dominantes são heterogêneos. Mesmo assim, os setores dominantes conseguem, através de uma aliança civil-militar, promover uma política conservadora e reacionária que mantém as bases da hegemonia burguesa. Conclui Florestan: 

Isso quer dizer: controle plutocrático do Estado e do governo, acima ou mediante processos politicamente legítimos, e a preservação do status quo através da violência institucionalizada e organizada (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 38).

Apesar desses três casos apresentarem mudanças e uma dinâmica própria, Florestan afirma que se igualam no tocante ao fundamental, desembocando no mesmo caminho: "a reconfiguração da ordem política para estabelecer novas posições de força, bastante fortes para garantir a continuidade ou o aperfeiçoamento dos privilégios e o controle estável do poder (em todas as suas formas) a partir de cima" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 38-39). E como opera essa reconfiguração? Tomando como base a ordem política, ela opera enfraquecendo essa ordem e desenvolvendo uma concepção totalitária de poder. Sobre o primeiro processo, diz o autor: "Na medida em que a ordem política é enfraquecida, ela não pode gerar as forças políticas requeridas quer pelos usos do poder supostos "normais" na ordem legal existente, quer para ser a fonte de mudanças econômicas, socioculturais e políticas "progressivas"" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 39). 

A ordem política reconfigurada, logo passa a ser mostrada como "democrática", "republicana" e "constitucional", distorção que serve para fortalecer os objetivos totalitários dos setores dominantes que lideram essa reconfiguração. E mais, "Na medida em que o uso estratégico do espaço político é organizado e dirigido conforme uma concepção totalitária da utilização do poder, o Estado e o governo, na prática, são projetados em uma tendência intensa e permanente de fascistização (em todos os níveis das funções e dos processos de decisão em que o Estado e o governo se achem envolvidos)" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 39). Portanto, o totalitarismo de classe presente na América Latina acarreta em um fascismo difuso e fluido que se forma dentro do Estado e do governo, mas que consegue criar estruturas de poder na vida social. 

 Realizada essa análise, o autor adverte: a falta de uma elaboração teórica e de estrutura organizatória não significa ausência de fascismo. Pelo contrário, representa um tipo particular de fascismo que não se mostra como meramente potencial, mas que constitui-se como uma evidência histórico-cultural. Com isso, a fascistização das estruturas de poder e do governo não necessita necessariamente de uma base ideológica consolidada ou de uma estrutura organizatória. No mais, 

O caráter fascista das ações e processos políticos não se funda somente na contradição entre o uso institucionalizado da violência para negar os direitos e garantias sociais estabelecidos e as imposições "universais" da ordem legal; mas na existência de uma ordem constitucional que é menos que simbólica ou ritual, pois só tem validade para a autodefesa, o fortalecimento e a predominância dos "mais iguais" (ou os privilegiados) (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 40).

A fórmula ou conexão política do fascismo é representada pelo autor na junção de três elementos: totalitarismo de classe, a "salvação nacional" (ou "defesa da ordem") mais a "revolução institucional". Essa conexão política, quando articulada, visa o desenvolvimento de uma ação contrarrevolucionária que se coloca contra a democracia, então nominalmente tratada (e camuflada) como contra o comunismo. Sobre a natureza contrarrevolucionária dessa conexão política, diz Florestan: 

Nesse sentido, o elemento essencial das ações e processos políticos parece ser a contrarrevolução, que afirma a totalidade por sua negação, isto é, uma "unidade" e uma "segurança" da Nação que não passam de uma unidade e segurança dos interesses, valores e estilo de vida das classes dominantes, bem como do seu reflexo na concepção totalitária da onipotência de tais classes (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 40-41).

Em uma situação limite, de crise ou forte tensão social, as grandes famílias, as oligarquias e a burguesia impõe sua hegemonia social ao reconfigurar e reverter a normalidade.  No mais, a própria concentração de poder e riqueza, oriunda do totalitarismo de classe, é considerada por Florestan como uma as causas dessa ausência de elaboração ideológica. Em suma, não se faz necessário uma elaboração teórica e ideológica para justificar à posse do Estado pelos setores dominantes, pois  dentro desse totalitarismo de classe, tais setores já detém de modo direto e permanente "a violência institucional objetivada, legitimada e monopolizada". A frágil ordem civil, presente nesses países, facilita a fascistização do Estado e de suas funções essenciais e estratégicas. Diante disso, "A constituição e os códigos se mantêm, porém eles só permanecem funcionais para aquelas minorias". E caso seja imperativo mudanças, elas são realizadas com base em algum modelo de "democracia autoritária", "corporativista" ou "nacional". E continua: 

Em todos os três países (ou quatro, incluindo-se a Argentina), a persuasão direta, a violência organizada e institucional, o terror ocasional ou sistemático são aplicados através de vários meios. O controle da comunicação de massa, eleições rituais, parlamentos simbólicos, opressão e neutralização da oposição, extinção dos dissidentes etc. constituem uma rotina supervisionada pelo aparato repressivo do Estado. Também o controle central da economia, da educação, do movimento operário e dos sindicatos, das greves operárias e estudantis, da desobediência civil etc., com aplicação calculada da polícia, das forças armadas e do aparelho jurídico, são feitos nos limites necessários - e, com notável flexibilidade - com vistas à reprodução das orientações totalitárias das classes dominantes e à capitulação ou à submissão dos opositores renitentes às imposições fascistas do governo (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 42).

Diante desse cenário, supõe-se uma separação entre Estado e sociedade, mas na prática essa distinção não fica muito clara. E se em países latino-americanos a alternativa é o despotismo pessoal, em outros como o Brasil o caminho visto é uma dominação com bases plutocráticas. Diferente do despotismo pessoal e da dominação oligárquica tradicional, onde o primeiro é baseado em um terror constante e o segundo consegue atingir seus objetivos através de uma ditadura militar simples, a articulação do totalitarismo de classe com a plutocracia moderna se mostra mais complexa sendo preciso "um alto nível não só de militarização, mas também de tecnocratização das estruturas do Estado". Em suma, "Não importa quem seja o "presidente" - um civil, como no Equador; ou um militar, como no Brasil e na Argentina -, o essencial é como controlar uma "sociedade de massas" (seria melhor dizer: uma sociedade de classes em expansão e muito desequilibrada) relativamente diferenciada e politicizada" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 43).

Após debater o que chamou de "natureza empírica" do fascismo na América Latina, Florestan se debruça sobre questões referentes ao passado e que merecem atenção. Três pontos são apontados pelo autor: a) os traços e tendências pré-fascistas presentes no totalitarismo de classe; b) a manifestação de movimentos fascistas inspirados no modelo europeu e seu fracasso no continente; c) as potencialidades fascistas da demagogia, do populismo e do sistema de partido único. Outro ponto destacado é a interferência estrangeira no desenvolvimento do fascismo na região, principalmente o papel exercido pela principal potência capitalista: os Estados Unidos. E ele começa, justamente, debatendo o ponto sobre a interferência estrangeira e sua ligação com o fascismo. 

O despotismo e a oligarquia são caminhos mais acessíveis à manipulação externa. Seja através de uma ditadura pessoal ou de uma democracia restrita, déspotas e oligarcas conseguem desenvolver uma estabilidade econômica, social e política acionando para isso um contínuo poder arbitrário que mobiliza recursos militares, "legais" e políticos com o intuito de impedir mudanças estruturais que levem a novos regimes políticos. Dessa forma, ambos conseguem "atender aos interesses estrangeiros sem precisarem recorrer a uma extrema rigidez política ou à fascistização saliente de certas estruturas e funções do Estado" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 44). Estava mantido os interesses estrangeiros na América Latina. Mas essa situação se modifica a partir da década de 1930, como bem pontua o autor: 

Por isso, a influência externa só se torna intrínseca e crescentemente fascistoide e fascista por volta dos anos 1930 e depois, época em que aqueles regimes políticos começaram a falhar seja na preservação e na reprodução do status quo, seja na seleção e no controle indireto da mudança política, seja no fornecimento do "volume de segurança" exigido pelos parceiros externos e pela dominação imperialista (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 45). 

No caso dos países com um certo desenvolvimento capitalista, caso do Brasil e da Argentina, descobriu-se que suas burguesias nacionais eram limitadas e estavam impotentes frente a situação. Isso acabou gerando crises nesses países. Apesar de reconhecer que a interferência externa mudou de país para país, tendo maior ou menos intensidade, Florestan afirma que "a presença estrangeira foi física, volumosa e direta: pessoas e grupos de pessoas ativas, em todos os planos da vida econômica, social, cultural e política, com papéis complexos nos processos vitais de tomada de decisões na organização da hegemonia burguesa e na própria atuação do Estado" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 45). Como consequência, tivemos uma transferência para fora das decisões dos centros de poder. Ainda sobre as consequências e resultados desse processo, pontua o autor: 

Dessa perspectiva, o desenvolvimento capitalista associado e dependente criou o seu próprio padrão de articulação política aos níveis continental e mundial: a capacidade adquirida pela dominação externa imperialista de deprimir e distorcer a ordem política tornou-se única, permitindo às nações capitalistas hegemônicas  à sua superpotência, graças a e através de vários tipos de instituições (além da diplomacia), maximizar interesses econômicos ou objetivos políticos e militares, bem como controlar à distância um amplo processo de modernização acelerada (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 46).

Esse desenvolvimento capitalista dependente e associado no contexto em análise, gerou: a) uma inclinação desses setores estrangeiros à direita e a contrarrevolução, potencializada em momentos de crise; b) intensificação dessa lógica no contexto da Guerra Fria. O objetivo, em suma, seria impedir que essa modernização acelerada não permitisse espaço para a atuação de grupos nacionalistas revolucionários e do movimento comunista. O objetivo era impedir o surgimento de "novas Cubas", mas na verdade junto a isso tornar a periferia um espaço seguro e estável para o capitalismo monopolista, a dominação burguesa e o poder político burguês. Diante disso: 

A confluência desses processos imprimia às burguesias dependentes e impotentes da América Latina um papel ativo e considerável na contrarrevolução capitalista e no "cerco ao comunismo", ambos de âmbito mundial, e acarretava, como contrapartida, uma clara intensificação das tendências à fascistização do Estado, apoiadas em assessoria policial-militar e política, em recursos materiais e humanos e em estratégias vindas de fora (como parte da "modernização global") (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 47).

E esse processo em Florestan era visto como contínuo, estrutural e decorrente da relação centro/periferia: "Tudo isso indica que esse "curso negro da história" não é de curta duração. Ele se vincula a um padrão de articulação política necessária entre o centro e a periferia do mundo capitalista" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 47). 

Encerrando à discussão sobre a interferência estrangeiro e seu papel no desenvolvimento fascista, Florestan passa a discutir as tendências pré-fascistas do totalitarismo de classe. Baseando no conceito de ética dupla em Max Weber, sociólogo alemão, ele afirma que as classes dominantes locais tiraram bom proveito da dualidade "tradicional" e "racional" no curso da dominação autocrática que impuseram. Por conta disso, ele admite a existência de um grande potencial fascista na região. Quando o fascismo surge no curso histórico, ele encontra na América Latina um conjunto de costumes e leis, inseridos dentro da ordem constitucional, que o reforçam. Segundo o autor, "Esse quase-fascismo se ocultava por trás da monopolização do poder (em geral) e da monopolização do poder político estatal (em particular), pelas minorias possuidoras, privilegiadas e dirigentes" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 47). A centralização das tomadas de decisões, o fortalecimento do Poder Executivo e a vigência de uma "ditadura legal", acabaram proporcionando "uma enorme facilidade de usar o aparato normal da democracia burguesa como se ele fosse um Estado de exceção ou de passar-se rapidamente, através de "leis de emergência", para o estado de sítio, a ditadura redentora e o Estado de exceção caracterizado como tal" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 48). 

Diante da existência desse pré-fascismo na América Latina, o autor afirma que ele só se tornaria uma força política efetiva quando as polarizações engendradas não conseguiam  se resolver através de um "acordo de cavalheiros" ou "civilizadamente", ou seja, "dentro da ordem". Já sobre a erupção de movimentos fascistas na região, eles se vinculam ao desenvolvimento desse fenômeno na Europa. O fascismo europeu exerceu forte influência sobre os setores ultra-direitistas latino-americanas. E esses movimentos se apresentaram como nacionalistas revolucionários de direita, como foi o caso boliviano, ou "como se sucedeu na Argentina e no Brasil, penetraram a fundo a atuação de líderes demagógicos, deram origem a falsos pactos sociais de "grupos progressistas" da burguesia com as massas populares e serviram para produzir seja a domesticação dos sindicatos e a deturpação do movimento sindical, seja a fragmentação política da classe operária" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 49). Porém, o fascismo precisava competir com o totalitarismo de classe que se apresentava como um concorrente mais rudimentar porém eficaz. Sobre a preferência das classes dominantes locais ao totalitarismo de classe, diz Florestan: 

O próprio presidencialismo e a forma tradicional de ditadura simples continham um potencial de fascistização limitada da "ação do governo" na defesa da ordem existente tido como suficiente pelas classes privilegiadas e suas elites econômicas ou políticas. O principal vinha a ser manter os pobres e as "pressões de baixo para cima" sufocadas, inertes, impotentes. A doutrinação ideológica e a mobilização de massas de um movimento fascista real poderia quebrar essa acomodação tão cultivada (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 50).

Como aponta o autor, o pseudossocialismo e o pseudossindicalismo dos movimentos fascistas, poderiam incendiar a região e o nacionalismo incutido converter-se em fator revolucionário. Essa neutralização dos fascistas, acarretou o seguinte ganho para as classes dominantes locais: "Todas essas ressalvas não escondem um ganho líquido dos setores mais conservadores e reacionários das classes dominantes. Foi graças aos movimentos fascistas que falharam e foram absorvidos ou superados que se deu a socialização política de várias figuras e grupos "inquietos", "radicais" ou "rebeldes". No presente, essas figuras e grupos voltam à cena política, preparados para guiar a guinada contrarrevolucionária da burguesia" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 50). Além do mais, esses movimentos conseguiram deixar um legado aproveitável para esses setores dominantes, como mostra o caso brasileiro em que os sindicatos se desenvolveram sob tutela do governo, mantendo intactos os interesses empresariais e a paz social que a burguesia anseia na manutenção de seus privilégios. 

Adiante Florestan discute as potencialidades fascistas da demagogia, do populismo e do sistema de partido único. Ao tratar desses conceitos, ele critica uma perspectiva liberal e elitista que enxerga esses conceitos de forma negativa, afirmando que todos contém uma natureza ou inclinação fascista. Se opondo a essa perspectiva, ele aponta que em certos existe uma ligação desses conceitos com o pré-fascismo analisado acima, porém, deixa claro que a demagogia, o populismo e o sistema de partido único pode desempenhar outro papel na cena histórica como: 

1º) canalizando ou tentando criar condições favoráveis a uma "revolução dentro da ordem"; 2º) convertendo-se em uma fonte de mobilização social e semipolítica dos pobres, das massas destituídas de garantias civis e políticas, dos setores rebeldes das classes baixas, médias e altas (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 51).

E isso ocorre porque as massas populares, tendo que enfrentar a ausência de um espaço político para ser utilizado contra a ordem, acabam formando atuações alternativas. Logo, inexiste uma situação objetiva favorável a uma revolução democrática, qualquer que seja o seu teor e sua mera tentativa de realização significa para os setores dominantes uma ameaça real. Com a formação do que Florestan chamou de tripé (burguesia nacional, Estado e multinacionais), se procurou eliminar toda demagogia, populismo e sistema de partido único; passando a focar exclusivamente numa "aceleração do desenvolvimento" com "estabilidade política". Sendo assim, "Tudo isso sublinha que algumas manifestações populares, radicais e de integração nacional são incômodas em si mesmas, independentemente da vinculação ocasional de certas tendências ou dados movimentos com traços ou propensões fascistas" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 52). Essa oposição a qualquer tipo de manifestação popular, radical e de integração nacional impede a construção de uma revolução democrática na América Latina, tendo como função política a contrarrevolução por qualquer meio possível. 

Essa fascistização sem fascismo torna-se perigosa para Florestan, não simplesmente por sua natureza ambígua e dissimulada, "Mas porque esse fascismo oculto e mascarado fomenta a guerra civil a frio e é capaz de passar do Estado de exceção para  a "normalidade constitucional" sem permitir que se destrua o elemento autocrático que converte o Estado no bastião da contrarrevolução" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 52). Enfim, 

Ele não só bloqueia a "transformação democrática da ordem". Ele impede a revolução democrática, prendendo a história da América Latina a um passado que deveria estar morto e que foi ressuscitado pelas forças da modernização dependente e controlada à distância (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 52).

Analisado os três pontos mencionados no início do texto, Florestan parte para às reflexões finais. De imediato, ele trata o fascismo como um fenômeno vivo e não extinto. E acrescenta: "Uma extrema racionalização conduziu-o a uma metamorfose: hoje, ele é parte das tecnoestruturas civis e militares da sociedade capitalista" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 53). Seu caráter instrumental permanece, defendendo a manutenção e estabilidade do sistema capitalista. Pensando na realidade latino-americana, ele aponta que as crises políticas que levam ao desenvolvimento do fascismo, são crises estruturais. Logo, "na medida em que os setores sociais dominantes se mostrarem capazes de preservar o monopólio social do poder e do poder político estatal, o totalitarismo de classe (com suas implicações políticas) continuará a ser um processo histórico-social repetitivo" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 53). Além disso, "onde quer que o estágio da revolução industrial seja atingido como uma modernização e uma transição controlada de fora (isto é, sob o capitalismo associado e dependente), a militarização e a tecnocratização das estruturas e funções do Estado terão de crescer e, com elas, surgirão novas tendências de fascistização generalizada" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 53).

Como força política que reage contra a democratização e a revolução socialista - ainda considerada como um fantasma de "novas Cubas" - o fascismo permanece vivo e com possibilidades, segundo Florestan, de ressurgir mais ostensivo e agressivo "com uma nova reelaboração do elemento ideológico ou organizatório e da manipulação das massas" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 54). Diante dessas questões, afirma o autor: 

O fascismo central e específico apareceria modificado pelas novas potencialidades da terceira revolução tecnológica. Ele seria muito mais perigoso e destrutivo. E o único caminho para salvar-se a autêntica revolução democrática seria o oferecido pelo socialismo puro e convicto - o socialismo que pretende eliminar o Estado através da democracia de toda a população para toda a população (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 55).

Em suma, o fascismo é considerado por Florestan um conceito atual e valioso para o entendimento da América Latina contemporânea. Seu estudo é relevante para as Ciências Sociais, porque permite o entendimento de um tipo de fascismo negligenciado. Ele também é importante, pois qualifica as forças políticas que operam a favor ou contra a "integração nacional", a "revolução nacional", a "democracia" e o "socialismo". Assim, "Ele é estimulante para a análise prospectiva, pois permite situar a provável atividade de fatores e forças que estão por trás da luta que se trava em nossos dias pelo controle do futuro dos países latino-americanos" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 55). Entretanto, Florestan adverte que a história está sempre em movimento e transformação, com isso, corre-se o risco de combater uma forma de fascismo enquanto outra pior se desenvolve. Isso torna o conceito não só importante para cientistas sociais, como também para todos os seres humanos "que estão engajados no combate sem tréguas pela supressão das realidades conceituadas como fascismo, em suas modalidades do passado, do presente e possivelmente do futuro" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 55). 

Florestan assim situa as bases de uma dualidade: socialismo ou fascismo, já que nesta luta "Trata-se de saber se o homem será senhor ou escravo da civilização industrial moderna, com todas as perspectivas que ela abre ou para a destruição da humanidade ou para a igualdade e a fraternidade entre todos os seres humanos" (FERNANDES, Florestan. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 55).