sábado, 20 de junho de 2020

O Capital I: crítica da economia política


  • Sobre o autor: Karl Marx foi um filósofo, economista e historiador nascido em 1818 na antiga Prússia. Faleceu em 1883 aos 64 anos de idade. A obra de Marx exerceu forte influência sobre acontecimentos políticos do Século XX, como: a Revolução Russa de 1917, a Revolução Chinesa de 1949, a Guerra Fria etc. Além desses acontecimentos, Marx influenciou uma geração de intelectuais como Sartre, Althusser, Florestan, Mariátegui entre outros. Suas reflexões abarcam diversas áreas do conhecimento como a Economia, a Sociologia, a História e a Filosofia. Junto com Friedrich Engels, buscou entender os mecanismos da sociedade capitalista, propondo o Socialismo como alternativa para esse sistema, visto por ele como fracassado. Entre suas principais obras, temos: a) O Manifesto do Partido Comunista; b) A Ideologia Alemã; c) O 18 Brumário de Luís Bonaparte. 



O Capital I: crítica da economia política - Karl Marx - Editora Boitempo


Seção VII - O processo de acumulação do capital

Capítulo 24 - A assim chamada acumulação primitiva: I. O segredo da acumulação primitiva; II. Expropriação da terra pertencente à população rural; III. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final do século XVI. Leis para a compreensão dos salários; IV. Gênese dos arrentários capitalistas; V. Efeito retroativo da revolução agrícola sobre a indústria. Criação do mercado interno para o capital industrial; VI. Gênese do capitalista industrial; VII. Tendência histórica da acumulação capitalista.

I. O segredo da acumulação primitiva - Karl Marx visa debater neste capítulo o que ele chama de "acumulação primitiva do capital", ou seja, as origens econômicas/sociais/políticas do sistema capitalista. O capitalismo não surgiu do nada e para que se desenvolvesse, foi necessário um complexo processo histórico que ele visa analisar. Essa acumulação não foi feita sob o modo de produção capitalista, mas serviu para dar base e impulso a este modo de produção. Segundo Marx, "Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 785).

Para a economia política, que Marx busca criticar em toda a obra, existia uma elite laboriosa de um lado e uma massa de vagabundos do outro. Os primeiros tornaram-se bem sucedidos, enquanto que para a massa vadia só restou à venda da sua força de trabalho. Basicamente essa seria a razão para a existência da desigualdade social, onde uma grande massa é jogada na pobreza e ao mesmo tempo uma riqueza passa a se concentrar nas mãos de poucos. Diferente da economia política que coloca no trabalho a causa para uns terem riqueza e outros não; Marx chama a atenção para o que ele próprio denomina de "história real". Nesta história real, a riqueza concentrada nas mãos de poucos não é fruto de uma elite que trabalhou duro, mas sim de um processo histórico marcado pela subjugação, roubo, assassinato, em suma, pela forte presença da violência. 

No começo deste processo, o capital encontrava-se insuficiente para o desenvolvimento do capitalismo. Os meios de produção e de subsistência existentes, precisavam ser transformados em produtores de capital, gerando sua multiplicação. Porém, para que tal multiplicação ocorresse se fazia necessário a construção de condições apropriadas. E quais seriam essas condições? Para Marx a divisão da sociedade entre possuidores de mercadoria, dinheiro, meios de produção e de subsistência; e trabalhadores livres que, sem propriedades, só têm à venda da sua força de trabalho como garantia de sobrevivência. 

Logo, a principal condição para o desenvolvimento do capitalismo é a divisão social entre proprietários e não proprietários dos meios de produção. Dada essa condição, o capitalismo começa a se desenvolver e seu desenvolvimento tende a aumentar tal lógica. Com isso, diz Marx:
A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como "primitiva" porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 786).
A divisão social entre proprietário e não proprietário só foi possível após a dissolução da sociedade feudal e é das ruínas desta última que surge o sistema capitalista. Apenas quando o trabalhador abandonasse a condição de servo é que se teria as condições apropriadas para o desenvolvimento do trabalho assalariado e livre; então bases do capitalismo enquanto novo de produção. Continua Marx: 
Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é o único aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 787).
Os futuros capitalistas industriais também tiveram que travar uma forte luta contra os senhores feudais e mestres-artesãos reunidos em suas corporações. Sua luta é travada contra os revoltantes privilégios das classes que dominaram o feudalismo, sendo necessário superá-las para que o capitalismo tivesse terreno fértil para seu desenvolvimento. Embora, segundo Marx, já existam características do sistema capitalista nos séculos XIV e XV, é apenas no século XVI que o capitalismo ganha impulso. Encerrando esta primeira parte do capítulo, conclui o autor: 
Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 787). 
Marx afirma que o processo de acumulação primitiva terá particularidades em cada país, apenas na Inglaterra o caso é visto em sua forma clássica e é por isso que o restante do capítulo se baseará sobre o exemplo inglês.  

II. Expropriação da terra pertencente à população rural - Segundo Marx, a servidão na Inglaterra teria tido seu fim na segunda metade do século XIV. É por isso que no século XV, a maioria da população inglesa é composta por camponeses livres e autônomos. Sobre a grande presença desses camponeses, diz Marx na nota 190: 
Os pequenos proprietários, que cultivavam suas próprias terras  com as próprias mãos e desfrutavam de um modesto bem-estar [...] constituíam então uma parte muito mais importante da nação do que em nossos dias [...]. Não menos que 160 mil proprietários, que, com suas famílias, deviam constituir mais de 1/7 da população total, viviam do cultivo de suas pequenas parcelas freehold" (freehold significa propriedade plenamente livre). "O rendimento médio desses pequenos proprietários fundiários [...] é avaliado entre £60 e £70. Calculou-se que o número daqueles que cultivavam sua própria terra era maior que o dos arrendatários que trabalhavam terras alheias", Macaulay, Hist. of England (10. ed., Londres, 1854), v. I, p. 333-4. Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da população inglesa era formada de agricultores (ibidem, p. 413). - Cito Macaulay porque, como falsificador sistemático da história, ele "poda" tais fatos o máximo que consegue (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 788).
Os arrendatários estavam presente em pequeno número e limitados a grandes domínios senhoriais. Mas quem seriam esses arrendatários? Esses arrendatários, seriam camponeses assalariados que só viriam a aumentar durante o desenvolvimento do processo de acumulação primitiva. Porém, naquela conjuntura dos séculos XIV e XV, "Os assalariados agrícolas consistiam, em parte, em camponeses que empregavam seu tempo livre trabalhando para os grandes proprietários, em parte, numa classe de trabalhadores assalariados propriamente ditos, classe essa independente e pouco numerosa, tanto em termos relativos como absolutos" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 789). 

A existência desse alto número de pequenas propriedades, era herança do período feudal em que o senhor feudal mais poderoso era aquele que conseguia reunir o maior número de vassalos. Logo, seu poder não está na extensão de suas terras mas na sua capacidade de ter servos para lhe servir e proteger. Essas propriedades começam a ruir na Inglaterra a partir do século XV, ganhando forte impulso no século XVI; período que Marx considera como o prelúdio da revolução que criou as bases do modo de produção capitalista. Tal processo consistiu na dissolução dos séquitos feudais, ou seja, a destruição da pequena propriedade e o avanço da grande propriedade,/ formando uma massa de proletários livres e sem propriedade. Marx acredita que o poder real, leia-se a constituição das grandes monarquias nacionais e sua expressão na Inglaterra, embora tenha contribuído para o processo, não foi o único responsável pela sua gestação. 

Além do poder real, Marx chama a atenção o nascimento da manufatura holandesa de lã e o consequente aumento do preço do produto. Os ingleses começaram a achar necessário produzir lã, evitando pagar caro pelo produto aos holandeses. É daí que surge a necessidade de transformar as lavouras em pastagens de ovelhas, demolindo a pequena propriedade rural e destruindo as habitações dos camponeses que ali habitavam e trabalhavam. O relato de Harrison, citado por Marx, diz o seguinte: "Eu teria algo a contar sobre cidades e aldeias que foram destruídas para ceder lugar a pastagens de ovelhas e onde só restaram as casas dos antigos senhores" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 790). Sem qualquer fase de transição, diz Marx, a classe trabalhadora inglesa saia da idade de ouro diretamente para a idade de ferro. Ou seja, ocorreu uma regressão das suas condições de trabalho e de subsistência. 

Mas o processo foi muito contestado na época, fato que Marx chama a atenção citando o filósofo Bacon que escreve sobre o contexto. A transformação das lavouras em pastagens sofreu críticas, pois empobreceu o povo e em consequência interferiu negativamente nas cidades, igrejas, dízimos etc. Por isso que, após iniciado o processo, o poder real busca limitá-lo por lei estabelecendo limites como a lei de Henrique VII, de 1489, que proibia a demolição de casas de camponeses que tivessem pelo menos 20 acres de terra. Entretanto, Marx afirma que tais medidas foram um fracasso porque, apesar de impedir o avanço do processo em curso, conservava o arado nas mãos dos proprietários e não dos trabalhadores. 

Em nota (193a), Marx explica o porquê Bacon defendeu o não avanço deste processo. Segundo o filósofo inglês, a desapropriação do campesinato traria como consequência uma infantaria de má qualidade, prejudicando o país em tempos de guerra. Pensando exclusivamente sob uma perspectiva militar, Bacon atesta: "Portanto, se um Estado se distingue na maior parte dos casos por seus nobres e gentlemen, ao passo que os camponeses e lavradores se mantém reduzidos a mera mão de obra ou a servos dos primeiros, ou mesmo inquilinos de casebres, que não são mais do que mendigos albergados, esse Estado poderá dispor de uma boa cavalaria, mas jamais terá tropas de infantaria boas e estáveis" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 792).

Todavia, o processo em curso pretendia o contrário. Ou seja, pretendia uma posição servil das massas populares, transformando os meios de trabalho deste camponês em capital. Acontecimentos históricos viriam contribuir para o avanço da grande propriedade rural em oposição as antigas relações feudais. O primeiro acontecimento citado é a Reforma Protestante, ocorrida no século XVI. Sobre o papel da Reforma, Marx diz: 
Na época da Reforma, a Igreja católica era a proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos monastérios etc. lançou seus moradores no proletariado. Os próprios  bens eclesiásticos foram, em grande parte, presenteados aos rapaces favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a especuladores, sejam arrendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa os antigos vassalos hereditários e açambarcaram suas propriedades (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 793).  
Desapropriada as terras da Igreja Católica, representante religioso do sistema feudal, tínhamos o fim de um dos principais alicerces as antigas relações de propriedade da terra. O caminho estava aberto para o desenvolvimento das relações capitalistas que ganhou outro grande motor: a Revolução Gloriosa que conduziu ao poder Guilherme III de Orange. Junto com ele, Guilherme III levou o poder político na Inglaterra os capitalistas e grandes proprietários fundiários. Ou seja, os extratores de mais-valor agora tinham controle total sobre o Estado inglês. As consequências da Revolução Gloriosa foram importantíssimas para o desenvolvimento do modo de produção capitalista na Inglaterra, pois: 
Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privados. Tudo isso ocorreu sem a mínima observância da etiqueta legal. O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento, somado ao roubo das terras da Igreja - quando estas já não haviam sido tomadas durante a revolução republicana -, constituem a base dos atuais domínios principescos da oligarquia inglesa (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 796).
A partir desse roubo em série, os capitalistas transformaram a terra em artigo comercial, ampliaram a grande exploração agrícola e aumentaram a oferta de proletários livres (e sem propriedade), oriundos do campo. Com isso, a Inglaterra passava a ser palco da aliança entre aristocracia fundiária, grandes manufatureiros e banqueiros. Outro importante impulsionador deste processo de expropriação, foi a sua institucionalização através da chamada lei de cercamento. Sob o controle dos novos capitalistas, o Estado passava a legalizar o roubo de terras em prol dos grandes proprietários rurais. Tal lei foi o tiro fatal na propriedade comunal que marcou o feudalismo na Europa. Sobre o papel da lei do cercamento, Marx tece o seguinte comentário: 
A propriedade comunal - absolutamente distinta da propriedade estatal anteriormente considerada - era uma antiga instituição germânica, que subsistiu sob o manto do feudalismo. Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI. Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a das "Bill for Inclosures of Commons" (leis para o cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do povo, isto é, decretos mediante os quais os proprietários fundiários presenteiam a si mesmos, como propriedade privada, com as terras do povo  (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 796).
A lei de cercamento contribui ainda mais para a proletarização do camponês, aumentando o êxodo rural e também os grandes arrendamentos rurais que transformam a terra em "fazendas de capital" e/ou "arrendamentos de mercador". Em uma descrição do contexto da época, Marx cita um trecho que contém a seguinte passagem: "Não é nada incomum ver 4 ou 5 ricos pecuaristas usurparem senhorios recém-cercados, que antes encontravam-se em mãos de 20 a 30 arrendatários e outros tantos pequenos proprietários e camponeses. Estes últimos e suas famílias foram expulsos de suas propriedades juntamente com muitas outras famílias, que eram por eles ocupadas e mantidas" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 797). Em outra citação, Marx resume as consequências do avanço da grande propriedade da seguinte forma: "Em termos gerais, a situação das classes inferiores do povo tem piorado em quase todos os sentidos; os pequenos proprietários fundiários e arrendatários foram rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores mercenários, ao mesmo tempo que se tornou cada vez mais difícil a vida nessa condição" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 798).  Entre os anos de 1765 a 1780, Marx relata uma brusca redução nos salários dos trabalhadores agrícolas que passam a ganhar abaixo do mínimo. 

Também é visto no texto a citação de defensores dos Inclosures como John Arbuthot que defende o aumento das grandes propriedades e das grandes manufaturas como uma vantagem para a nação. O aumento quantitativo do número de manufaturas, traria como consequência uma produção excedente que significaria riqueza e abundância. A manufatura em Arbuthot é considerada uma "mina de ouro" da nação inglesa. E é com base nesta linha de raciocínio que vários economistas políticos, criticados por Marx em todo o conjunto da obra, se baseiam para defender o "sagrado direito de propriedade" mesmo que signifique pilhagem, opressão e roubo em séries. 

Os roubos praticados na formação do modo de produção capitalista, foram completamente esquecidos no século XIX e por isso nenhum tipo de indenização foi paga aos trabalhadores rurais que viram suas terras surrupiadas pelos grandes proprietários e capitalistas. O questionamento da ausência desta indenização é feito por Marx de forma irônica. Por fim, "O último grande processo de expropriação que privou os lavradores da terra foi a assim chamada clearing of estates (clareamento das propriedades rurais, o que significa, na verdade, varrê-las e seres humanos). Todos os métodos ingleses até agora observados culminaram no "clareamento"" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 800). Um exemplo desse clareamento foi o realizado pela duquesa de Sutherland. 

A duquesa Sutherland, detentora de matérias econômicas, decidiu transformar um condado inteiro em pastagem de ovelhas. Esse condado, que na época abrigava um total de 15 mil pessoas com cerca de 3 mil famílias, já havia sido duramente reduzido numericamente falando por conta do avanço da grande propriedade. Porém, a duquesa queria mais e resolveu expulsar e exterminar os moradores do condado. Os responsáveis pela repressão foram os soldados britânicos, então a serviço da grande propriedade. Os que restaram do massacre, foram morar em uma orla marítima concedida pela duquesa que agora herdara uma região com um total de 794 mil acres. A orla marítima somava míseros 6 mil acres, resultando em cerca de 2 mi acres de terra por família. E ainda tiveram que pagar para ocuparem o local.  As terras roubadas foram divididas em 29 grandes arrendamentos e 15 mil gaélicos foram transformados em 131 mil ovelhas. 

Mas o sofrimento desses gaélicos não pararam por aí. A orla marítima despertou interesse de grandes comerciantes de peixes e os gaélicos foram novamente expulsos por esses que Marx chama ironicamente de "grandes homens". Marx encerra mostrando que parte da terra roubada ainda virou reserva de caça para divertimento de aristocratas, fazendo com que veados (e anteriormente ovelhas) tivessem mais espaços que seres humanos. Tanto a pastagem de ovelhas quanto à caça aos veados, tinham um olho no lucro e por isso atendiam as condições impostas por esse novo modo de produção. E assim ele resume o processo que levou ao surgimento e desenvolvimento da grande propriedade rural inglesa: 
O roubo os bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo e a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 804).
III. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final do século XV. Leis para a compressão dos salários - A expropriação foi seguida pela criação de uma legislação sanguinária que a partir do século XV, alcançando seu auge no século XVI, reprimiu duramente os expropriados que agora tornavam-se proletários livres. A manufatura não conseguia abarcar toda a oferta de mão de obra disponível e, junto a isso, essa massa de ex-camponeses se encontravam distantes de suas terras de origem e completamente desorientados nesta nova conjuntura. Foi assim que se desenvolveu na Europa uma imensa massa de vagabundos que não conseguiram se inserir no novo modo de produção que nascia. Tratados como verdadeiros delinquentes, foram punidos de diferentes formas e por diferentes monarcas. 

Na Inglaterra a criminalização desses vagabundos tem início com o Henrique VIII, em 1530. Durante seu reinado foi estabelecido uma licença para que mendigos velhos tivessem o direito de mendigar, enquanto que os mais novos eram presos e castigados fisicamente. Primeiro eram advertidos para irem à sua terra natal em busca de trabalho. Na segunda abordagem, eram castigados com a amputação de sua orelha e, em nova reincidência, eram sumariamente executados. Com pequenas mudanças nas leis repressivas, a criminalização dos vagabundos foi seguida pelos reinados de: Eduardo VI, Elizabeth, Jaime I e só foram revogadas por Ana já no século XVIII. Com isso, após serem expropriados de suas terras de origem esses trabalhadores jogados à sorte, ainda tiveram que encarar uma legislação terrorista que punia severamente aqueles que não conseguissem se inserir nas novas relações de produção. Conclui Marx: 
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 808).
E continua: 
A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 809).
Com o capitalismo plenamente desenvolvido, as chamadas "leis naturais da produção" guiam o proletariado na sua submissão ao capital; dependência que tem origem nas condições de produção do capitalismo e que é por ele perpetuado. É por isso que Marx afirma que o uso extraeconômico, apesar de necessário, só é utilizado quando for conveniente. Até chegar a esse limite, os trabalhadores são movidos por outras forças que o fazem naturalizar o processo e seguir o movimentando. Mas, segundo o autor, essa situação não era à vista no começo do desenvolvimento capitalista. Aqui a burguesia não só se utilizava das leis repressivas mencionadas acima, como também usava o Estado para comprimir salários que lhes garantissem a manutenção de mais-valor. 

As leis trabalhistas, iniciadas em 1349 sob o reinado de Eduardo III, também contribuíram para uma maior extração de mais-valor; beneficiando a acumulação primitiva do capital. Entre essas medidas trabalhistas em prol da acumulação, Marx cita a seguinte: "Uma tarifa legal dos salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o trabalho por peça e por dia. Os trabalhadores rurais deviam ser contratados por ano, e os da cidade, "no mercado aberto". Proibia-se, sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que o determinado por lei, mas quem recebia um salário mais alto era punido mais severamente do quem quem o pagava" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 810). 

Além do mais, tais leis trabalhistas impediam à organização dos trabalhadores em coalizão, o que facilitava a introdução da desvalorização dos salários sem qualquer tipo de contestação. Porém, apesar de estabelecido do capitalismo, os capitalistas permaneceram se beneficiando destas leis até o limite. E, na Inglaterra, esse limite chegou no ano de 1813. O parlamento inglês só viria a aceitar o direito à greve e a união dos trabalhadores em coalizão, depois de um longo processo histórico que envolveu muita luta por parte da classe trabalhadora inglesa. Por fim, Marx encerra essa terceira parte do capítulo mencionando o caso francês. 

A França se assemelhava à Inglaterra quando o assunto era lei trabalhista. Mesmo após a Revolução Francesa, tal legislação permaneceu limitando à organização dos trabalhadores, visto como uma ameaça à Declaração dos Direitos Humanos. Marx cita em nota (225), o decreto de junho de 1791 que afirmava o seguinte sobre à organização dos trabalhadores franceses: 
O artigo IV reza que, no caso de cidadãos pertencentes às mesmas profissões, artes ou ofícios tomarem deliberações ou realizarem convenções com o objetivo de recusar um acordo ou de não consentirem no socorro de sua indústria ou de seus trabalhos a não ser por um preço determinado, tais consultas e acordos [...] serão declarados inconstitucionais e como atentados à liberdade e à declaração dos direitos do homem etc., ou seja, como crimes de Estado, exatamente como nos velhos estatutos dos trabalhadores (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 812).
IV. Gênese dos arrendatários capitalistas - Analisado o surgimento do proletariado, Marx se debruça pelo surgimento dos capitalistas. Para ele o processo até aqui descrito, facilitou o desenvolvimento do grande proprietário fundiário, mas aqui ele se preocupa em entender o nascimento do capitalista e não desse latifundiário. Mas, afinal, de onde surgiu esse capitalista? Ele responde a essa pergunta no seguinte trecho: 
Na Inglaterra, a primeira forma de arrendatário é a do bailiff, ele mesmo um servo da gleba. Sua posição é análoga a do villicus da Roma Antiga, porém, com um raio de ação mais estreito. Durante a segunda metade do século XIV, ele é substituído por um arrendatário, a quem o landlord provê sementes, gado e instrumentos agrícolas. Sua situação não é muito diferente da do camponês. Ele apenas explora mais trabalho assalariado. Não tarda em se converter em metayer [meeiro], meio arrendatário. Ele investe uma parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos repartem entre si o produto global em proporção determinada por contrato. Essa forma desaparece rapidamente na Inglaterra e dá lugar ao arrendatário propriamente dito, que valoriza seu capital próprio por meio do emprego de trabalhadores assalariados e paga ao landlord, como renda da terra, uma parte do mais-produto, em dinheiro ou in natura (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 814).
É esse arrendatário que se torna o capitalista e ele se beneficia com o que Marx chama de "revolução agrícola" que iniciou no século XV e se intensificou durante todo o XVI. A riqueza deste arrendatário capitalista só foi possível, graças a um processo que empobreceu a população rural; então mergulhada na propriedade comunal. Segundo Marx, "A usurpação das pastagens comunais etc. permite-lhe aumentar, quase sem custos, o número de suas cabeças de gado, ao mesmo tempo que o gado lhe fornece uma maior quantidade de abudo para o cultivo do solo" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 814). Mas não foi apenas a usurpação do solo que enriqueceu o arrendatário capitalista. Segundo Marx, a essa expropriação se soma acontecimentos outros vistos no século XVI. Primeiro ponto é que o contrato entre o grande proprietário de terra e esse arrendatário era de longo prazo, frequentemente por 99 anos. Essa longevidade do contrato beneficiou o arrendatário capitalista, porque o século XVI foi palco da queda no valor dos metais nobres que, consequentemente, afetou na desvalorização do dinheiro. Essa desvalorização do dinheiro, ocasionou uma consequente baixa dos salários que ajudou o arrendatário a contrair mais-valor. Por seu turno, o aumento de produtos agrícolas (como o cereal, a lã, a carne etc) rendeu um bom dinheiro a esses arrendatários. 

Arrecadando muito e pagando baixos salários, o arrendatário capitalista ainda teve como benefício os caducos contratos feitos com os landlord, que estavam com valores monetários ultrapassados. Assim, os arrendatários passaram a pagar pouco também a esses grandes proprietários de terra. E foi tal lógica que fez surgir na Inglaterra uma classe de arrendatários capitalistas extremamente rica e influente. Temos então as origens do capitalista que viria a ser o protagonista deste novo modo de produção que se desenvolvia. 

V. Efeito retroativo da revolução agrícola sobre a indústria. Criação do mercado interno para o capital industrial - Nesta parte do texto, Marx tece mais comentários sobre as consequências da expropriação dos pequenos camponeses e constituição da grande propriedade rural. Nesses comentários, ele atesta que mesmo diante de uma concentração de terra a produção conseguiu alcançar um alto nível. Isso porque a expropriação dos pequenos proprietários, era acrescentada por um aperfeiçoamento do cultivo e maior cooperação. Mas esse aumento da produção só foi possível graças a um intenso trabalho realizado pelos trabalhadores assalariados agrícolas, que agora se encontravam subordinados ao grande proprietário e arrendatário capitalista. Para elucidar melhor suas ideias, Marx diz o seguinte: 
Supunha, por exemplo, que uma parte dos camponeses da Vestfália, que no tempo de Frederico II fiavam linho, ainda que não de seda, fosse violentamente expropriada e expulsa a terra, enquanto a parte restante fosse transformada em jornaleiros de grandes arrendatários. Ao mesmo tempo, ergueram-se grandes fiações e tecelagens de linho, nas quais os "liberados" passaram a trabalhar, agora por salários. O linho tem exatamente o mesmo aspecto de antes. Não se modificou nem uma única de suas fibras, mas uma nova alma social instalou-se  em seu corpo. Ele constitui, agora, uma parte do capital constante dos patrões manufatureiros (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 816).
E finaliza, 
Os fusos e teares, antes esparsos pelo interior, agora se concentram em algumas grandes casernas de trabalho, do mesmo modo que os trabalhadores e a matéria-prima. E fusos, teares e matéria-prima, que antes constituíam meios de existência independentes para fiandeiros e tecelões, de agora em diante se transformam em meios de comandá-los e de deles extrair trabalho não pago (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 817).
Dito isso, Marx faz uma citação de Mirabeau onde este chama a atenção para a oposição entre manufaturas reunidas versus manufaturas separadas ou individuais. Enquanto a primeira é a marca da grande propriedade rural que "enriquece prodigiosamente um ou dois empresários, mas os trabalhadores são apenas jornaleiros melhor ou pior remunerados e não têm qualquer participarão no bem-estar do empresário" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 817); a segunda, "ninguém fica rico, mas uma porção dos trabalhadores se encontra em situação confortável" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 817) e por isso é considerada como as únicas livres. Fica claro que tendo como base as análises já feitas até aqui, que o processo de expropriação da pequena propriedade em prol da grande, vem a favorecer a manufatura reunida, pois é esta que consegue concentrar riqueza e explorar mais-valor. 

Porém, a expropriação dos camponeses gerou outras consequências que Marx faz questão de comentar. Essa expropriação não só libera mão de obra para à indústria manufatureira como também forma o mercado interno. E qual o processo que liga o desenvolvimento dessa expropriação com a formação do mercado interno? Responde Marx: 
Anteriormente, a família camponesa produzia e processava os meios de subsistência e matérias-primas que ela mesma, em sua maior parte, consumia. Essas matérias-primas e meios de subsistência converteram-se agora em mercadorias; o grande arrendatário as vende e encontra seu mercado nas manufaturas. Fios, panos, tecidos grosseiros de lã, coisas cujas matérias-primas se encontravam no âmbito de toda família camponesa e que eram fiadas e tecidas por ela para seu consumo próprio, transformam-se, agora, em artigos de manufatura, cujos mercados são formados precisamente pelos distritos rurais. A numerosa clientela dispersa, até então condicionada por uma grande quantidade e pequenos produtores, trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado, abastecido pelo capital industrial (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 818).
Então o mercado interno para Marx se desenvolve a partir da expropriação da pequena propriedade rural, crescimento da grande propriedade rural e consequente destruição da indústria rural de subsistência ou subsidiária. Destruído esse tipo de indústria, une-se agricultura e manufatura. Através desta união, o capital industrial passa a abastecer os que antes produziam seus produtos de forma subsidiária. Em nota (234), citando David Urquhart, Marx deixa a seguinte reflexão sobre o mercado interno: 
Vinte libras de lã, tranquilamente transformadas na vestimenta anual de uma família de trabalhadores - por seus próprios esforços, nos intervalos entre seus outros trabalhos -, não é algo que impressione; mas leveis a lã ao mercado, a envieis à fábrica, depois ao intermediário, depois ao negociante e tereis grande operações comerciais e capital nominal empregado num montante de vinte vezes o seu valor [...]. A classe trabalhadora é assim explorada para sustentar uma miserável população fabril, uma classe parasitária de lojistas e um sistema comercial monetário e financeiro fictício (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 818).
Por fim, Marx afirma que apenas a grande indústria teria condições de conquistar todo o mercado interno. Isso porque ela desenvolve consigo a expropriação da maioria da população rural, cindindo à antiga indústria doméstica rural que impedia a subordinação dos trabalhadores ao que era produzido pelo capital industrial. 

VI. Gênese do capitalista industrial - Após traçar a gênese do grande arrendatário capitalista, Marx agora busca mostrar o surgimento do capitalista industrial. Segundo ele, o processo que levou ao surgimento do grande arrendatário capitalista foi mais lento e gradativo que o que propiciou o aparecimento do capitalista industrial. Pequenos mestres corporativos, pequenos artesãos independentes e até trabalhadores assalariados conseguiram transformar-se em pequeno capitalista, através da exploração lenta do trabalho assalariado, e depois conseguiram chegar a posição de grande capitalista. Mas Marx diz que já na Idade Média existia dois tipos de atividades que, mesmo sem ser desenvolvidas durante o modo de produção capitalista, serviram de base para a formação deste. Ele se refere ao capital comercial e ao capital usurário. 

Porém, o regime feudal criava empecilhos que dificultavam a transformação desse capital comercial e usurário em capital industrial. Um exemplo desse empecilho é mostrado por Marx na nota de número 240: "Ainda em 1794, os pequenos fabricantes de pano de Leeds enviaram uma delegação ao Parlamento, solicitando-lhe uma lei que proibisse qualquer comerciante de tornar-se fabricante" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 820). Essas barreiras só seriam derrubadas com a dissolução dos séquitos feudais e de sua consequente expropriação da maioria do campesinato. A partir do momento em que esses resquícios feudais eram enfraquecidos e aniquilados, surgiam manufaturas novas que se instalavam próximas a portos marítimos (facilitando a exportação de produtos) ou em regiões rurais distantes do controle corporativo e do velho regime urbano que ainda imperava. Mas outros acontecimentos favoreceram a acumulação primitiva que daria origem ao capital industrial e Marx faz questão e enumerar tais acontecimentos: 
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guera comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc  (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 821).
Esses momentos da história foram combinados com a formação de sistemas que sustentaram a acumulação primitiva. Esses sistemas foram: a) sistema colonial; b) sistema da dívida pública; c) sistema tributário; d) sistema protecionista. Marx salienta que todos esses sistemas foram movidos a base de muita violência e brutalidade. A violência une esses sistemas, como demonstra o autor: 
Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 821).
O movimento desses sistemas, baseados no uso sistemático da violência, deram as bases para a acumulação primitiva que enriqueceu rapidamente o capital industrial que escoava suas manufaturas para as colônias; então oprimidas pela imposição de um monopólio que contava com a participação de algumas classes sociais locais. O país modelo citado por Marx foi a Holanda, denunciada por ele nos seguintes trechos: "Nada é mais característico que seu sistema de roubo de pessoas, aplicado nas ilhas Celebes para obter escravos de Java. Os ladrões de pessoas eram treinados para esse objetivo" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 822). E mais, "Onde pisavam, seguiam-nos a devastação e o despovoamento. Banjuwangi, uma província de Java, contava, em 1750, com mais de 80 mil habitantes; em 1811, apenas 8 mil. Eis o doux commerce [doce comércio]!" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 822). Já sobre a prática e o papel da Companhia Inglesa das Índias Orientais, Marx diz: 
É sabido que a Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, além do domínio político das Índias Orientais, o monopólio do comércio de chá, bem como do comércio chinês em geral e do transporte de produção para a Europa [...]. Os monopólios de sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e espoliavam à vontade do infeliz indiano. O governador-geral participava nesse comércio privado. Seus favoritos obtinham contratos em condições mediante as quais, mais astutos que os alquimistas, criavam ouro do nada (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 822).
Perversidades contra as populações ocupadas são citadas diversas vezes e uma delas foi entre os anos de 1769 e 1770, quando os ingleses compraram todo o arroz produtivo na Índia e resolveram vendê-lo a preços altos, gerando consequentemente um grande surto de fome. Marx também cita o uso da violência no que ele chama de "Índias Ocidentais". Também faz menção à violência praticada no México e na "Nova Inglaterra" (atual EUA), onde o prêmio para quem matasse indígenas era alto, inclusive, com crianças e mulheres inclusos. Sobre esse processo, conclui Marx:
Às manufaturas em ascensão, as colônias garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do comércio. Os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital. A Holanda, primeiro país a desenvolver plenamente o sistema colonial, encontrava-se já em 1648 no ápice de sua grandeza comercial (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 823).
Após esses comentários gerais, Marx analisa o papel específico desempenhado por cada um dos sistemas que ele citou acima. E o primeiro a ser analisado é o colonial que já foi um pouco descrito, através das ações da Holanda e da Inglaterra nas regiões ocupadas e monopolizadas. Mas visando resumir o importante papel do sistema colonial para a acumulação primitiva do capital, Marx afirma o seguinte:  
Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o "deus estranho" que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que, um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única da humanidade  (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 824).
Outro sistema que contribuiu para o desenvolvimento da acumulação primitiva foi o sistema de crédito público que impôs a divida pública. Marx considera a dívida pública como a alienação do Estado, seja ele despótico, constitucional ou republicano. E por enquanto que as instituições são denominadas como "reais", as dívidas são vistas como "nacionais". Ou seja, "A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos é... sua dívida pública" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 824). A dívida pública surge como um importante motor da acumulação primitiva ao contrair dívidas que só enriquecem especuladores, rentistas e financistas de toda espécie. E não só contrai dívidas como também atua como investidor de negócios privados, oferecendo-os importantes empréstimos. Como consequência, "a dívida pública impulsionou as sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 825).

A consequência direta da dívida pública é o surgimento do atual sistema tributário. Isso porque, ao contrair dívidas, o Estado necessita cobri-las, assim como suas consequentes taxas de juros. Logo, faz-se necessário um aumento de impostos. E "o aumento de impostos, causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente, obriga o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para cobrir os novos gastos extraordinários", por essa razão que "O regime fiscal moderno, cujo eixo é formado pelos impostos sobre os meios de subsistência mais imprescindíveis (portanto, pelo encarecimento desses meios), traz em si, portanto, o germe da progressão automática. A sobrecarga tributária não é, pois, um incidente, mas, antes, um princípio" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 826). É evidente, como observa Marx, que esse moderno sistema tributário causará danos terríveis para os trabalhadores. 

Por fim, o sistema protecionista teve em Marx a seguinte importância no que diz respeito ao desenvolvimento da acumulação primitiva do capital: "O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores nacionais independentes, de capitalizar os meios de produção e de subsistência nacionais, de abreviar violentamente a transição do modo de produção antigo para o moderno"  (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 826); e mais "A patente desse invento foi ferozmente disputada pelos Estados europeus, que, a serviço dos extratores de mais-valor, perseguiram esse objetivo não só saqueando seu próprio povo, tanto direta, por meios de tarifas protecionistas, quanto indiretamente, por meio de prêmios de exportação etc., mas também extirpando violentamente toda a indústria dos países que lhes eram contíguos e deles dependiam, como ocorreu, por exemplo, com a manufatura irlandesa de lã por obra da Inglaterra" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 826).

Em suma, Marx tenta mostrar como a colonização, a dívida pública, o aumento de impostos e o protecionismo que visava defender-se das guerras comerciais entre as nações; foram processos umbilicalmente ligados e que juntos foram importantes para o desenrolar da acumulação primitiva do capital. 

Todo esse processo recebeu incentivo da opinião pública, fato que Marx não deixa passar em branco. Essa opinião pública apoiou a exploração interna e externa. Diante de tais fatos, Marx encerra a reflexão dessa parte do capítulo denunciando o capital que para desenvolver-se não hesitou em sujar suas mãos de sangue. A exploração interna e externa de que esse capital necessitou para nascer, é descrito por Marx no seguinte trecho: 
Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo  (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 829).
VII. Tendência histórica da acumulação capitalista - Nesta última parte do capítulo, o autor questiona: qual a origem da acumulação primitiva do capital? Para Marx, a gênese da acumulação primitiva não é a transformação do escravo e do servo em trabalhador assalariado. Esta seria uma consequência da acumulação primitiva, porém, não seu ponto de partida. A acumulação primitiva se baseou na mudança da propriedade privada que deixa de ser dos trabalhadores e passa a ser posse dos não trabalhadores. Ou seja, é o advento da grande propriedade rural que se configura como o motor da acumulação primitiva.  Diz ele, 
A propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe onde os meios e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas. Mas, conforme essas pessoas sejam os trabalhadores ou os não trabalhadores, a propriedade privada tem também outro caráter (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 830).
O novo caráter dado a propriedade privada se configura com o enfraquecimento e aniquilamento da propriedade privada do trabalhador que passa a ser propriedade privada de uns poucos não trabalhadores. Marx deixa claro os limites da propriedade privada dos trabalhadores (pois ela não desenvolve a cooperação, a divisão social do trabalho, a dominação e regulação da natureza etc) e que, dentro das condições objetivas e reais, seria idílico querer sua perpetuação. Ao atingir um determinado nível de desenvolvimento esse tipo de propriedade tende à sua destruição, dando lugar a um novo modo de produção e de relações de produção. Essa nova forma de propriedade privada, baseada na posse de uma minoria não trabalhadora, "compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 831). Sobre a transição desses dois tipos de propriedade privada, escreve Marx: 
A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar a propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 831).
Diante dessa transição que proporciona a acumulação primitiva do capital e o consequente desenvolvimento do capitalismo, Marx afirma que acontecerá uma nova mudança que tende para  a expropriação dos capitalistas que outrora foram os protagonistas de expropriações. O agudo desenvolvimento capitalista geraria contradições internas neste sistema, causando sua destruição por um novo modo de produção em que "Quem será expropriado, agora, não é mais os trabalhadores que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 832). E como se daria à queda do capitalismo? 

O capitalismo para Marx gera concentração de capitais e a internacionalização do regime. Tanto a concentração quanto a internacionalização, conjuntamente, gerariam contradições internas no capitalismo. Os detalhes do porquê isso seria possível, está presente no seguinte trecho: 
Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a massa de miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 832).
E continua: 
 A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista, e os exploradores são expropriados (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 832).
Por fim, Marx encerra o capítulo com uma visão otimista da derrocada do capitalismo por um novo modo de produção onde a propriedade privada gerada pela acumulação primitiva, daria lugar a uma propriedade de tipo social. Segundo ele, enquanto a passagem da propriedade privada fragmentária para a propriedade privada capitalista foi fruto de um logo processo; por sua vez, a transformação da propriedade capitalista em propriedade social seria mais curta. Pois, "Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo" (MARX, Karl. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 833).