domingo, 2 de fevereiro de 2020

Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje


  • Sobre o autor: Domenico Losurdo foi um historiador e filósofo italiano nascido em 1941, na cidade de Bari. Losurdo foi professor da Universidade de Urbino, sendo um importante intelectual marxista do século XXI com um estudo valioso sobre a obra de Antonio Gramsci. Entre as principais obras de Losurdo com tradução em português, temos: a) Liberalismo: entre civilização e barbárie; b) Contra-História do Liberalismo; c) Antonio Gramsci: do Liberalismo ao Comunismo Crítico. Losurdo faleceu em junho de 2018 aos 77 anos. 





Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje - Domenico Losurdo - Editora Revan





Primeira Parte - O Movimento Comunista: da autofobia ao desenvolvimento do processo de aprendizagem

Prefácio - Domenico Losurdo inicia o prefácio, comparando a Revolução Francesa de 1789 a Revolução Russa de 1917. Em 1818, no auge da Restauração, muitos que outrora se faziam defensores da Revolução Francesa, buscava se distanciar de seu legado sangrento. O mesmo veio a ocorrer com a Revolução Russa e todos os processos que resultaram no chamado "Socialismo Real". A pergunta que abre essa obra, é a seguinte: os comunistas devem se envergonhar de sua história? 

O fenômeno da autofobia, visto na história em grupos étnicos e religiosos, também pode atingir classes sociais e partidos políticos. E assim como negros e judeus, passaram a adotar a visão do opressor, desprezando-se, o mesmo pode ser visto entre os comunistas. Porém, o resgate da autoestima dos comunistas, se assim podemos chamar, não significa uma análise que fuga da autocrítica. Pelo contrário, a autocrítica existe e é necessária no balanço sobre as experiências socialistas, mas sem cair na autofagia que só alimenta os interesses dos inimigos. Para melhor resumir a diferença entre autocrítica e autofagia, vamos as palavras do próprio autor: 

É lógico que a luta contra a praga da autofagia resultará tanto mais eficaz quanto mais radicalmente crítico e sem preconceitos for o balanço da grande e fascinante experiência histórica iniciada com a Revolução de Outubro. Porém, apesar das assonâncias, autocrítica e autofagia constituem duas posições antiéticas. Em seu rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a consciência da necessidade de acertar as contas com a própria história; a autofagia é a fuga vil desta história e da realidade da luta ideológica e cultural que sob ela ainda arde. Se a autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade comunista, a autofagia é sinônimo de capitulação e de renúncia a uma identidade autônoma (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 14-15). 
I. Numa encruzilhada: religião ou política? - 1.1 Uma experiência esclarecedora de quase dois mil anos; 1.2 História das classes subalternas e história dos movimentos religiosos; 1.3 "Volta a Marx" e o culto formalístico dos mártires; 1.4 Recuperar a dimensão e a autonomia política.


Em busca dessa autocrítica sem autofagia, Losurdo vai na revolução nacional judaica, em 70 d.C. Essa revolução foi fruto de uma indignação dos judeus ao autoritário Império Romano. Essa revolução judaica foi vencida, graças a um cerco organizado pelo que Losurdo chama de "imperialismo romano". Esse brutal cerco, ocasionou uma crise interna na cidade de Jerusalém, graças à fome e uma consequente desintegração das relações sociais. Em busca de ganhos privados, vários exerciam o papel de acusadores de potenciais traidores, então castigados com a morte. A derrota dessa revolução, representou a diáspora de todo um povo e a execução dos líderes dessa revolta. 

Mas o que ocorreu após esse fracasso? Os cristãos, membros da comunidade judaica, logo buscaram se diferenciar daqueles fracassados revoltosos. Apesar de permanecerem seguidores dos textos sagrados que os revolucionários também seguiam, os cristãos buscaram a todo momento diferenciar-se e o exemplo disso é o Evangelho de São Marcos, escritos após a destruição de Jerusalém pelos romanos. E qual o culpado desse fracasso? Para os cristãos, não foram os romanos, mas sim os revolucionários que interpretaram as escrituras sagradas de forma errônea. Assim, 
A tragédia que se abateu sobre o povo judeu não deve ser principalmente imputada ao imperialismo romano: por um lado, já estava escrita na economia divina da salvação; de outro lado, foi resultado de um processo de degeneração interna da comunidade judaica. Os revolucionários cometeram o erro de interpretar a mensagem messiânica pelo viés mundano e político, e não pelo lado espiritualista e intimista: o horror e a catástrofe foram o resultado inevitável desta desnaturação e traição (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 18).
Os cristãos, em resumo, adotam a visão do opressor ao criminalizar aqueles que optaram por insurgir a tirania e ao autoritarismo dos romanos. O objetivo dos cristãos era ser bem visto e aceito pelos opressores romanos, se diferenciando dos insurgentes. Mas como esse acontecimento histórico se vincula ao movimento comunista? Para Losurdo, muitos comunistas seguem a mesma lógica dos cristãos e rechaçam toda as experiências do chamado "Socialismo Real", visando credibilidade e aceitabilidade da burguesia liberal. 

Qualquer tentativa de contextualização da Revolução Russa, é vista por esses comunistas como uma justificação dos horrores praticados. E, assim como os cristãos no Evangelho de São Marcos, esses comunistas buscam a todo momento se diferenciar com base numa teoria pura e sem contradições. Assim como o cerco romano era insignificante para os cristãos, o cerca das nações capitalistas e imperialistas é irrelevante para esses comunistas. E, 
Analogamente, em nossos dias, não poucos comunistas declaram ter experimentado uma sensação de alívio e de "libertação" com o colapso do "socialismo real": finalmente, é possível voltar ao "autêntico" Marx e pregar a ideia do comunismo sem as manchas horríveis que sobre ela haviam depositado a história e a política (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20).
A rejeição do Socialismo Real é baseada numa quase religiosa "volta a Marx", então deturpado. Da mesma forma que os cristãos se desvincularam da revolução judaica, contrapondo Isaías a Jesus, alguns comunistas se diferenciam do Socialismo Real ao contrapor-la a teoria de Marx. Apesar disso, esses mesmos comunistas, reivindicam figuras revolucionárias como Antonio Gramsci e Che Guevara, mesmo ambos sendo defensores da Revolução Russa. Sobre a devoção a essas duas figuras, afirma Losurdo: 
Igualmente, apresenta características bastante singulares o apelo a Gramsci e Che Guevara. Em apoio aos dois age a lição de Lênin, que, ao contrário, é diligentemente acusado. Bastante diferentes entre si, Gramsci e Che Guevara têm em comum o fato de terem sido derrotados, de que não puderam participar da gestão do poder originado da revolução e que, em vez disso, sofreram a violência da ordem político-social existente. Por isso, destes dois eminentes expoentes do movimento comunista internacional se preza o martírio, não o pensamento e a ação política, que remetem a uma história obstinadamente ignorada (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 21).
Essa valorização estética de Gramsci e Che, Losurdo chama de "culto formalístico dos mártires". Por fim, ele encerra esse primeiro capítulo reafirmando seu objetivo central: recuperar a autonomia política do movimento comunista, então subjugada pela ideologia dominante. Um exemplo dessa falta de autonomia é dada por Losurdo em referência aos jornais Il Manifesto e Liberazione. Ambos contestam o embargo capitaneado pelos EUA, contra o Iraque e Cuba, acusando a ação de genocídio. Porém, ao mesmo tempo, apoiam embargos a China, acusada de reprimir dissidentes. Uma hora, crítico a tática do embargo. Noutra, favorável. Essa incoerência é um traço da falta de autonomia do movimento comunista que, segundo o autor, não consegue enxergar o seguinte: 
O que importa se, ao invocar uma política de embargo contra o povo chinês, legitima-se indiretamente o embargo já posto em prática contra os povos iraquiano e cubano? A conquista norte-americana da "última fronteira" poderia significar o desmembramento da China (depois do da Iugoslávia e da URSS) e a catástrofe para seu povo, por sua vez, a derrota do grande país asiático reforçaria enormemente o imperialismo dos EUA e sua capacidade militar e política de impor o embargo e um estrangulamento genocida contra os povos iraquiano e cubano. Com tudo isso, é supérfluo interrogar-se sobre o primitivismo religioso de certos "comunistas" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 23).
É diante desse cenário estarrecedor, que Losurdo busca uma "reconquista da capacidade de pensar e de agir em termos políticos" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 24) do movimento comunista internacional. 

II. A Derrocada do "Campo Socialista" - 2.1 "Implosão": mito apologético do imperialismo; 2.2 Nas origens da Guerra Fria; 2.3 Uma mistura mortal: a nova cara da guerra.


Feita essa comparação entre cristãos e certos comunistas, Losurdo vai a fundo ao criticar a ideia de "implosão" que se fala da derrota do Socialismo Real. O caso da Nicarágua e Cuba são citados como exemplo. Na Nicarágua, os EUA cercaram o país, submetendo-o a um bloqueio econômico, ameaças militares e um bombardeio midiático a fim de instigar uma desestabilização interna. Ou seja, articulou toda uma guerra não declarada que forçasse o enfraquecimento dos sandinistas. O mesmo pode ser visto em Cuba, ilha caribenha que sofre um fortíssimo embargo econômico. Esses dois exemplos, se estendidos para as experiências socialistas de um modo geral, vêm contestar a narrativa da "implosão" quando o assunto é a explicação da derrota do Socialismo Real. Afirma Losurdo: 
Neste caso, imediatamente evidente é o caráter mistificador de categorias que pretendem apresentar como um processo meramente espontâneo e totalmente interno, uma derrota ou uma crise que não podem ser separadas da formidável pressão exercida em todos os níveis pelo imperialismo. Assim, a classificação de "implosão" não resulta mais persuasiva se, em vez de à Nicarágua e a Cuba, for aplicada à parábola do "campo socialista" como um todo (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26).
É impossível falar da derrota do campo socialista sem contextualizá-la historicamente. Essa contextualização só é possível com o entendimento de um acontecimento que marcou o Século XX: a Guerra Fria. Foi na queda de braço desse conflito que se deu o fim ou a derrota do Socialismo Real. Para James Doolittle, general ianque, o embate desenvolvido pela Guerra Fria não precedia de regras. O objetivo frio e calculista era subverter e desestabilizar o inimigo com métodos mais sofisticados e eficazes. Dentre esses meios, vimos a utilização de golpes, mas também o desenrolar em guerras como a vista na península coreana. 

Diante da importância da Guerra Fria no entendimento do fracasso do Socialismo Real, podemos nos perguntar: mas quando esse conflito começou? Para Losurdo, ele tem início ainda durante a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA decidem jogar bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, mesmo diante da rendição japonesa. O alvo principal não era o Japão, mas sim a URSS (então aliada dos EUA, contra o Eixo Nazifascista), demonstrando o seguinte: "A nova terrível arma não pode ser experimentada a título demonstrativo, em uma zona deserta, mas deve ser repentinamente lançada sobre duas cidades, de modo a que os soviéticos compreendam imediatamente e completamente a realidade das relações de força e a determinação norte-americana de não recuar diante de nada" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 28).

O desleixo dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, enviando 89 divisões das 215 previstas, já prova que o objetivo dos norte-americanos era que o conflito se concentrasse entre Alemanha e URSS. Antes da Segunda Guerra, Losurdo chama a atenção para 1917, ano da Revolução Russa, em que o país foi invadido pelas potências capitalistas que visavam sangrar os revolucionários e impedir a construção do Socialismo. Esses dois acontecimentos são destacados por Losurdo como fatores anteriores a Hiroshima e Nagasaki, que podem ser considerados como precedentes da Guerra Fria. 

Vista as origens, quais os métodos utilizados pelos EUA no curso da Guerra Fria? Para Losurdo, os métodos foram os mesmos utilizados contra a Nicarágua e Cuba: pressões econômicas, ideológicas e militares com o intuito de desestabilizar a URSS por dentro e por fora. Assim sendo, 
Enviar soldados contra a Rússia soviética - sublinha Herbert Hoover, alto expoente da Administração norte-americana e futuro presidente dos EUA - significa expô-los à "infestação de ideias bolchevistas". Melhor utilizar o bloqueio econômico no enfrentamento do inimigo, e com a ameaça do bloqueio econômico para enfrentar os povos inclinados a deixarem-se seduzir por Moscou (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 32).
Além das pressões econômicas, o imperialismo norte-americano utilizou-se de uma frente ideológica composta por jornais, revistas e o rádio. Esse último exerceu uma força gigantesca durante o auge da Guerra Fria. Outrora utilizado como arma nazista no seu projeto expansionista, o rádio agora era utilizado pelos EUA para enfraquecer a base social que mantinha a URSS de pé. Ademais, "Mesmo no que diz respeito ao confronto direto entre os dois principais antagonistas, a frente mais evidente de imediato é a batalha político-diplomática, econômica e de propaganda, mas nem por isso se deve perder de vista o terrível braço de ferro militar que, mesmo sem ter chegado ao combate direto e total, não ficou livre de consequências" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 33).

Dado esses fatores e frentes de ação do imperialismo, seria um erro crasso usar o argumento da "implosão" na análise do fracasso do campo socialista. A categoria "implosão", afirma Losurdo, é um "mito apologético do capitalismo e do imperialismo" que visa colocar sua superioridade frente a um sistema social, político e econômico que ruiu devido a sua incapacidade, insustentabilidade interna e inferioridade intrínseca. É a completa aceitação de que o capitalismo venceu o socialismo e é o sistema vitorioso. Essa aceitação, alerta o autor, não deve ser reproduzida pelo movimento comunista internacional. Dito isso, assim ele encerra o capítulo:  
Denunciar a categoria "implosão" não significa renunciar a um balanço impiedoso da história do "socialismo real" e do movimento comunista internacional. Ao contrário, um balanço se torna possível apenas a partir da tomada de consciência da realidade da "terceira guerra mundial". Por outro lado, para que este balanço não seja de nenhum modo confundido com a capitulação, é necessário ir até o fundo na crítica à posição de subalternidade e de primitivismo religioso que fincou pé no movimento comunista a partir da derrota (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 33-34).
III. Um Movimento Comunista com Soberania Limitada? - 3.1 Normalidade e estado de exceção; 3.2 Bobbio e o estado de exceção; 3.3 A luta pela hegemonia.


Criticada a ideia de "implosão" no entendimento da derrota do campo socialista, Losurdo prossegue debatendo a falta de soberania do movimento comunista frente a ideologia dominante, apoiada por uma estrutura ideológica e multimidiática. É como se, diz ele, uma Hiroshima ideológica tivesse sido jogada sobre os comunistas que passaram a aceitar acriticamente tudo o que vem dos imperialistas. 

Como exemplo dessa falta de soberania, Losurdo cita dois exemplos: o primeiro é o golpe de Estado dado em 1991 na Argélia, onde os militares argelinos anularam as eleições que levariam a frente islâmica ao poder, sob o pretexto de garantir o processo de modernização por qual passava o país; já o segundo é a intervenção soviética no Afeganistão, feita sob o mesmo pretexto de garantia da modernização, frente aos fundamentalistas religiosos. E enquanto o Ocidente capitalista deu total apoio no caso argelino, posicionou-se contrariamente a ação da URSS no Afeganistão. Para Losurdo: "Está claro: o estado de exceção invocado em um caso não vale para o outro; a violação das regras é considerada legítima e sacrossanta em um caso e condenada como nefanda no outro" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 36).

Diante de tal cenário, como se comportaram os comunistas? Losurdo afirma que adotaram a visão da ideologia dominante, aceitando o golpe de Estado na Argélia, mas repelindo a intervenção soviética. Assim, 
Quem decide sobre o estado de exceção, suscetível de justificar a suspensão das regras do jogo, é sempre o Ocidente liberal, capitalista e imperialista. Surge assim o dado consternador de um movimento comunista destituído de soberania ou, na melhor das hipóteses, com soberania limitada (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 36).
Outro exemplo dado por Losurdo, que demonstra a falta de soberania no movimento comunista, envolve a Rússia. Em 1991, último ano de existência da URSS, se tentou colocar o país em estado de exceção com o intuito de retirar Mikhail Gorbatchov do poder, evitando as reformas impostas por ele. Por trás da resistência a esse golpe, estava Boris Iéltsin, principal ator da dissolução da URSS e primeiro presidente da Rússia após o fim da era soviética. Essa tentativa golpear Gorbatchov foi severamente criticada mundialmente, recebendo o rechaço de vários comunistas. Por outro lado, não se viu a mesma comoção quando Iéltsin em 1993, resolve dissolver o parlamento russo. A ação recebeu apoio do presidente norte-americano Bill Clinton e do francês François Mitterand. E os comunistas? O jornal Il Manifesto, resolveu entrevistar o cientista político liberal Norberto Bobbio para que esse se posicionasse. 

Quando o ano é 1989, lembra-se com alta comoção o protesto na Praça da Paz Celestial (China), mas se esquece que no mesmo ano os EUA invadiu militarmente o Panamá sem qualquer declaração de guerra e com direito a bombardeio a bairros habitados. Diante da capitulação do movimento comunista frente a esses e outros acontecimentos, conclui Losurdo: 
É o que não parece querer levar em conta uma esquerda que enche a boca com as homenagens formais tributadas a Gramsci, mas que esquece que esquece completamente um dos aspectos essenciais de seus ensinamentos: a luta pela hegemonia. Categorias, avaliações, recorrência histórica, se diria que tudo hoje a esquerda termina por inferir da ideologia dominante (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 38).
IV. Os anos de Lênin e Stálin: um primeiro balanço - 4.1 Guerra Total e "Totalitarismo"; 4.2 Gulag e emancipação na época de Stálin; 4.3 Uma história que cabe apenas envergonhar-se?; 4.4 Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Stálin; 4.5 Dois capítulos da história das classes subalternas e dos povos oprimidos; 4.6 Os comunistas devem apropriar-se novamente de sua história.

Os governos de Lênin e Stálin são vistos dentro do conceito de totalitarismo, visto quando o Estado detém uma força legítima sobre a liberdade, a vida e a morte dos indivíduos. O Estado passa, então, a promover uma série de atentados contra a liberdade como a organização de pelotões de fuzilamento, tribunais militares e dizimações. Losurdo critica essa análise, dando o exemplo do ex-presidente norte-americano Roosevelt que montou nos EUA campos de concentração para abrigar pessoas de origem japonesa. O crime desses cidadãos? Apenas fazerem parte de um grupo étnico que estava então em guerra com os EUA. Mas, tendencioso como seus criadores, o conceito de totalitarismo não abarca o período Roosevelt como totalitário. O fato dele ter sido eleito para quatro mandatos, também não o faz um totalitário, enquanto que a duração dos governos leninista e stalinista são um dos aspectos usados para inserir essas experiências no conceito de totalitarismo.

Para refletir sobre o imaginado autoritarismo do regime soviético, Losurdo lembra que de 1917 a 1953 (ano da morte de Stálin), a URSS passou por: quatro guerras e duas revoluções. Foram essas cinco guerras: 01) a agressão da Alemanha de Guilherme II, perdurando até o Tratado de Brest-Litovsk de março de 1918; 02) agressões da Alemanha Hitlerista com início em 1941 e término apenas em 1945; 03) agressões do Japão, antes até da Segunda Guerra Mundial; 04) agressões surgidas pelo contexto de Guerra Fria, após 1945. Além dessas guerras, não podemos esquecer das duas revoluções por qual passou o país. Sobre elas:
Às guerras é preciso acrescentar as revoluções, a saber, além da de Outubro, a revolução pelo alto que foi a coletivização e a industrialização do campo levadas a cabo a partir de 1929. As ditaduras de Lênin e, com características distintas, a de Stálin, correspondem no essencial às condições da guerra total e do estado permanente de exceção que se verifica na União Soviética (isto é, em um país atrasado e sem tradição liberal) (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 45).
Sobre as ditaduras de Lênin e Stálin e, principalmente a stalinista, é impossível separar a barbárie dos avanços sociais obtidos no período. A forte repressão política e opositores, foi acumulada a grandes transformações e entre elas as vistas na educação, como exemplifica Losurdo. O Plano Quinquenal se desdobrou para combater os altos índices de analfabetismo entre o povo soviético, formando uma geração de trabalhadores e técnicos especializados e tecnicamente capacitados para exercerem suas funções.

Além desse preparo, "Entre 1927-28 e 1932-33, o número de alunos das universidades e dos institutos superiores de origem operária aumentou de um quarto para a metade" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 46). Junto a isso, o processo de industrialização formava novas cidades que cresciam sob um modelo vertical, mostrando a ascensão social promovida pela ditadura stalinista as classes subalternas.  Em síntese, "Não se pode compreender nada do período stalinista se não se leva em conta a mescla de barbárie (um enorme gulag) e de promoção social em larga escala" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 46).

Caberia aos comunistas apenas se envergonhar do lado repressivo dessas duas ditaduras, sem levar em consideração suas contribuições positivas? Para Losurdo, não. Foi graças a URSS de Lênin e Stálin que o nacionalismo deixou de ser assunto específico de algumas nações ricas, cujo destino se interessavam os representantes da II Internacional. Stálin, em 1924, destaca grandes contribuições desse período, vejamos: "O leninismo desmascarou esta disparidade escandalosa; rompeu a barreira que separava brancos e negros, europeus e asiáticos, escravos do imperialismo 'civilizados' e 'não civilizados', ligando, desse modo, o problema nacional ao problema das colônias" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 47).

Mesmo diante do auge da barbárie stalinista, Losurdo afirma que a URSS executou uma política progressista e solidária nos países de capitalismo avançado e também nas colônias. A confrontação ao anti-semitismo na Alemanha e ao racismo nos EUA, são exemplos concretos da práxis dos comunistas. Sobre o primeiro caso, temos os relatos do filólogo judeu Viktor Klemperer, já no segundo caso, vemos os comunistas sendo taxados de "estrangeiros" ou "amantes dos negros" em pleno racismo declarado dos EUA governado por Roosevelt. Os comunistas que enfrentaram essas duas mazelas, foram simpáticos ou esperançosos com a experiência soviética então sob liderança de Josep Stálin.

Losurdo parte para uma comparação entre Stálin e líderes ainda hoje cultuados pela ideologia dominante, como Churchill e o Roosevelt. Sobre o primeiro, existem pesquisas feitas por jornais ingleses que vinculam Churchill a ideias reacionárias da época como a "esterilização obrigatória dos vagabundos, ociosos e criminosos, dos bárbaros incapazes de elevar-se ao nível da civilização" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 49). E enquanto Roosevelt, em Yalta, proferia discursos de ódio contra o povo alemão; Stálin ressaltava que era um erro comparar o povo alemão com a gangue hitlerista.

O período stalinista é comparado por Losurdo a Espártaco, uma revolta de escravos contra a opressivo Império Romano. Os excessos descabidos dos revoltosos espártacos, como o sacrifício de trezentos soldados romanos por vingança a morte de Crisso e a brutal violência dos escravos rebeldes na Sicília (com casos de estupros), não invalidam a experiência histórica que se opôs a um império sustentado pela escravidão. Apesar desses conhecidos excessos, jornais comunistas italianos como o Liberazione não deixam de reivindicar os símbolos que cercam Espártaco. E é claro que quando fazem isso, não estão festejando os excessos, mas sim a representatividade do acontecimento histórico. Em suma,
Rendendo homenagem a Espártaco, os comunistas italianos pretendem apenas afirmar que sua personalidade e suas lutas fazem parte, a despeito de tudo, da história das classes subalternas, de um movimento que, apesar de seus horrores, é um movimento de emancipação (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 51).
E traçando um paralelo entre Espártaco e o Governo Stálin, defende Losurdo:
Não muito diferente é o significado que os comunistas atribuem sob o retrato de Stalin: não pretendem identificar-se com o gulag e com a liquidação sistemática dos adversários, assim como o Liberazione não pretende identificar-se com o estupro das mulheres e o massacre dos prisioneiros e dos recém-nascidos, pelos quais foram responsáveis os escravos insurretos (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 51).
E encerra seu raciocínio com a seguinte tese:
Não tem sentido fugir da realidade ou simplificá-la arbitrariamente para deixar a consciência tranquila: não é necessário ser comunista, pois também o historiador honesto deve reconhecer que, com todos os seus horrores, o "stalinismo" é um capítulo do processo de emancipação que derrotou o Terceiro Reich, impulsionou o processo de descolonização e a luta contra a barbárie do racismo antisemita e anticamita (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 51).
Espártaco e o período stalinista são vistos por Losurdo como dois capítulos da história das classes oprimidas e subalternas, contendo suas próprias contradições a serem criticadas sem cair na vulgaridade da ideologia dominante.

Encerrando o capítulo, Losurdo compara os presidentes dos EUA com os líderes da URSS, especialmente Lênin e Stalin. É comum enxergarmos, sob influência da ideologia dominante, os presidentes norte-americanos como símbolos da democracia. Mas será que Bill Clinton, ao publicar sua inspiração em Theodore Roosevelt, se esqueceu de sua política do "grande cacete" para tratar dos assuntos latino-americanos? Será que esqueceu das declarações de Roosevelt contra os índios norte-americanos, incentivando e defendendo uma política de genocídio contra essas populações?

O embargo realizado ao Iraque, considerado por muitos como um "genocídio ocidental", trata-se de um massacre ao povo iraquiano sem a necessidade da instauração de um estado de exceção e numa conjuntura onde os EUA vive em plenitude sua pax americana, sem nenhuma grande potência que se oponha a sua hegemonia. Frente a esses exemplos, por que se consideram os presidentes norte-americanos como "mais humanos" que os líderes soviéticos, então inseridos num período dos mais trágicos e violentos da história universal? São esses questionamentos que Losurdo busca incutir no leitor. E, encerrando o capítulo, ele busca desmistificar o liberalismo ocidental utilizando da seguinte argumentação:
Examinemos a história do colonialismo e do imperialismo: o Ocidente eliminou os índios da face da terra e escravizou os negros; submeteu outros povos colonizados a uma sorte análoga, mas isto não impediu o Ocidente de apresentar e celebrar sua expansão como a marcha da liberdade e da civilização enquanto tal. E essa visão terminou de tal modo por conquistar ou condicionar poderosamente as próprias vítimas que, na esperança de serem cooptadas ao seio da "civilização", interiorizaram a sua derrota cancelando a própria memória histórica e a própria identidade cultural (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 53).
E sobre como interiorização da derrota afetou o movimento comunista, Losurdo afirma:
Hoje assistimos a uma espécie de colonização da consciência histórica dos comunistas. Servimo-nos aqui de algo mais do que uma simples metáfora. Historicamente, o movimento comunista chegou ao poder nos países coloniais ou à margem do Ocidente. Por outro lado, com o triunfo da globalização e da pax americana, do ponto de vista da multimídia, todo o resto do mundo se tornou uma província e uma colônia, pelos menos potencial, com relação ao centro do império que, de Washington, pode investir e investe quotidianamente em toda parte do globo com um concentrado poder de fogo da multimídia. Difícil é resistir a isto, mas sem esta resistência não se é comunista (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 53).
V. Por que os Estados Unidos venceram a "Terceira Guerra Mundial"? - 5.1 A ofensiva diplomático-militar dos EUA; 5.2 Questão nacional e dissolução do "Campo Socialista"; 5.3 Frente econômica e frente ideológica da "terceira guerra mundial"; 5.4 Uma teoria do comunismo irrealista; 5.5 "Sem teoria revolucionária, não há revolução".

Existiu uma frente militar no que tange a Guerra Fria e os EUA soube utilizá-la quando lhe era conveniente, como nos casos de Hiroshima e Nagasaki e também nas ameaças de guerra nuclear contra a China, que pretendia retomar as ilhas de Quemoy e Matsu. Porém, existiu aliado a isso uma frente diplomática, totalmente vencida pelos norte-americanos e seus aliados. Losurdo a chama de frente diplomática-militar, pois se comunicam na prática. "Os vencedores conseguiram preliminarmente romper o alinhamento político-militar de seus inimigos" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 55). O primeiro caso desse rompimento foi visto em 1953, através do chamado pacto balcânico, assinado por Grécia, Turquia e Iugoslávia. Esse pacto previa a luta contra a expansão soviética na região dos Bálcãs, tornando a Iugoslávia de Tito uma membra externa da OTAN. Outro caso dessa fragmentação no campo socialista foi visto a partir dos anos de 1970, quando ocorreu a aproximação sino-norte-americana, contra a influência da URSS. Esse ocorrido fez a URSS se aproximar dos EUA, tentando costurar uma aliança contra os chineses.

A "terceira guerra mundial", vista por Losurdo como o período da Guerra Fria, foi vencida pelos EUA que assistiu a derrubada do que se convencionou chamar de "campo socialista". Mas, afinal, quais as razões internas que fizeram esse campo se fragmentar e ruir? Para o autor, a questão nacional foi crucial para a ruína do campo socialista. E ele exemplifica, cronologicamente, esses conflitos de teor nacional:
Vejamos rapidamente seus momentos mais graves de crise e descrédito. 1948: ruptura da URSS com a Iugoslávia. 1956: invasão da Hungria. 1968: invasão da Tcheco-Eslováquia. 1969: sangrentos incidentes na fronteira da URSS com a China; a duras penas evitada, a guerra entre países que se consideram socialistas se torna uma trágica realidade uma dezena de anos depois com a guerra entre o Vietnã e o Camboja primeiro, e entre a China e o Vietnã depois. 1981: lei marcial na Polônia para prevenir uma possível intervenção "fraterna" da URSS (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 57).
Em conclusão, "Apesar de diversas entre si, essas crises têm em comum a centralidade da questão nacional. A dissolução do campo socialista começou, não por acaso, na periferia do "império", nos países que há muito sofriam da soberania limitada a eles imposta" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 57). E a questão nacional, que um dia jogou a favor dos revolucionários comunistas, favorecendo para a vitória da Revolução de Outubro, foi também responsável por encerrar seu ciclo histórico.

Para Losurdo, a China foi o único país que resistiu a essa ruína, pois Mao Tsé-Tung soube aliar críticas a URSS com um tratamento adequado as questões nacionais que envolveram o país. Em posição tomada em 1956, o Partido Comunista Chinês já alertava para o perigo do "chauvinismo de grande nação", visto em países socialistas que guardavam um forte "sentimento de superioridade" suscitado pela vitória da revolução. Longe de desaparecer com o fim do regime semifeudal ou burguês derrotado, esse chauvinismo permaneceu presente no período socialista, trazendo prejuízos para o campo. Porém, deixaram claro que esse chauvinismo ofensivo não era visto apenas na URSS.

A Iugoslávia, por exemplo, criticava a tentativa soviética de exercer influência sobre o país, mas guardava interesses semelhantes com relação a Albânia. Em meio a essa crítica, "os comunistas chineses denunciaram a URSS como país socialista nas palavras e imperialista nos fatos, recorrendo a uma categoria ("social-imperialismo") que, se por um lado rotula eficazmente atos como a invasão da Tcheco-Eslováquia, por outro tem o defeito de remover de novo as contradições nacionais e as tendências chauvinistas e hegemônicas da realidade do mundo socialista, com uma recaída em uma visão utópica do socialismo" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 58).

Algumas lideranças socialistas, como Fidel Castro, em um balanço autocrítico deixou claro que entre as falhas do campo socialista duas foram primordiais: o tratamento com a questão nacional e com a religião. Losurdo aponta que esse "internacionalismo abstrato e agressivo", posto em prática pelos soviéticos, principalmente após Brejnev, em vez de proporcionar a vitória da "ditadura internacional do proletariado", acabou dando brechas para o triunfo dos inimigos. "Daí se origina a desagregação e a derrota do campo socialista e, enfim, o triunfo e a prática da "ditadura internacional da burguesia" exercida pelos EUA" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 58). 

Junto a essa frente diplomática-militar, a "terceira guerra mundial", conheceu a frente econômica e a ideológica. A frente econômica foi vista através de embargos, liderados pelos EUA, contra a URSS. Porém, Losurdo critica aqueles que supervalorizam a questão econômica. Para ele a economia não foi essencial para a queda do campo socialista, inclusive, ele cita dois intelectuais contrários ao modelo socialista para mostrar como até seus adversários reconheciam seus feitos econômicos. Paul Kennedy, por exemplo, viu a URSS tornando-se uma superpotência econômica nos anos de 1930; tendo conseguido realizar um "pequeno milagre econômico" no período pós-guerra (1945 a 1950). Já Lester Thurow, economista norte-americano, enxergou a URSS crescendo mais que os EUA, após os anos de 1950.

E "se temos presente a queda da produção verificada depois de 1991 nos países ex-socialistas, nos damos conta definitivamente de que não pode ser a economia a chave da explicação da derrota do "socialismo real"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 59). Já sobre a frente ideológica, tarefa encarregada eficazmente pela CIA, Losurdo traz o exemplo do embaixador norte-americano na URSS, Averell Harriman, que defendeu a instalação de estações de rádios capazes de se comunicar com as diversas línguas presentes na URSS. E sobre essas estações de rádio, "Nos dias da revolta húngara de 1956, um papel importante foi desempenhado pela dezena de pequenas estações de rádio instaladas clandestinamente no país" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 59).

Junto a todos esses fatores, estiveram a errônea leitura feita pelos dirigentes soviéticos do fim do capitalismo e advento do comunismo. Para eles, o avanço econômico visto na URSS nos anos de 1950, se configurava como prova cabal de que o comunismo estaria próximo de vingar. A queda do capitalismo era vista como inevitável e uma questão de tempo. Essa foi a leitura vista pela gestão Kruschov que apostava suas esperanças na ofensiva ideológica, liderada pelos soviéticos. Porém, Losurdo acredita que essa leitura da conjuntura foi totalmente e "a União Soviética se revelou incapaz de fazer um balanço da própria história e uma reanálise profunda da própria ideologia: seus dirigentes continuaram a repetir a certeza de estarem avançando rapidamente em direção à realização de um comunismo concebido no modo fantástico que frequentemente caracteriza a definição a nós legada por Marx e Engels" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 60). Segundo o autor, faltou um "reexame global" e uma reformulação da teoria da revolução socialista.
Por sua vez, as próprias realizações do "socialismo real" minavam os fundamentos de sua existência: o universo concentrador se tornava cada vez mais intolerável para uma sociedade civil que crescia graças à escolarização em massa e à difusão da cultura, aliadas à conquista de um mínimo de segurança social (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 61).
Essa interpretação equivocada da realidade, desembocou em uma direção suicida da economia soviética, contribuindo para sua ruína. No momento em que o campo socialista estava em crise e a base de consenso dos soviéticos se reduzia, fez-se necessário mudanças na condução econômica do país que não ocorreu. E o resultado foi drástico:
E tais discursos influíam por sua vez em termos bastantes negativos sobre a economia: os atrasos e os desequilíbrios evidentes tornavam necessárias intervenções enérgicas para estimular a produtividade do trabalho; mas a solução do problema não era certamente facilitada pela visão de que se avançava em direção a um comunismo sinônimo de ócio generalizado e pelo difuso clima ideológico que levava a se considerar "restauração do capitalista" qualquer tentativa de racionalização do processo produtivo. Se um colapso se verificou na Europa Oriental, este foi mais ideológico do que econômico (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 62).
Losurdo encerra o capítulo advertindo: sem teoria revolucionária, não há revolução. A falta de uma compreensão correta da conjuntura, contribuiu decisivamente para a queda da URSS. A condução política e econômica foi condicionada por uma teoria caduca e desatualizada. Afirma Losurdo: "O partido bolchevique possuía certamente uma teoria para a conquista do poder; mas se por revolução se entende, além da derrubada da velha ordem, a construção do novo, os bolcheviques e o movimento comunista eram substancialmente destituídos de uma teoria revolucionária" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 62). Encerrando o capítulo, ele destaca as consequências dessa teoria desatualizada com a seguinte afirmação:
Devemos levar em conta esta grave lacuna. Para preenchê-la, não serve o retorno nem a Marx nem a outros clássicos. Trata-se de uma tarefa nova, de extraordinária dificuldade, mas absolutamente imprescindível (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 62).
VI. China Popular e Balanço Histórico do Socialismo - 6.1 Mao Tsé-tung e a revolução chinesa; 6.2 Uma NEP gigantesca e inédita; 6.3 Uma enorme aposta.

Feito esse debate mais geral sobre a "terceira guerra mundial" e a derrocada do campo socialista, Losurdo adentra sobre a experiência chinesa. A revolução chinesa de 1949 triunfou atrelada a uma luta de libertação nacional que veio superar a condição semifeudal e semicolonial do país. Os revolucionários chineses, liderados por Mao Tsé-tung, tinha um enorme desafio pela frente: "Como conduzir o imenso país asiático em direção, ao mesmo tempo, à modernidade e ao socialismo, superando a dilaceração e a humilhação nacionais impostas pelo imperialismo? E como consegui-lo nas difíceis condições da guerra fria e do embargo econômico, ou pelo menos tecnológico, decretado pelos países capitalistas desenvolvidos? Mao Tsé-tung acreditou que resolveria tais problemas apelando para uma incessante mobilização de massa: é esta a gênese primeira do "Grande salto à frente" e depois da "Revolução Cultural"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 63).

Mesmo diante do enfraquecimento do campo socialista e da URSS, Mao Tsé-tung apostou na continuação dessa incessante mobilização de massa. Porém, Losurdo aponta os efeitos negativos dessa ideia, tanto no plano político quanto no econômico. No plano político, a China atravessou retrocessos democráticos. As garantias democráticas foram suspensas na sociedade civil e também no interior do partido. A própria questão nacional passou a criar problemas, por conta das tensões entre os han (nacionalidade dominante no país) e as minorias nacionais que compõem a China. A base da Revolução Cultural maoísta era um iluminismo pedagógico de cunho intolerante, agressivo e centralizado em Pequim com o apoio de outras cidades que tinham os han como maioria. Sendo assim,
Eliminada a mediação do partido e do Estado, só permaneceu de pé a ligação direta entre chefe carismático e massas, mobilizadas e fanatizadas pelos meios de informação e controladas pelo exército (pronto a intervir em caso de necessidade). Foram os anos do triunfo, de fato, do bonapartismo (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 64).
Esses retrocessos políticos foram acumulados com um fracasso econômico de uma direção partidária que não levava em conta o processo de secularização, ou seja, não buscava desenvolver as forças produtivas do país sob uma base racionalizada e condicionada ao contexto internacional. O grande equívoco do período maoísta foi, segundo o autor, a aposta eterna na mobilização das massas e no seu espírito de sacrifício e heroísmo frente as dificuldades que surgiam. Losurdo acredita na necessidade da criação de heróis que sejam úteis na passagem do estado de exceção à normalidade, porém, eles devem existir até a garantia dessa normalidade. Garantida essa estabilidade, os heróis se tornam supérfluos. O erro dos chineses naquele contexto foi justamente apostar na perpetuação desse heroísmo.
Seria um "comunismo" bastante estranho o que pressupõe uma continuação ao infinito, ou quase, do espírito de sacrifício e de renúncia. A normalidade deve ser gerida com critérios diferentes, mediante mecanismos e normas que permitam o gozo tão tranquilo quão possível do quotidiano: são necessárias regras do jogo e, no que diz respeito à economia, incentivos (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 65).
A estabilidade e os incentivos econômicos, só viriam a aflorar na China após a morte de Mao Tsé-tung e a ascensão de Deng Xiaoping. Sobre a figura de Xiaoping e sua importância para a manutenção do socialismo chinês, mesmo diante da ruína da URSS e do campo socialista, pontuou Losurdo:
Deng Xiaoping soube introduzir o novo curso, sem imitar o modelo kruschoviano de "desestalinização" sem, pois, demonizar quem anteriormente estivera no poder. Não apenas não foram negados a Mao os enormes avanços históricos conquistados na construção do partido comunista e na direção da luta revolucionária, mas os graves erros cometidos a partir do final dos anos 50 foram repostos em um contexto mais amplo, no quadro das experiências mais ou menos temerárias e até insensatas que acompanharam as tentativas de construção de uma sociedade nova, sem precedentes históricos (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 65).
Sobre esse papel desempenhado por Xiaoping, Losurdo destaca sua importância, pois alimenta uma análise correta em que não trata experiências históricas complexas e contraditórios, com base em afirmações superficiais como "a traição" ou "a degeneração" de uma dada personalidade. Reduzindo o período stalinista como mero "culto a personalidade", Losurdo acredita que Kruschov acabou herdando erros graves vistos no período. Os chineses resolveram trilhar outro caminho e:
O caminho escolhido pela nova direção chinesa evitou a perda da legitimidade do poder revolucionário; sobretudo, ao se recusar a responsabilizar por todas as dificuldades, incertezas e contradições objetivas uma única personalidade, transformando-a levianamente em um bode expiatório, tornou possível um real debate sobre as modalidades e características do processo de construção de uma sociedade socialista. Foi no curso de tal debate que se criticou e abandonou a orientação do "Grande salto" e da "Revolução Cultural"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 65-66).
 Essa autocrítica não autofóbica, resultou para a China no desenvolvimento do que ficou conhecido como "socialismo de mercado". Mas qual a definição deste tipo de socialismo? Para Losurdo, seria "o emergir de um amplo os setor da economia privada e o esforço para tornar eficiente setores estatal e público da economia" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 66). Para o país aderir à tecnologia, organização industrial e gestão empresarial já amadurecidas no Ocidente capitalista, foi preciso ceder a alguns recuos como a criação das "zonas econômicas especiais" que são marcadas pelo pleno desenvolvimento do capitalismo. Diante de tais recuos, Losurdo questiona aqueles que criticam esse "socialismo de mercado". Afinal, como sobreviver diante de um contexto internacional sem a URSS e o campo socialista? Para o autor, o isolamento não seria uma escolha inteligente e relegaria o país no atraso e na impotência. Porém,
Apesar de seu alto custo, o resultado do novo caminho salta aos olhos: um desenvolvimento das forças produtivas bastante acelerado, um milagre econômico de dimensões continentais, o acesso de centenas de milhões de chineses a direitos econômicos e sociais nunca antes gozados e, em consequência, o início de um processo de emancipação de enormes proporções (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 66).
Essas foram modificações vistas no campo econômico, entretanto, surgiram outras no campo político. A partir de Xiaoping, a antiga defesa da ditadura do proletariado foi trocada por um desenvolvimento de regras democráticas e mais participativas. O bonapartismo maoísta foi substituído pelas regras do jogo, típico das democracias modernas, mas adaptadas a realidade chinesa e ao seu "socialismo de mercado". Dentre as várias mudanças para reduzir as influências do período maoísta, tivemos: "Para limitar e controlar esse poder, o governo utilizou as leis, um conjunto codificado de normas e garantias, um sistema legal antes desconhecido e agora em rumo de rápida expansão. Junto com a separação dos órgãos do partido dos órgãos do Estado, se desenvolve nas aldeias um sistema eleitoral baseado na escolha entre diversos candidatos" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 67). Essas medidas serão acompanhadas de outras em processo de estudo, mas o objetivo dos dirigentes chineses é dar uma maior atenção as liberdades formais que, historicamente, o "socialismo real" tratou como superficial e enganadora. Faz-se necessário, segundo essa leitura, um desenvolvimento econômico e social que não desvalorize liberdades tidas, na teoria marxista tradicional, como "formais". Com isso, se pretende construir um socialismo chinês que faça proveito das experiências e/ou dos pontos positivos, criados pelo Ocidente capitalista em suas revoluções democrático-burguesas. Em suma,
O regime social atualmente vigente na China se apresenta como uma espécie de gigantesca e prolongada NEP. É uma NEP tornada mais dificultosa em virtude da globalização e das relações de força mundiais, porém consciente da necessidade de dever, permanentemente, conjugar socialismo, democracia e mercado, superando uma visão simplista e grosseiramente homogênea da nova sociedade a ser construída (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 67-68).
Diante dessas questões, os dirigentes chineses se encontram em uma difícil cruzada: pois, se por um lado precisam levar adiante um processo de democratização do país, parte da modernização socialista; do outro, precisa está atenta para que essa democratização não signifique à conquista do poder por uma burguesia chinesa que se forma através do desenvolvimento do "socialismo de mercado". O objetivo norte-americano é tentar destruir a China "por dentro", ou seja, inserir o país no Ocidente capitalista e apostar na completa assimilação chinesa aos valores proferidos por Washington. E, "Infelizmente, o Governo dos EUA encontra apoio até à "esquerda". Quando se escandaliza com a prioridade dada para a conquista de um mínimo de igualdade material em um país em desenvolvimento com um bilhão e duzentos milhões de habitantes, uma determinada esquerda mostra ter regredido às posições dos neoliberais, que olham com desprezo não apenas Marx, mas até um liberal como Rawls" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 68). 

Questiona Losurdo: mas e a crescente miséria de setores da classe trabalhadora em oposição ao crescimento de uma burguesia endinheirada? Tomando como base um texto de Gramsci, escrito em 1926 em referência a URSS, Losurdo afirma que é possível a existência de um classe dominada e subordinada que esteja em condições de vida melhores que as da classe politicamente dominante. E sobre os novos ricos que surgiam na URSS dos tempos do NEP, chamados pejorativamente de Nepman, Losurdo afirma:
As massas populares que continuavam a sofrer uma vida de miséria ficaram desorientadas com o espetáculo do "nepman com capas de pele, tendo à sua disposição todos os bens da terra"; e, no entando, isto não deve constituir motivo de escândalo ou repulsa, porque o proletariado, da mesma forma como não pode conquistar o poder, também não pode mantê-lo se não for capaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos "interesses gerais e permanentes da classe"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 69).
Daí vemos a complexidade que é a construção de uma sociedade socialista, sem precedentes históricos e movida por um país em desenvolvimento. O processo que move essa construção não é linear. E dando números finais ao capítulo, Losurdo deixa a seguinte asserção:
Dada também a debilidade teórica do marxismo, seria tolice superestimar, em época de globalização, a gravidade dos riscos de assimilação que a China corre; mas seria dar prova de cegueira política considerar como certa tal assimilação e, ainda pior, contribuir para promovê-la, juntando-se à campanha antichinesa liderada pelos EUA. Enorme é a aposta em jogo. Entre dificuldades e contradições de todos os gêneros, está se perfilando a realidade de um país continental que sai do subdesenvolvimento e emerge decidido a manter a independência política e a conseguir a autonomia tecnológica para avançar em direção a uma modernidade socialista. O êxito desta tentativa modificará de modo drástico o equilíbrio planetário e o mundo enquanto tal (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 70).
VII. Marxismo ou Anarquismo? Repensar até o fundo a teoria e a prática comunista - 7.1 Materialismo ou idealismo?; 7.2 "Ditadura do proletariado" e "extinção do Estado"; 7.3 Política e economia; 7.4 O comunismo fora da abstrata utopia anárquica.

Neste capítulo, Losurdo visa debater interpretações errôneas surgidas dentro do campo da esquerda com relação as experiências socialistas do século XX, principalmente, para a URSS. Para ele existe um erro de setores idealistas da esquerda que colocam a queda da URSS como uma falha individual de Stálin, sendo a derrota de uma experiência histórica, fruto de um determinado indivíduo. Dentro desses setores, são comuns argumentos do tipo: "se Lênin tivesse vivido mais tempo, a história seria outra"; "se Trotski ou Bukhárin tivessem sucedido Lênin, a URSS não teria degenerado"; "o grupo dirigente da URSS após a morte de Lênin, se distanciou do verdadeiro Marx" etc.
Se tais avaliações fossem corretas, não a Marx seria preciso voltar, mas pelo menos a Platão e ao seu idealismo. É difícil, com efeito, imaginar uma liquidação mais radical do materialismo histórico. Nenhuma atenção é dada aos dados objetivos: a situação da Rússia e seu contexto histórico; as lutas de classe internas e internacionais, as relações de força nos planos econômico, político e militar etc. Tudo é atribuído à rudeza, à brutalidade, à vontade de poder, à paranoia, em suma, ao caráter de um único personagem (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 71-72).
Essa crítica acaba sendo uma criminalização ou banalização dos movimentos políticos decorrentes da práxis das massas oprimidas. O roteiro de toda revolução social, está fadado a cooptação por parte de uma burocracia dirigente que acabam se voltando contra as massas, implantando uma ditadura. Essa ditadura é fruto de uma burocracia traidora, que se afastou de um imaginado "verdadeiro Marx". Na URSS, por exemplo, foi vista a substituição dos sovietes por esse grupo dirigente centralizador e autoritário. Para Losurdo, "o entusiasmo inicial não pôde sobreviver ao aparecimento das dificuldades e contradições objetivas e à explosão dos terríveis conflitos que as seguem. A mudança só se consolida sobre uma base mais limitada, mas que não deixa de ser real" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 73). E continua:
No curso do processo de desenvolvimento das revoluções, o entusiasmo inicial da participação parece suspender por algum tempo a divisão do trabalho e as incumbências da vida quotidiana, que acabam, no entanto, reaparecendo: assim, apenas por essa razão, inevitável se torna uma limitação da base social ativamente empenhada, e inevitável resulta um certo grau de profissionalização da vida política (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 73).
Em suma, o entusiasmo inicial dos processos revolucionários, em que grande parte da população tende a ação política, não pode ser mantida frente possíveis dificuldades que surgem a nível nacional e internacional. Logo, faz-se necessário a formação de um grupo dirigente que lidere as transformações em curso, criando o novo e se defendendo das reações do velho. Sendo assim é impossível falar do enfraquecimento dos sovietes e do fortalecimento dos grupos dirigentes, sem levar em consideração o contexto que envolvia à construção do socialismo na URSS.

Para que uma revolução se torne vitoriosa, ela necessita criar uma forma política que seja duradoura, legitimando sua perpetuação no poder. E essa criação se realiza em meio a conflitos e contradições, sendo a extinção completa do Estado uma leitura errada do processo revolucionário. Longo de criar uma forma política estável e duradoura, seria geradora de uma verdadeira instabilidade. Losurdo fala na necessidade de combinar hegemonia com coerção, sendo esta última apenas utilizável em momentos de crise aguda. A própria ideologia liberal, que acusa o socialismo de "totalitário" por querer perpetuar a "ditadura do proletariado", faz referências a necessidade de suspensão das garantias constitucionais em momentos de anomia. É o caso de teóricos liberais como John Locke, Montesquieu, Stuart Mill etc. "Assim, ao ocorrer, ou ante o risco de uma situação de crise, o Estado liberal e democrático não tem dificuldade em transformar-se em uma ditadura aberta e mesmo terrorista" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 75).

Diante do idealismo de certos setores da esquerda, crentes que a extinção ou o enfraquecimento do Estado em momentos de crise como aqueles que a URSS vivenciou; resultariam no fortalecimento da revolução, afirma Losurdo:
De qualquer modo, a expectativa do desaparecimento de todos os conflitos e da extinção do Estado e do poder político, enquanto tal, torna impossível a solução do problema da transformação em sentido democrático do Estado nascido da revolução socialista; essa expectativa favorece o emergir ou a permanência de uma atitude composta de um "subversivismo" banal e inconsequente, incapaz de concretizar e dar estabilidade à emancipação das classes subalternas (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 76).
Em vez de erguer uma estabilidade frente as dificuldades internas e externas, a ideia de extinção do Estado resulta em instabilidade e fraqueza do processo revolucionário. "Conclusão: o estado de exceção relança a utopia e esta fortalece ulteriormente o estado de exceção" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77). Por isso que Losurdo trata a visão de Marx e Engels do fim do Estado (e consequentemente das nações, das classes sociais etc) como "messiânica" e que em última análise remete a uma visão anarquista que desempenha um papel nefasto tanto para o plano político quanto o econômico. E "no "socialismo real", à anarquia inventiva correspondeu o terror sobre a sociedade civil, um terror que se tornou cada vez mais intolerável quando desaparecem as razões para o estado de exceção e se tornou cada vez menos crível uma filosofia da história que prometia o advento do comunismo com o desaparecimento do Estado, das identidades nacionais, do mercado etc" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 78).

Enfim, essa visão anárquica e utópica é criticada por Losurdo e ela busca combatê-la. Mais que combatê-la, ele visa a separação de anarquismo e comunismo, entendendo esse último como um movimento real e objetivo, onde a utopia não se comporta. Mas quando ele faz crítica a essa visão utópica, ele não se iguala a teóricos como Bernstein que utilizou da crítica à utopia para reforçar seu revisionismo. Pelo contrário, sobre essa possível acusação, Losurdo se defende:
O fim que Bernstein queria cancelar (eternizando assim as relações político-sociais existentes nacional e internacionalmente), na realidade subsiste: trata-se de construir uma sociedade pós-capitalista e pós-imperialista, uma sociedade que não pode e não deve mais ser imaginada com as cores de uma utopia tola e acrítica. Distanciar-se dessa utopia é entender o significado fundamental da definição marxista do comunismo como "movimento real" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 78).
Alguns sectários, perguntariam: mas vale a pena lutar por uma sociedade nova em que não acredita no fim dos conflitos e das contradições? Em resposta a esse tipo de questionamento, oriundo de posições religiosas que não enxergam sentido em viver sem a esperança do paraíso, Losurdo encerra o capítulo com a seguinte reflexão:
Em contraste com esta tendência, em última análise anárquica e religiosa, está a lição de Gramsci, que teve o enorme mérito histórico de começar a pensar em um incisivo, radical projeto de emancipação que não pretende, porém, ser o fim da história. Trata-se de traçar uma clara linha de demarcação entre marxismo e anarquismo, despedindo-se finalmente das utopias abstratas, mas explicando ao mesmo tempo as razões históricas de seu surgimento (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 79).
Losurdo traz apontamentos interessantes como a necessidade de uma revisão teórica do marxismo, mas sem sair do norte que é a perspectiva revolucionária no campo político e do materialismo histórico/dialético, no campo intelectual e/ou teórico. Essa revisão do marxismo passa por sua diferenciação de ideais políticas consideradas por ele como anárquicas, abstratas e utópicas.

VIII. Além do capitalismo. O século XX e o projeto comunista - 8.1 Como superar o atraso em relação ao Ocidente capitalista; 8.2 Revolução social e revolução política; 8.3 Revolução de baixo e revolução pelo alto; 8.4 O processo de autonomia das camadas ideológicas e políticas; 8.5 "Falência", "traição" e aprendizagem; 8.6 Conclusão e início.

Alheio as ideias do que ele chama de "anticomunistas de profissão" e "comunistas ou ex-comunistas autofóbicos", Losurdo afirma que existem países e partidos políticos que buscam construir uma sociedade que vá além do capitalismo. E, como exemplo, ele cita a China, onde um partido lidera um quinto da humanidade em busca dessa nova sociedade. Graças a Revolução Chinesa de 1949, o país conseguiu não só obter crescimento econômico como também conquistou sua dignidade, frente um histórico de recentes de intervenções imperialistas. Tomando o caso chinês como exemplo na construção desse novo modelo societário, pergunta Losurdo: na construção de qual futuro está empenhado à China?

A China foi mais um país a frustrar as teorias desenvolvidas pelo movimento comunista que esperava uma revolução em países com alto grau de desenvolvimento capitalista. Diante de tal cenário, o que fazer? Ainda mais atrasada que a Rússia, a China tinha um desenvolvimento capitalista baixíssimo. O caminho a ser seguido pelos revolucionários após o sucesso da revolução, passa por três caminhos. Os dois primeiros são conhecidos historicamente e remetem a visão de León Trotsky e Josep Stálin. Para o primeiro, "Pode-se utilizar o país no qual os comunistas conquistaram o poder em primeiro lugar como base para estender a revolução e levá-la principalmente aos pontos altos do desenvolvimento capitalista" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 82); já para o segundo, "levando em conta as desfavoráveis relações de força internacionalistas, o objetivo principal pode ser a construção, no país do socialismo, do novo sistema social chamado a substituir o capitalismo" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 82).

Mas além dessas duas tradicionais alternativas, Losurdo aponta a existência de uma terceira que tem origem nas ideias de Liu Shao-Chi, primeiro presidente da República Popular da China. Segundo Liu, "após a vitória da revolução, o objetivo principal do novo poder popular consistia no desenvolvimento das forças produtivas atrasadas" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 82). O desenvolvimento dessa ideia só foi possível após a morte de Mao Tsé-tung que apostava na centralidade da luta de classes, através do artifício da Revolução Cultural. Após a ascensão de Deng Xiaoping, em 1979, a China passa da luta de classes como central para à tese do desenvolvimento econômico como objetivo principal. Em 1997, criticando a antiga postura do PCC nos tempos de Mao, disse Jiang Zemim:
O objetivo fundamental do socialismo é o desenvolvimento das forças produtivas. No estágio inicial, é necessário concentrarmo-nos, com absoluta prioridade, neste desenvolvimento. São diversas as contradições na economia, na política, na cultura, nas atividades sociais e em outros setores da vida da China e, por causa de fatores internos e externos, as contradições de classe, de uma certa dimensão, continuarão a existir por um longo período. Mas a principal contradição da sociedade é aquela entre as crescentes necessidades materiais e culturais do povo e o atraso da produção. A contradição principal continuará a ser esta durante a fase inicial do processo de construção do socialismo na China e em todas as atividades da sociedade. Disso deriva que somos chamados a fazer do desenvolvimento econômico o objetivo central de todo o partido e de todo o país e a assegurar que qualquer outra atividade seja subordinada e sirva a este objetivo. Apenas dando ênfase a esta contradição principal e ao nosso objetivo central, poderemos lucidamente investigar e controlar todas as contradições sociais e encontrar realmente sua solução. Desenvolvimento é o princípio absoluto. A chave para a solução de todos os problemas da China reside em nosso desenvolvimento (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 83).
Ou seja, o objetivo principal é desenvolver as forças produtivas do país ao ponto de igualar (ou até ultrapassar) o desenvolvimento conquistado pelos países capitalistas avançados. Esse objetivo descrito acima, contradizem o proposto por Marx no Manifesto Comunista. Neste livro, Marx e Engels enxergam a necessidade de, após a tomada de poder pelos revolucionários, o Estado ser fortalecido a medida que a burguesia perderia gradativamente seu capital. Porém, ele estava lidando com países com as forças produtivas altamente desenvolvidas, o que não é o caso chinês; além de se tratar de uma conjuntura internacional totalmente diferente da atual. Segundo o autor:
Mas, com o avanço do processo de "globalização", com a hegemonia dos EUA e do Ocidente, esta contradição se manifesta com clareza: um país em desenvolvimento que, hoje, realizasse uma nacionalização radical dos meios de produção, que se fechasse hermeticamente ao mercado capitalista, ficaria sem acesso à tecnologia mais avançada e certamente não teria como resolver o problema do desenvolvimento das forças produtivas. Assim, dadas tais condições, se tornam inevitáveis concessões mais ou menos amplas ao mundo do qual se pretende importar tecnologia e alguns elementos essenciais ao processo de modernização (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 84).
Mais uma vez enxergamos uma visão crítica de Losurdo aos escritos de Marx e Engels, visando verdadeiramente uma renovação da teoria marxista. Por fim, Losurdo defende que as três alternativas analisadas acima, não podem ser vistas de forma mecânica. Por exemplo, apesar de defender abertamente a exportação da revolução socialista, principalmente para países desenvolvidos, "Trotski pressiona a favor da coletivização da agricultura e pelo desenvolvimento de relações socialistas na Rússia soviética, protestando contra o perigo capitalista representado pela NEP" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 85). Por outro lado, "a escolha a favor da construção do socialismo mesmo em um só país não impede Stalin, quando se dão as condições favoráveis, de promover a criação de um "campo socialista" mediante a exportação da revolução" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 85). Esses três caminhos podem coexistir, mesmo que com a prevalência de suas prioridades.

O que une esses três caminhos é a visão de que, vitorioso o processo revolucionário, faz-se necessário a construção de novas relações econômicas e políticas. Na economia, essas novas relações significa o enfraquecimento da burguesia e a centralização dos meios de produção das mãos do Estado. A questão a ser discutida é a extensão desse Estado, mas até em experiências como a chinesa, o setor público exerce um papel hegemônico e primordial. E as novas relações políticas? No âmbito política, ocorre uma contradição entre teoria e prática.

Segundo Losurdo, a teoria busca criticar modelos representativos, considerados como superficiais. A principal crítica de Marx a democracia burguesa era que sua ideia de igualdade e liberdade era supérflua e abstrata. As regras do jogo democrático são consideradas fajutas e sua natureza significa a escolha de decidir qual será o opressor da vez. Porém, a prática demonstra o inverso ao se basear em modelos representativos no partido, nas fábricas etc., como é o caso dos sovietes russos. Sobre essa contradição, afirma o autor:
Há uma contradição fundamental entre teoria e prática. Enquanto a teoria aspira à liquidação da representação, à democracia direta, em última análise, à extinção do Estado, a prática caminha em direção ao desenvolvimento da representação, incluindo fábricas, bairros etc. Esta contradição se manifesta com força ainda maior no âmbito do partido comunista, pelo menos em seus melhores momentos, formado e estruturado com base em uma representação no mais alto grau. Quando essa complexa articulação se dissolve para dar lugar ao contato direto entre base e líder carismático, não se trata certamente de um momento feliz: é a irrupção do bonapartismo, que se manifesta com particular evidência na "Revolução Cultural" chinesa (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 88).
A contradição entre teoria e prática é acentuada a partir do momento que se busca o desenvolvimento das forças produtivas, pois a revolução nessa fase tende a ser feita pelo alto. Ou seja, ocorre não só uma menor comunicação entre partido e base como é feita várias concessões à burguesia interna e externa, visando garantir a contribuição de seu capital e de sua tecnologia. E "Neste sentido, o processo revolucionário não terminou: ele agora mira ao desenvolvimento das forças produtivas, um objetivo que, nas condições do cerco capitalista, pode entrar objetivamente em contradição com o objetivo da nacionalização e socialização dos meios de produção" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 88). Diante de tal cenário, Losurdo adverte: "Mas é necessário precisar que se trata de uma revolução pelo alto, que comporta o perigo de um distanciamento cada vez mais grave entre dirigentes e base" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 89).

A existência dessa revolução pelo alto, fazem muitos se questionarem: mas quem exerceu o poder nos países ditos socialistas, se a revolução foi gerida pelo alto? Para tentar responder a essa pergunta, Losurdo afirma que setores ideológicos e políticos tendem a ganhar certa autonomia nos processos revolucionários, principalmente em períodos de crise. E isso não foi visto apenas nas revoluções proletárias, mas também nas revoluções burguesas e o autor traz o exemplo da França. O período conhecido como o "grande terror", significou a autonomia dos jacobinos frente a classe social que eles eram originários. Oriundos da burguesia, os jacobinos acabaram se tornando autônomos por conta de um estado de exceção permanente, motivado pelas invasões estrangeiras ao território francês. "Novamente, a situação de crise aguda imprime às camadas ideológicas e políticas uma tendência, mais ou menos acentuada, à autonomia" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 90).

A mesma França foi palco de um processo semelhante, quando o aparato militar liderado pelo general Cavaignac (oriundo da burguesia liberal), inicialmente criada para reprimir o movimento operário, acabou ganhando uma autonomia que resultou na passagem da "ditadura da burguesia mediante a espada" para "ditadura da espada sobre a sociedade civil e até sobre a própria burguesia". Levando essa lógica argumentativa para as experiências socialistas, Losurdo atesta que no período stalinista ocorreu uma "ditadura da espada sobre a sociedade civil e sobre o próprio proletariado", sendo uma consequência da autonomia dos setores ideológicos e políticos na URSS. "Todavia, mesmo débil, e retorcido, um fio continua a ligar Luiz Napoleão à burguesia inspiradora da contra-revolução, assim como Stalin ao proletariado e às massas populares protagonistas da revolução" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 91-92). Diante de tal complexidade, afirma Losurdo:
Nesse sentido, tem razão Gramsci ao distinguir entre cesarismo regressivo e cesarismo progressivo; é preciso apenas acrescentar que o cesarismo é um dos modos pelo qual se verifica o processo de autonomia das camadas ideológicas, políticas (e militares). Em relação ao proletariado e às massas populares, os partidos comunistas que assumiram o poder e seus líderes terminaram por assumir uma relação que lembra a instituída em relação à burguesia ou pelos jacobinos ou por Luiz Napoleão (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 92).
Essas discussões levam ao retorno do balanço da experiência histórica iniciada com a Revolução Russa de 1917. E esse balanço, como já vimos, acarreta em duas visões que Losurdo enxerga negativamente; as visão da "falência" e  "traição". Em seu lugar, Losurdo propõe encarar esse processo histórico com base na ideia de aprendizagem que "Trata-se de enfatizar o caráter objetivamente contraditório do processo de construção da sociedade pós-capitalista e o próprio conhecimento deste processo de construção" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 93). Esse processo de aprendizagem deve acarretar em uma atualização da teoria marxista e, não partindo do zero nessa reconstrução, Losurdo aponta a importância de autores como Gramsci. Visando superar interpretações erradas, as reflexões propostas por Gramsci visam "pensar um incisivo projeto de emancipação que não pretenda ser o fim da história. Trata-se de deixar de lado a utopia abstrata, explicando ao mesmo tempo as razões históricas de seu surgimento" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 94). 

Tendo como suporte a ideia de aprendizagem, Losurdo transfere sua lógica no entendimento do socialismo chinês. Os chineses passam por um interessante e complexo processo em que "Em vez de resignar-se com seu atraso, a China pretende vincular os contratos que estipula com o Ocidente à importação de tecnologia avançada; em vez de liquidar em bloco a economia estatal e coletiva, faz de tudo para reestruturá-la e saneá-la, mesmo restringindo sua área de atuação, de modo a enfrentar com sucesso a concorrência mundial; em vez de abandonar-se aos mecanismos de mercado, procura de todos os modos transferir recursos para o Noroeste e as regiões menos desenvolvidas, empenhando-se em sua decolagem; em vez de converter-se finalmente ao neoliberalismo, investe na despesa pública  e nas obras de utilidade pública para manter alto o ritmo de desenvolvimento, não obstante a grave crise no Sudeste asiático; enfrentando todas as pressões, continua a opor-se à liberalização selvagem dos mercados financeiros" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 95).

Por fim, com base nesse balanço histórico que visa se fundamentar na ideia de aprendizagem, conclui Losurdo sobre a experiência vista na China:
Não há dúvida: a NEP inédita e gigantesca diante da qual nos encontramos se tornou mais precária e tortuosa em virtude da grave derrota sofrida pela perspectiva socialista não só no plano teórico, mas na relação de forças no plano internacional. O processo de "globalização", de um lado, condena os excluídos ao apartheid tecnológico e ao embargo ou à ameaça de embargo, de outro, se desenvolve atualmente sob o controle das grandes potências capitalistas e imperialistas. A tentativa dos comunistas chineses de construir uma "economia socialista de mercado" se dá assim em condições difíceis e se configura como uma luta bastante complexa. Mas dar como certo o triunfo do capitalismo e do imperialismo significa assumir uma posição ao mesmo tempo capitulacionista, que não leva em conta alguns dados fundamentais (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 95).
Encerrando o capítulo, Losurdo mostra como a classe dominante, através de suas ferramentas intelectuais, agem na destruição de movimentos e/ou acontecimentos políticos protagonizados pelos de baixo. Ele acredita que essa classe dominante atua em duas frentes e a primeira é ridicularizar qualquer perspectiva de construção de uma sociedade pós-capitalista. A segunda frente age na criminalização de acontecimentos políticos promovidos pelas classes subalternas, incutindo a ideia de que quando essas classes agem politicamente, ocorre uma passagem para a barbárie.
Isto é, a classe dominante consolida seu domínio privando as classes subalternas não apenas da perspectiva de futuro, mas também de seu passado. As classes subalternas são instadas a aceitar ou suportar sua condição, com o argumento de que toda vez que tentaram modificá-la produziram um excesso de horrores e escombros (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 96).
O exemplo da Comuna de Paris é dado pelo autor, assim como a constante defesa do seu legado, feito por Marx. O mesmo também defendeu Espártaco em carta endereçada a Engels, em fevereiro de 1861. Porém, a defesa dessas duas experiências distintas, não é total, mas sim visa a defesa daquilo que é essencial: ou seja, dois acontecimentos protagonizados pelas classes subalternas, mesmo que produtoras de contradições das mais diversas. Essa é a mesma lógica que deve ser feita na análise das experiências socialistas do século XX e, atualmente, do caso chinês. Pois, os mesmos que destacam os horrores praticados por esses acontecimentos, são os mesmos que não hesitam em cometer um verdadeiro genocídio, através de sofisticados embargos. Em suma, "A memória histórica é um dos dois terrenos fundamentais nos quais se desenvolve a luta ideológica de classe" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 97).

IX. Falência, Traição e Processo de Aprendizagem - Três perspectivas na leitura da história do movimento comunista - 9.1 Movimento comunista, superação das três grandes discriminação e conquista da democracia e do Estado social; 9.2 Da "falência" à "traição"; 9.3 A "traição", de Stalin a Kruschov; 9.4 Máxima extensão e crise incipiente do "campo socialista"; 9.5 Entre utopia e estado de exceção; 9.6 Revolução e processo de aprendizagem; 9.7 Processo de aprendizagem e desmessianização do projeto comunista; 9.8 Des-demonização de Stalin (e de Kruschov) e des-canonização de Marx, Engels e dos "clássicos"; 9.9 Capitalismo e socialismo: experimentos em laboratório ou luta e condicionamento recíproco?

Quando se fala em um balanço histórico do movimento comunista no século XX, o argumento da falências surge com força e até entre à esquerda. A ideologia dominante, presente na historiografia vista como "oficial", resume a complexidade deste século da seguinte forma: a democracia, chamada por Losurdo de "moça fascinante e virtuosa", é atacada por dois "brutamontes", primeiro o comunismo e em seguida o nazifascismo. Mas, através de complexos acontecimentos, a moça fascinante consegue se libertar dessas duas ameaças nocivas, tornando-se mais madura. Esse amadurecimento da democracia só foi possível graças a seu "casamento" com o "senhor capitalismo". Unidos contra as ameaças, esse casal costuma ser feliz em Washington e em Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street.

Segundo Losurdo, tal linha argumentativa não passa de uma "historieta edificante" que não se liga a história real. A democracia contemporânea que hoje desfrutamos, nasce do combate de três grandes discriminações que o "senhor capitalismo" alimentou durante essa história real, não abarcada por essa "historiografia oficial". Essas três discriminações, vistos como direitos inalienáveis, são: a) raça; b) patrimônio; c) gênero ou sexo. O autor visa explicar a reprodução dessas três discriminações no capitalismo e o papel do movimento comunista em seu combate, iniciando pelo preconceito racial que pode ser manifestado de duas formas. Na primeira manifestação, diz Losurdo:
De um lado, no nível planetário, vemos a "submissão de centenas de milhões de trabalhadores da Ásia, das colônias em geral e dos pequenos países" por obra de "poucas nações eleitas", as quais, prossegue Lênin, se atribuem "o privilégio exclusivo de formação do Estado", negando-o aos bárbaros das colônias e semi-colônias (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 100).
Já sobre a segunda:
De outro lado, a discriminação racial se faz sentir também no interior dos Estados Unidos, negando aos negros os direitos políticos e às vezes os próprios direitos civis e, de todo modo, subordinando-os a um regime de white supremacy (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 100).
Focando no preconceito racial visto nos EUA, Losurdo cita o sociólogo sueco Gunnar Myrdal que, em 1944, escreve o seguinte: "[...] a segregação está agora se tornando tão completa que um branco do Sul nunca vê um negro senão como servo e em situações análogas formalizadas e estandartizadas, próprias das relações entre castas" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 100). O tratamento dado pelo "senhor capitalismo" a discriminação racial nos EUA, vai ser responsável por um crescimento do movimento comunista entre os negros do país, abalando a crença nas instituições norte-americanas. A militância antirracista do movimento comunista, seja nos EUA ou em países coloniais ou semi-coloniais, faz Losurdo afirmar que é inadmissível a comparação feita entre comunismo e nazifascismo. Sobre essa comparação, tomando como base o debate sobre preconceito racial, afirma o historiador italiano:
Não tem sentido querer colocar o comunismo sobre o mesmo plano do nazismo, isto é, da força que com mais consequência e brutalidade se opôs à superação da discriminação racial e, portanto, ao advento da democracia. Se de um lado o Terceiro Reich apresenta-se como a tentativa, levada adiante nas condições da guerra total, de realizar um regime de white supremacy em escala planetária e sob hegemonia alemã e "ariana", do outro lado o movimento comunista forneceu uma contribuição decisiva à superação da discriminação racial e do colonialismo, cuja herança o nazismo pretendeu assumir e radicalizar. Querer liquidar a época iniciada com a revolução de Outubro como o período de crise da democracia significa tornar a considerar quantité négligeable os povos coloniais (além das outras vítimas das cláusulas de exclusão da tradição liberal), significa querer recolonizar a história (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 101).
Deixando de lado o debate sobre raça, Losurdo entra na questão envolvendo patrimônio. A sociedade civil no capitalismo, por diversos mecanismos, buscou limitar o direito a cidadania com base em cláusulas censitárias. Sobre os avanços existentes nas democracias capitalistas, especificamente no caso inglês, Losurdo alerta: "Particularmente, tortuoso foi no país clássico da tradição liberal o processo que conduziu à realização do princípio "uma cabeça, um voto", e tal processo não pode ser pensado sem o desafio constituído pela revolução na Rússia e pelo desenvolvimento do movimento comunista" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 101-102). Assim como na luta contra a discriminação racial, o movimento comunista teve papel chave na quebra das barreiras censitárias que marcavam as democracias liberais. E mesmo onde o voto foi tornado universal (para homens, vale ressaltar), ocorreu a criação de mecanismos de fuga como a Câmara Alta, que é prerrogativa das classes privilegiadas. Nos EUA, aponta Losurdo, o fator patrimônio se alia a discriminação racial e são os negros aqueles que figuram entre os estratos sociais mais pobres do país. Logo,
A superação das três grandes discriminações tornou-se possível através de um dúplice movimento: às numerosas e grandes revoluções de baixo para cima, que se desenvolveram tanto na metrópole capitalista quanto nas colônias, muitas das quais inspiradas pela revolução de Outubro e pelo movimento comunista, entrelaçam-se revoluções pelo alto, promovidas a fim de impedir novas revoluções pela base (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 103).
Losurdo aponta que a luta contra essas discriminações tomaram ponto alto a partir de 1917, mas existiam antes. Como, por exemplo, a luta de Robespierre e dos jacobinos contra a discriminação censitária que tratavam como "eco da escravidão antiga". A revolução de 1848, responsável pela vitória do sufrágio universal (masculino), traz consigo a reivindicação do direito ao trabalho, tendo forte protagonismo do movimento socialista. Na Alemanha de Bismarck, foi vista garantias de seguridade social, visando evitar revoluções pela base. Enfim,
E, de novo, sem Outubro e, mais em geral, sem o ciclo revolucionário que do jacobinismo conduz ao comunismo, não é possível compreender os desenvolvimentos e, antes ainda, o advento do Estado social no Ocidente. Também neste caso assistimos ao entrelaçamento de revoluções pela base e pelo alto, de revoluções ativas e passivas. Poder-se-ia dizer que esta é a regra nos processos de transformação histórica: que sentido há então em falar de "falência" a propósito da trajetória iniciada com a revolução de Outubro? (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 104).
Losurdo enxerga como inadequada os balanços históricos que tratam o movimento comunista como falido e para comprovar a fragilidade desse argumento, ele utiliza exemplos de países ex-coloniais que conquistaram sua independência e soberania nacional através de uma luta sob inspiração do movimento comunista. É o caso da China, humilhada pelas potências imperialistas ao ponto de em uma concessão francesa em Xangai, encontrarmos os seguintes dizeres: "Vedado o ingresso aos chineses e aos cães". Questiona o autor: será que um processo histórico de recuperação nacional como o chinês, inspirado no movimento comunista, pode ser considerado como falido? A mesma pergunta é feita com referência a outros países como o Vietnã e Cuba. Buscando resumir sua linha argumentativa de oposição ao argumento do movimento comunista como falido, diz Losurdo:
O mínimo que se pode dizer é que o atual discurso relativo à "falência" é gravemente eurocêntrico. É verdade que se trata de uma categoria muito difusa: Hannah Arendt fala do "desastre" da revolução francesa. No entanto, o mundo contemporâneo e a democracia atual não são concebíveis sem a ação e a eficácia desencadeadas, de modo direto ou indireto, primeiro pela revolução francesa e depois pela revolução de outubro: como havíamos visto, o movimento comunista influencia o próprio país-guia do Ocidente (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 105).
Após criticar a ideia de falência, Losurdo se volta para outra bastante comum, principalmente entre setores da esquerda: a ideia de traição. Segundo esses setores, o brutamonte que violou a senhorita democracia não foi o socialismo imaginado por Marx e Engels, mas o stalinismo, visto como uma expressão deturpante do "marxismo original". Qual a origem desse balanço histórico, considerado por Losurdo como equivocado? Segundo o autor, "Como é sabido, o motivo da "revolução traída" é particularmente caro a Trotski. Por outro lado, os autores que de um modo ou outro sofrem sua influência têm tendência a utilizar a categoria de "traição" para alvejar algum aspecto de todas as revoluções" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 106).

Para esses autores, revoluções sociais como a russa iniciaram com a movimentação intensa das massas, mas com o passar do tempo foi se tornando em uma ditadura contra o povo; sob gerência de uma burocracia autoritária e totalitária. Essa interpretação, alimenta uma ideia de que as revoluções feitas pelos de baixo, tendem a produzir uma casta de burocratas que, diferenciando-se do restante da população, tomam o processo revolucionário para si. A visão que desemboca na ideia de traição, ganha uma universalidade absurda ao ponto de explicar da França do século XVIII, até a vitória do fascismo na Espanha do século XX, quando um partido comunista stalinista monopolizou a resistência as forças franquistas. Mais também serve para explicar o fracasso da Revolução Cultural Chinesa. Por sua universalidade mecânica e procura incessante por uma "desburocratização" (onde os burocratas sempre são os outros, diga-se de passagem), Losurdo considera a visão da traição como fraca e sem consistência. E por isso, afirma:
Em qualquer hipótese, ela não é mais persuasiva do que a categoria de "falência". Intocados permanecem os motivos de sua fraqueza: fica sempre faltando explicar como um "falido" ou um "traidor" (ou o protagonista de um colossal "mal-entendido") conseguiu dar uma poderosa contribuição ao processo de emancipação dos povos coloniais e, no que toca ao Ocidente; à derrubada do antigo regime e à edificação do Estado social (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 107).
Mas a visão do socialismo real como "falência" ou "traição", foi visto com mais força após o XX Congresso do PCUS. Antes disso e após o fim da Segunda Guerra Mundial, o movimento comunista vivia seus anos de glória, com a URSS e Stálin recebendo elogios até de futuras adversárias ferrenhas como a filósofa Hannah Arendt que assim escreveu sobre: "modo, completamente novo e efetivo, de afrontar e compor os conflitos de nacionalidade, de organizar populações diferentes sobre a base da igualdade nacional"; é algo "a que cada movimento político e nacional deveria prestar atenção" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 108). Além da Arendt, outros não-comunistas destilavam elogios a URSS e ao socialismo, como Alcide De Gasperi, líder da Democracia Cristã na Itália. Até trotskistas são vistos reconhecendo os méritos de Stálin e da URSS, como um relato feito em 1953, logo após a morte do dirigente georgiano:
Ao longo destas três décadas, a feição da União Soviética transformou-se completamente. Tal é o núcleo da ação histórica do stalinismo: ele encontrou a Rússia trabalhando a terra com arados de madeira e a deixa proprietária de bomba atômica. Elevou a Rússia ao grau de segunda potência industrial do mundo e não se trata apenas de uma questão de puro e simples progresso material e de organização. Um resultado similar não se teria podido obter sem uma vasta revolução cultural no curso da qual mandou-se à escola um país inteiro para distribuir uma instrução extensiva (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 109).
Enfim, toda essa áurea que envolvia a figura de Stálin e a URSS, uma das protagonistas da derrota do Nazifascismo, foi abalada para sempre a partir de 1956 com o já citado XX Congresso do PCUS quando todos os equívocos do período foram resumidos a figura autoritária de um único homem. A partir dali, a figura de Stálin começava a ser pintada como um grande ditador, protagonista de milhões de mortes. É daí que a ideia de "traição" se fortalece, encontrando adeptos como Deutscher. As críticas chegam até a diminuir a capacidade política de Stálin, o que contradiz quando foi sob sua liderança que a URSS conseguiu vencer o Nazifascismo e formar um vasto campo socialista. Sobre essa reviravolta, diz o autor:
Compreende-se então que, no âmbito dos círculos comunistas empenhados em reagir à campanha anticomunista, emerja a tendência a pensar ou a lamentar: In principio era Kruschov! Este termina por configurar-se como o pioneiro da campanha anticomunista e tende, portanto, a ser individualizado e marcado como ponto de partida da parábola destrutiva culminada na ruína da União Soviética: nesta perspectiva, ele mesmo é que, embora formado no âmbito do partido e da tradição comunista, dilapidou-lhe o enorme patrimônio política e ideal" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 111). 
A ideia de "traição" é muito cara para o campo da esquerda, pois normalmente se resolvem as diferenças neste campo com base na ação de algum traidor. Foi com base nesse tipo de acusação que o campo socialista foi sendo corroído por dentro, tendo início com o rompimento das relações entre URSS e Iugoslávia. Os conflitos envolvendo soviéticos e iugoslavos foram os primeiros vistos no campo socialista, sendo seguidos por outros como: os embates entre vietnamitas e cambojanos e, em seguida, de vietnamitas e chineses. Sobre o incidente, questiona Losurdo:
Mas, na passagem de uma crise à outra, esta caça tornar-se sempre mais penosa e confusa. Quem é o "traidor" no curso do combate entre Camboja e Vietnã e entre Vietnã e China? E que sentido tem querer transformar a história do "campo socialista" em uma série ininterrupta de "traições", pelas quais se tornam responsáveis também os protagonistas de grandes lutas de emancipação? É uma visão que acaba por enlamear irremediavelmente as décadas de história que ela, no entanto, afirma querer defender (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 112).
Losurdo adverte para a necessidade de uma outra abordagem de acontecimentos e processos históricos tão complexos. Esses conflitos, resultado da extensão do campo socialista, fez surgir dois questionamentos não solucionados na época: "de que modo devem configurar-se as relações entre os diversos países, pequenos e grandes, que fazem parte de tal campo? E como conciliar a unidade na luta contra o imperialismo com a salvaguarda da soberania estatal dos países singulares?" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 112). Tais tensões não resolvidas, se agravariam após a vitória da Revolução Chinesa, dando ingresso a um país-continente que por sua história e dimensão sente-se obrigado a galgar uma posição de primeiro plano na arena política e econômica internacional.

Focando nas tensões entre URSS e China, novo componente desse campo socialista, Losurdo mostra como se deram as relações entre os dois países antes e depois da Revolução Chinesa de 1949. Antes e no imediato pós-guerra, Stálin visa alicerçar a influência soviética na Ásia, tendo em vista o futuro conflito contra os EUA que se desenhava. No contexto pré-revolucionário, a URSS conseguiu obter: o reconhecimento da independência da Mongólia exterior; a internacionalização (com salvaguarda para os interesses dominantes dos soviéticos) de portos (porto de Dairen) e ferrovias chinesas (como a da Manchúria do Sul). Enfim, "Pressionado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, também Chiang Kai-shek acaba por consentir nestas substanciais concessões a Stalin, firmando com a União Soviética um tratado que, não sem razão, foi definido "o último tratado desigual da China". Cumpre, pois, a Mao Tsé-tung recolocá-lo em discussão" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 113). 

As negociações entre Stálin e Mao Tsé-tung no contexto pós-revolucionário, são tensas. Se os chineses tratam o caso da Mongólia exterior com menos ímpeto, o mesmo não pode ser dito dos portos e ferrovias chineses. E é somente por conta de tratativas entre chineses e britânicos com o objetivo de realizar uma troca de embaixadores, que Stálin cede a Mao Tsé-tung com receio de surgir um "titoísmo chinês". Mesmo após essa tratativa, as relações entre os dois gigantes do campo socialista, permanecem sob tensão. Naquele contexto pós-guerra e de início da Guerra Fria, ambos os países faziam coro contra o imperialismo. Porém, a forma de combatê-lo se diferenciava. Segundo Losurdo,
A relação entre os dois grandes países socialistas revela-se difícil desde o início. Ambos fazem apelo à luta contra o imperialismo. Salvo que, para a União Soviética, ela significa em primeiro lugar enfrentar a política do Roll Back, adotada por Washington e, portanto, consolidar os resultados da Conferência de Yalta (explicitamente defendida por Stalin no curso das suas conversações com Mao). Para a República Popular Chinesa, enfrentar o imperialismo significa recuperar a integridade territorial e reafirmar a plena soberania também sobre a Manchúria Oriental, cancelando as concessões e os privilégios obtidos por Stalin de seus interlocutores de Yalta e depois de Chiang Kai-sheck (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 114).
Saído de um violento e custoso conflito mundial, a URSS adotava uma postura mais cautelosa, pois era necessário que o país se recuperasse das mazelas oriundas da guerra contra o nazifascismo. Porém, os chineses se encontravam na ofensiva, após o sucesso de um processo revolucionário que trazia de volta o orgulho nacional e a necessidade de integração. Logo, "a conquista do poder por parte dos comunistas não marcou o acabamento do processo de reconstituição da unidade nacional. Impõe-se a recuperação de Taiwan, a começar pelas duas ilhotas de Quemoy e Matsu" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 114). A luta de Mao Tsé-tung era por essa integridade nacional, mesmo que isso custasse constantes ameaças nucleares por parte dos EUA. Diante desse cenário:
Se já as repetidas ameaças nucleares estadunidenses obrigaram a China a redobrar esforços para passar a fazer parte do restrito clube das potências atômicas, a União Soviética teme que uma tal política encoraje o rearmamento nuclear de países como a Alemanha e coloque em crise a "coexistência pacífica", de quem tem necessidade para poder respirar (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 115).
Tal cenário resultará em uma constante tensão entre Moscou e Pequim, onde cada um país vai adotar o discurso da "traição" a seu modo. O debate sobre a questão nacional é esquecido e no lugar surge a necessidade de ambos os países defenderem o "marxismo original", contra "aqueles traidores". A causa desse conflito não poderia ser outro a não ser a mecanização da teoria marxista, buscando o título de um eventual "verdadeiro seguidor". Sobre tais embates, diz o autor:
A acusação de miopia provinciana e de aventureirismo endereçada aos dirigentes chineses conhece uma rápida escalada: no ápice da polêmica eles são acusados de estimular a catástrofe nuclear soviético-americana, com o fim de poder dominar o mundo graças a seu superior potencial demográfico. Na vertente oposta assiste-se a uma escalada análoga: bem longe de ser simples "oportunistas" na luta contra o imperialismo, os dirigentes soviéticos transformam-se eles mesmos em imperialistas e até mesmo nos imperialistas mais pérfidos e perigosos, aqueles que assumiram a herança do insaciável expansionismo czarista e que agora, na qualidade de novos czares, ameaçam diretamente a República Popular Chinesa, o coração mesmo do movimento de luta dos povos coloniais ou ex-coloniais. (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 115).
E qual e causa e o resultado dessas acusações? Segue Losurdo:
A denúncia da "traição" e a consequente excomunhão ricocheteiam de Moscou a Pequim. No entanto, bem longe de um ou outro ser traidor, ambos os partidos comunistas revelam-se demasiado "ortodoxos" no seu marxismo: fazem decorrer mecanicamente do socialismo o dissipar-se dos conflitos nacionais; e já que estes, apesar de tudo, continuam a subsistir; eis que são debitados à degeneração e à traição imputados a um ou a outro (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 115-116).
E,
Em conclusão, se por um lado pode comemorar sua máxima extensão, por outro lado, no momento da morte de Stalin, o "campo socialista" revela já duas fissuras muito preocupantes: são dois problemas não resolvidos, o da sucessão ordenada de um grupo dirigente a outro e o das relações entre os diversos países socialistas. Se a frustrada solução do primeiro abriu caminho às formas mais brutais e mais primitivas de violência no interior mesmo dos partidos comunistas, a frustrada solução do segundo problema significa a dissolução do campo socialista através de uma série de provas de força, invasões e ocupações militares, e até mesmo de guerras (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 116).
Além do problema da "traição", visto acima, Losurdo aponta outro erro que setores da esquerda reproduziram. Esses setores também desejam a liquidação do legado da Revolução de Outubro de 1917, mas à crítica não visa a construção de um modelo societário com base no liberalismo, pois seu objetivo é a construção da utopia. Aqui o marxismo se mistura com o anarquismo. Losurdo lista algumas reivindicações desses setores e após isso finaliza sua crítica a esses utopistas.

A primeira pauta, podemos assim dizer, desses setores, é a supressão do Estado. No momento imediato da Revolução Russa, figuras como Bloch desejavam à extinção do Estado, mesmo diante de um cenário internacional de pós-guerra em que a desestabilização era lei. O remédio ditado para combater o estado de exceção era a extinção da instituição que poderia proporcionar uma estabilidade, logo, o estado de exceção era combatido pelo próprio estado de exceção; causado em caso de extinção do Estado. Procurando transformar o soviete de poder em amor, Bloch e seus correligionários criticam qualquer caminho que vise uma Constituição, pois o Direito é tratado como ópio burguês. Sem Estado, sem Constituição e sem o Direito; forma-se a utopia que vem reforçar ainda mais o estado de exceção causado pela guerra mundial. "E assim, o estado de exceção radicaliza a utopia até torná-la abstrata e essa utopia abstrata enrijece-se ulteriormente e torna insuperável o estado de exceção" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 117).

Além do fim do Estado, tais setores da esquerda visavam a supressão da nacionalidade, vista como expressão burguesa que só causaria divisões e guerras. Descrevendo e criticando tal visão, diz Losurdo:
A retórica patrioteira e os ódios nacionais, em parte "espontâneos", em parte sabiamente atiçados, tinham livre curso no matadouro da guerra imperialista. Imperiosa se apresenta a exigência de iniciar um capítulo de história de todo novo. Eis então que emerge em certos setores do movimento comunista um internacionalismo irrealista, que tende a liquidar como simples preconceito as diversas identidades nacionais. É um "universalismo" que não sabe respeitar as peculiaridades, as diferenças: ele não pode senão agravar os conflitos e a questão nacional, primeiramente no interior da URSS e depois nas relações entre os diversos Estados socialistas. E de novo vemos agir a desafortunada espiral, estado de exceção - utopia abstrata -, estado de exceção ulteriormente agravado (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 117).
A extinção do dinheiro também é pauta desses setores irrealistas e a existência do escambo em partes da Rússia, por conta da catástrofe da Primeira Guerra e das dificuldades econômicas impostas ao país, era visto como o caminho para o "comunismo" e algo a ser nacionalizado. Não sendo fruto de dificuldades econômicas, esse escambo deveria ser organizado pelo poder soviético, obtendo de forma forçada os excedentes dos camponeses para assim distribuí-los. Sobre as três propostas desses utopistas vistas acima, conclui Losurdo: "Em todos os três casos aqui examinados, a utopia enfática e tornada abstrata (a espera messiânica do dissipar-se do Estado, das identidades nacionais e da moeda) acaba por transfigurar em antecipação do futuro pós-capitalista fenômenos (ausência de um preciso quadro constitucional, opressão nacional, insuficiente desenvolvimento do mercado nacional) que são, ao revés, expressões da persistência do antigo regime" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 118).

Esses utopistas são fruto de uma visão que enxerga a revolução como o fim da história e solucionadora de todos os problemas. Se esse sentimento é importante no período pré-revolucionário, visando a mobilização das massas oprimidas, ele precisa ser contido após o triunfo desse processo. Caso contrário, está fadado ao fracasso da utopia abstrata e irrealista. Assim sendo, "Só através de um trabalhoso e frequentemente contraditório processo de aprendizagem uma grande revolução consegue definir com precisão seus objetivos e as formas políticas chamadas a realizá-las" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 119). Citando Gramsci, Losurdo acredita que para uma revolução ser bem-sucedida ela precisa construir mecanismos institucionais e jurídico que regulem o legitimem o novo poder instituído. Por isso que a revolução burguesa na França vai de 1789 a 1871 e, entre contradições e erros, a nova classe dominante de então (no caso, a burguesia) experimenta várias formas de governo como: a monarquia constitucional, a república, a ditadura jacobina, a ditadura militar, o império, o regime bonapartista, o sistema representativo monocameral, o sistema representativo bicameral etc. As mudanças também abarcaram as Forças Armadas, os aparelhos ideológicos e diversos outros setores da vida política e social francesa. É apenas com a derrota da Comuna de Paris e o advento da chamada Terceira República que a classe dominante francesa consegue desenvolver uma estabilidade que perdura até a invasão de Hitler, já no século XX.

Essa estabilidade não é construída do nada ou em laboratórios, mas "no curso de amargas lutas, seja com o antigo regime, seja com as massas populares, e até de conflitos internacionais" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 120). Diante disso, atesta Losurdo:
A classe ou o bloco social que se propõe a substituir a burguesia tem diante de si um encargo ainda mais difícil. Deve "inventar" não só um novo regime político, mas também novas relações sociais, que não preexistem, como acontece com as relações sociais burguesas, já no interior da velha sociedade, mas só podem ser construídas a partir da conquista do poder. É a fundamental diferença entre "revolução socialista" e "revolução burguesa", trazida à luz por Lênin. Tanto mais complexo é o processo de aprendizagem que se impõe a um movimento que quer superar o capitalismo. E é sobre o terreno da solução frustrada desta tarefa, tornada ainda mais difícil pela política de contenção, cerco e agressão do imperialismo, que se verificou a derrota do socialismo (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 120).
Optando pela visão do processo de aprendizagem no balanço histórico do socialismo, Losurdo avança visando uma desmessianização do projeto comunista. Em suma, ele questiona antigas ideias alicerçadas entre os comunistas, dentre as quais a extinção do Estado. Com isso, ele questiona: será correto imaginar uma sociedade pós-capitalista sem a presença do Estado, do poder político, das normas jurídicas, da divisão social do trabalho e das nações? Segundo essa crença, o objetivo do comunismo é criar uma grande família em que não haveria necessidade de nenhuma regulamentação. Criticando tais crenças, afirma Losurdo:
Já apontamos os efeitos desastrosos da dialética estado de exceção - utopia abstrata - enrijerimento posterior do estado de exceção. Convém, ao contrário, ter presente a lição de Gramsci, que talvez mais que todos empenhou-se no esforço de desmessianização do projeto comunista. Colocando em discussão o mito da extinção do Estado e de sua reabsorção na sociedade civil, ele fez notar que a própria sociedade civil é uma forma de Estado; além disso, sublinhou que o internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais, que continuarão a subsistir muito depois da queda do capitalismo; já quanto ao mercado, Gramsci esclarece que conviria falar de "mercado determinado", ao invés de mercado em abstrato (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 121-122).
A questão da extinção do Estado e das nacionalidades, foram bastante caras pois a primeira deu espaço para interpretações errôneas como aquelas que aproximaram marxismo e anarquismo; enquanto a segunda foi responsável pelos conflitos internos no campo socialista, causando sua desagregação. Parece fácil, mas Losurdo aponta a complexidade que é rumar na construção de uma nova sociedade, visando a superação do capitalismo. Chegando ao poder, os comunistas encontram difíceis dilemas como: "devem em primeiro lugar preocupar-se em alargar ou consolidar a sua base social de consenso ou devem dar imediato início ao seu programa de coletivização integral dos meios de produção?" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 124). A segunda opção foi o ponto da crítica feita por Rosa Luxemburgo aos bolcheviques, tratando a reforma agrária feita na Rússia como "pequeno-burguesa".

Tomando como base a Rússia no período posterior a Primeira Guerra Mundial, outros dilemas são apontados pelo autor: "o objetivo principal do poder soviético reside na distribuição mais ou menos igualitária dos escassos recursos disponíveis ou no esforço para aumentá-los?" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 124). Em caso de afirmativa da segunda opção, outro dilema nasce: "é preciso usar como alavanca os incentivos materiais ou a consciência revolucionária e a dedicação à causa do socialismo por parte do "homem novo"?" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 124). A segunda opção foi escolhida durante o período da China maoísta e os resultados objetivos não foram satisfatórios. Enfim, tais dilemas mostram a complexidade do tema e como esse processo de aprendizagem se revela um exercício reflexivo trabalhoso.

Esse processo de aprendizagem, deve resultar no que Losurdo chama de des-demonização de figuras políticas como Stálin e Kruschov e, acumulado a isso, a des-canonização de intelectuais consagrados como Marx e Engels. Normalmente, nos balanços históricos feitos sobre a Revolução Russa e demais experiências socialistas no século XX, tem-se o erro de tratar o intelectual como portador exclusivo do "caminho correto a ser seguido"; enquanto para aqueles que participaram diretamente da execução do poder, restam apenas as acusações de traição. E "contrapondo a excelência das boas intenções de um lado e a mediocridade ou pior das ações reais do outro, esta abordagem abre de novo caminho à pseudo-explicação na chave da "traição"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 126). Essa falsa dicotomia é que deve ser anulada, através de uma análise histórica baseada na ótica do processo de aprendizagem. Em suma,
Qualquer que seja o modo pelo qual seja declinada, a categoria de "traição" pressupõe a canonização de Marx e Engels (e dos "clássicos", qualquer que seja o modo de defini-los) quando não a excomunhão daqueles que são acusados de haver traído o cânon. O recurso aqui sugerido à categoria de "processo de aprendizagem" implica, ao contrário, de um lado a des-demonização de Stalin (mas também de Kruschov e de Trotski), de outro a des-canonização de Marx e Engels (e dos "clássicos"). E esta des-canonização implica, por sua vez, que o processo de aprendizagem está bem longe de ser concluído (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 126-127).
Como podemos perceber, Losurdo propõe uma forma inovadora de fazer um balanço histórico de um conjunto de processos, complexos e contraditórios. Diante de tais questões e já partindo para o encerramento do capítulo, diz ele:
Se é ridículo querer reduzir o século XX à historieta edificante de que falei no início, não menos ridículo é configurar a história deste século como o confronto entre dois experimentos de laboratório, conduzidos separadamente um do outro e um falido e o outro bem-sucedido. Na realidade, assim como a história do Ocidente e do Terceiro Mundo não pode ser compreendida (com a superação das três grandes discriminações e o advento do Estado social) sem o desafio representado pelo "socialismo real", tampouco a história do "socialismo real" pode ser compreendida sem a política de intervenção, cerco e de embargo tecnológico e econômico levada adiante pelo Ocidente (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 127).
Losurdo chega a afirmar que o campo socialista realmente foi derrotado na queda de braços contra o capitalismo e o imperialismo. Tal admissão pode ser vista no seguinte trecho:
Assim, pois, os regimes nascidos sobre a vaga da revolução bolchevique não foram capazes, concretamente, de competir com aquele Ocidente que eles mesmos tinham contribuído para modificar em profundidade; em última análise venceu o sistema político-social que melhor soube responder ao desafio lançado ou objetivamente constituído pelo sistema contraposto e concorrente. E é assim que também neste caso a inicial vitória parcial conseguida pelo movimento operário comunista, com a capacidade demonstrada de difundir a sua concreta eficácia histórica também no campo adversário, transformou-se numa derrota de alcance estratégico (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 128).
Na atualidade, o que podemos enxergar? Losurdo aponta o desenvolvimento do socialismo chinês, que vai de encontro a tradição vista no socialismo real e também rompe com práticas da revolução cultural maoísta; passando a enxergar importância na constituição de um Estado socialista de direito que desenvolva uma estabilidade que se distancie de um estado de exceção. Isso é visto no oriente, pois no ocidente, a queda do campo socialista possibilitou uma involução e o desenvolvimento do desmantelamento do Estado social, assim como o retorno das três discriminações superadas no curso do século XX. Finalizando o capítulo - e também a primeira parte do livro - Losurdo faz a seguinte conclusão sobre o que foi debatido:
A "derrota" não é a "falência": enquanto esta última categoria implica um juízo negativo total, a primeira configura-se como um juízo negativo parcial, que faz referência a um contexto histórico determinado e que recusa destituir de realidade alguns países e até mesmo um país-continente, que continuam a reivindicar o socialismo. Sua resistência e sua vitalidade derivam da capacidade demonstrada de levar adiante concretamente, entre limites, erros e experimentos mais ou menos felizes, o necessário processo de aprendizagem, depurando o projeto socialista dos seus componentes abstratamente utópicos e redescobrindo o mercado socialista, o governo da lei na versão socialista, a persistência das diferenças e identidades nacionais etc. (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 129).
Com isso,
Abre-se uma fase nova e rica de incógnitas: o processo de aprendizagem não é e não pode ter um sucesso garantido, não é imune nem ao surgimento de contradições e conflitos nem ao perigo da derrota. É um processo que está bem longe de ter alcançado sua conclusão (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 129).
Segunda Parte - A China e o Balanço Histórico da Experiência do Socialismo

X. A Dialética da Revolução na Rússia e na China. Uma análise comparativa - 10.1 Revolução e pacto social: um confronto entre Rússia e China; 10.2 Algumas características filosóficas da revolução chinesa; 10.3 Independência nacional e desenvolvimento econômico; 10.4 A crise do pacto social de 1949; 10.5 Deng Xiaoping e a reformulação do pacto social de 1949; 10.6 Deriva nacionalista ou "nova revolução"?

O capítulo visa comparar os pactos sociais fundados na Revolução Russa e Chinesa, visando mostrar onde errou o pacto social soviético e o avanço chinês em não repetir os mesmos erros. Losurdo inicia trazendo uma descrição dos pactos sociais fundados na URSS, a partir de 1917 até a sua derrocada. A pergunta inicial do autor é a seguinte: quais as condições favoráveis para o sucesso de uma revolução? Baseado na visão de Lênin, Losurdo afirma que para uma revolução obter êxito, faz-se necessário um contexto específico em que a insatisfação das classes subalternas se aliam a incapacidade das elites dirigentes em dirigir o ordenamento social criado por ela mesma. O partido revolucionário de orientação comunista, deve surgir dessa crise propondo um reordenamento da sociedade, firmando um novo pacto social que assegure sua posição de grupo dirigente. E qual pacto social foi inicialmente estabelecido na Rússia após a vitória dos bolcheviques em outubro de 1917? Respondendo a tal pergunta, temos:
Este pacto assume em cada caso uma configuração diferente. Em outubro de 1917, ele fundou-se na promessa e no projeto dos bolcheviques de assegurarem terra para os camponeses e pão e paz para um povo exangue e exausto. Uma paz fundada, internamente, na igualdade entre as diferentes nacionalidades que constituem o imenso país  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 133).
Esse pacto inicial, constituído em 1917, sofreu uma crise a partir do processo que culminou na coletivização forçada da terra. Em meio a essa coletivização, o grupo dirigente bolchevique sofreu com um difícil impasse: pão para os operários ou terra para os camponeses? Em meio a guerra civil imposta pelas forças imperialistas, que reagiam contra a vitória dos revolucionários comunistas, o grupo dirigente bolchevique sofreu com o boicote de alimentos feitos pelos camponeses que reagiam as tentativas de coletivização da terra. Foi neste contexto que a carestia tomou conta da Rússia. Dois dos elementos constitutivos do pacto social estabelecido em outubro de 1917 entravam em choque e a escolha política feita pelos dirigentes bolcheviques foi pela coletivização da terra, então necessária em um cenário que apontava claramente para novos conflitos, agora com repercussão mundial. Assim sendo, 
É provável que a situação objetiva não oferecesse um amplo leque de escolhas (até os historiadores apaixonadamente anticomunistas reconhecem que os perigos da guerra tornavam urgente a industrialização do campo). Resta o fato de que a coletivização, que dispunha no campo de uma base de sustentação bastante débil, e que, por isso, foi resultado, fundamentalmente, de uma imposição pelo alto e de fora para dentro, abalou a relação entre o grupo dirigente bolchevique e a população rural no seu conjunto, assim como a relação entre russos e minorias nacionais não russas (que constituíam o grosso da população agrária)  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 134).
Os conflitos entre camponeses e os dirigentes bolcheviques, assim como russos e minorias nacionais não russas, cessaram após a eclosão da Segunda Guerra Mundial. A agressão nazista impunha um sentimento e uma necessidade de união nacional, frente o agressor em comum. O objetivo passou a ser eliminar as forças hitleristas, salvando todas as nacionalidades de serem escravizadas pelo Terceiro Reich e sua política xenofóbica. E "Pelo menos por algum tempo cessou a perseguição religiosa, melhoraram as relações com o campo e com as minorias nacionais que, de fato, representavam o alvo privilegiado da cruzada convocada para impor o ateísmo de Estado" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 134).

Após a derrota da Alemanha Nazista, o pacto social de união nacional foi logo desmanchado e um outro foi colocado em seu lugar. Sobre a crise do pacto estabelecido durante o conflito mundial, Losurdo aponta as razões de sua queda:
Com a derrota do Terceiro Reich esta política de unidade nacional foi apressadamente abandonada. Delineava-se assim a crise do novo pacto social, ulteriormente submetido a dura prova pelos persistentes sacrifícios impostos agora pela guerra fria e por uma sempre mais frenética corrida ao rearmamento. Mas o momento definitivo de crise foi introduzido por Kruschov. A demonização acrítica de Stalin, funcional para um acerto de contas no interior do PCUS e do movimento comunista internacional, golpeando e liquidando idealmente o protagonista não só da Grande Guerra Patriótica, mas também do pacto social que ela inaugurou, provocou uma verdadeira crise de identidade, escavando um gigantesco vazio histórico (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 135).
E o que foi posto no lugar desse vazio histórico? A proposta de Kruschov é chamada por Losurdo de mirabolante e ridícula, pois propunha o seguinte:
Lançando-se neste vazio, Kruschov organizou um novo pacto, em todos os aspectos irrealista, sobre cuja base a União Soviética deveria superar no que diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas, os Estados Unidos da América, até alcançar o estágio do comunismo, com a extinção das classes, do Estado etc (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 135).
Diante da criação e crise desses pactos sociais descritos acima, podemos concluir que os momentos áureos da Revolução Russa foi quando a causa revolucionária foi unida com a causa nacional. Fora isso, o que podemos ver foi a formação de crises e tensões. Essa é a conclusão do Losurdo que assim se expressa sobre:
Concluindo, podemos dizer que os momentos de crise da revolução coincidem com os momentos de crise do pacto social (repúdio da NEP num primeiro momento, e em seguida, o abandono da plataforma patriótica que norteou a resistência contra a agressão hitleriana), enquanto a maré alta da revolução coincide com as fases em que a causa da revolução se identifica, aos olhos de uma grande parte da opinião pública, com a causa da nação (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 135).
Losurdo lembra, antes de entrar no caso chinês, que a união nacional na Rússia não obteve êxito apenas no caso da Segunda Guerra Mundial, pois durante a guerra civil que se desenvolveu imediatamente após a vitória dos bolcheviques; a ideia de união nacional também serviu na proteção do país frente as agressões imperialistas, representadas pelo exército branco.

Mas descrito e analisado os pactos sociais fundados na Rússia após 1917, Losurdo questiona: qual o pacto social estabelecido pelo Partido Comunista Chinês (PCC) após à vitória em 1949? Diferente do caso russo, o processo revolucionário chinês foi desenvolvido durante uma guerra imperialista, fazendo com que a ideia de união nacional estivesse presente no pacto social fundado pelo PCC desde o início. Sobre isso, aponta o historiador italiano: "Ainda que presente já no âmbito de uma revolução que eclodira no curso da luta contra uma guerra caracterizada como imperialista, a dimensão do pacto nacional revestiu um papel decisivamente mais relevante numa revolução como a chinesa, que se desenvolveu, em primeiro lugar, como uma luta de libertação nacional" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 136). 

As promessas dos revolucionários chineses, liderados por Mao Tsé-tung, baseavam-se na superação da condição semifeudal e semicolonial da China. Como aponta o próprio Mao em setembro de 1949: "A era em que o povo chinês era considerado fora da civilização terminou" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 136). Durante mais de um século, a condição semifeudal e semicolonial chinesa proporcionou aos invasores as maiores expressões de arrogância, interferência e saques que jogaram um povo milenar na condição de subdesenvolvido. Fazia-se necessário superar esse atraso e o pacto social estabelecido pelo PCC, propunha tal meta. Mas as diferenças entre os processos revolucionários russo e chinês não param por aí, segundo Losurdo:
O que caracteriza a revolução na China não é só o fato de ela se desenvolver num país que se encontrava em condições semicoloniais (além de semifeudais), em evidente contraste com a revolução de Outubro, que se desenvolveu num país em que, às suas vésperas, era um dos protagonistas da competição imperialista e que concorria para a conquista da hegemonia. Esta diferença é conhecida. Há uma outra, talvez mais importante, mas raramente mencionada. Ao contrário da russa, a revolução chinesa desenvolveu-se desde os inícios sob a perspectiva da longue durée (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 137-138). 
Losurdo afirma que a Revolução Russa, contou com uma interpretação messiânica que atrapalhou a análise da realidade concreta. Nela vimos teóricos como Bloch que propunha o fim do dinheiro e do Direito, vistos como desvio burguês. É ele, por exemplo, que afirma querer transformar o poder em amor. Essa visão messiânica também é vista em outras figuras como Zinoviev e Lênin. O primeiro, após a fundação da Internacional Comunista, enxergava com grande entusiasmo a progressão de um movimento que logo menos tomaria conta do mundo. E Lênin, disse em discurso durante o congresso de fundação da IC que "A vitória da revolução proletária no mundo inteiro está garantida. Aproximasse a fundação da república soviética internacional" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 139). Sobre as consequências práticas dessa visão messiânica, atesta Losurdo:
Essa expectativa messiânica leva, de um lado, a transfigurar os conteúdos da tão ansiada sociedade pós-capitalista, de outro lado a imprimir no processo histórico uma imaginária e fantástica aceleração, a ponto de que o presente parece configurar-se quase como a plenitudo temporum (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 138).
Já a Revolução Chinesa, vitoriosa em 1949, se baseia em um processo de longa duração que inicialmente teria mais uma caráter semifeudal e semicolonial que propriamente socialista. Sobre essa visão chinesa, diversa da russa, analisa o autor: 
A visão de longue durée foi estimulada também pela consciência de que na China a revolução não seria imediatamente socialista, mas teria, por um lado "longo período" - observa Mao no final de 1947 - um conteúdo em primeiro lugar antifeudal e anticolonial, implicando, portanto, na permanência, mesmo depois da conquista do poder, de "um setor capitalista da economia". Vem aqui traçado um percurso em cujo âmbito já a primeira etapa duraria algumas décadas. Longe de ser a plenitudo temporum, a revolução é aceleração dramática de um processo de longa duração. A tradição messiânica judaico-cristão, ausente na revolução chinesa, parece cumprir um papel importante, através de múltiplas mediações, nas enfáticas expectativas de imediata regeneração que, algumas vezes, acompanharam a revolução russa (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 140).
A diferença entre os dois processos revolucionários é exemplificado quando vemos Trotski, enquanto comissário do exterior, afirmar que seu cargo se tornaria supérfluo pois o objetivo era a extinção dos Estados e das nacionalidades; enquanto o objetivo do PCC é justamente desenvolver o país para que ele possa competir em igualdade com as demais nações, retomando o orgulho e a projeção nacional que fora subjugada e sufocada pelas agressões imperialistas no país. Os revolucionários chineses aliam tarefas do presente, sem esquecer a perspectiva no futuro e, além disso, unem interesses de dimensão nacional com os de dimensão internacional. Pois, "É certo que a revolução quer contribuir para a unificação do gênero humano; porém, durante um inteiro período histórico, tal objetivo passa não pela dissolução das identidades nacionais, mas sim por seu rompimento, uma vez suprimida a opressão imperialista" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 140-141).

Em discurso proferido às vésperas da proclamação da República Popular da China, Mao Tsé-tung faz um verdadeiro resgate da história chinesa, passando por diversas resistências aos agressores imperialistas. Ele passa pela resistência contra a nefasta Guerra do Ópio, pela revolta dos Taiping contra os Ching (então aliados dos imperialistas), a guerra contra os japoneses entre 1894-1895, a revolta dos Boxers que enfrentou uma coalizão das nações imperialistas e, por fim, chegou na revolução de 1911 que se colocou contrária a dominação dos Ching. Depois de tantas lutas (e derrotas), a China finalmente se faz vitoriosa através da liderança do PCC.

Losurdo considera que "O marxismo-leninismo é a verdade finalmente encontrada depois de longa procura, a arma ideológica capaz de garantir a vitória da revolução nacional na China, a de conduzir o país à resolução do problema de saída do semifeudalismo e do semicolonialismo" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 142). E mais,
Junto com a longue durée emerge outra característica filosófica essencial do comunismo chinês, assim sintetizada por Mao: "As verdades universais do marxismo devem ser integradas às condições concretas dos diversos países e há unidade entre internacionalismo e patriotismo". O universalismo ou o internacionalismo abstrato, que Gramsci imputava a Trotski, parece estranho à tradição do comunismo chinês (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 142).
O caráter semifeudal e semicolonial da Revolução Chinesa, se baseou na defesa da integridade nacional, amputada pelas interferências estrangeiras. O caminho para a garantia dessa integridade, seria o desenvolvimento econômico do país. A revolução de cunho antifeudal e anticolonial, segundo o próprio Mao, seria inicialmente democrático-burguesa. Ela ainda daria espaço para uma atuação capitalista, mas seu objetivo seria a construção do socialismo em longo prazo. Inicialmente, "Mao parece identificar a contradição principal não no conflito entre burguesia e proletariado, como fará, sobretudo, nos anos da Revolução Cultural, mas no descompasso entre socialismo e atraso" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 144). Em meio a esse dualismo entre socialismo versus atraso, onde ficaria à burguesia nacional? Em que condições essa burguesia nacional estaria presente na China? Sobre esse importante questionamento, afirma Losurdo:
Trata-se, pois, de distinguir entre expropriação econômica e expropriação política da burguesia. Somente esta última deveria ser conduzida até o fim, enquanto a primeira, se não fosse contida dentro de limites bem determinados, comprometeria o desenvolvimento econômico necessário para garantir a integridade territorial e o ressurgimento do país e, consequentemente, o respeito do pacto social sobre cuja base os comunistas conquistaram o poder. No verão de 1958, Mao reafirmava seu ponto de vista perante o embaixador, um tanto desconfiado, da União Soviética: "Na China ainda há capitalistas, mas o Estado está sob direção do partido comunista"" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 145).
A recuperação da integridade nacional chinesa, passa inicialmente pela recuperação de Taiwan, então sob proteção dos EUA. Mas apesar de figuras nada simpáticas ao comunismo, como Winston Churchill, reconhecer que Taiwan pertencia por direito à China; os norte-americanos não cederam e chegaram a ameaçar o gigante país asiático com uma guerra atômica. Essas ameaças chegaram ao auge nos anos de 1954 e 1958. Em meio a essas ameaças, teria início os conflitos com os soviéticos, pois a URSS se mostrou omissa frente a tais agressões. A China teve que renunciar seu direito de ter de volta Taiwan, os soviéticos permaneceram omissos e a situação entre os dois países se agravou quando Kruschov propôs uma força naval sino-soviética que na prática representava a retirada da autonomia chinesa. Sobre esse conflito, diz o autor:
Houve entre China e URSS, neste momento, uma compreensível discordância de interesses. A primeira não entendia de modo algum sofrer a perda de Taiwan e o consequente desmembramento territorial que Washington planejava; a segunda almejava em primeiro lugar degelar as relações com os Estados Unidos, também para aliviar o peso terrível representado pela guerra fria e pela corrida armamentista (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 147).
A crise sino-soviética, iniciada por volta de 1958 e que chegou no ápice em 1960 quando a URSS retirou seus técnicos do país asiático, provocou na China uma crise do pacto social estabelecido em 1949; pois o sentimento era de não confiança na URSS no projeto que visava a integridade nacional. Qual o caminho a ser seguido após o distanciamento entre PCUS e PCC? Mao propõe a aceleração do desenvolvimento econômico e a visão de longo prazo é substituída pela queimada de etapas. E,
Entrementes, os planos quinquenais previstos tendem a passar de dez para oito, e já não se trata, neste período de tempo, de alcançar o nível médio de desenvolvimento dos países capitalistas avançados, e sim de "alcançar ou superar" o país capitalista mais avançado de todos. Na medida em que se aprofundava a crise com a URSS, os tempos programados para o desenvolvimento econômico sofreram uma aceleração (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 149). 
Esse é, pois, o contexto da criação do Grande Salto para Frente que visava desenvolver o país rapidamente como forma de se prevenir do esperado isolamento internacional que se desenhava. Os exércitos de trabalho, baseados exclusivamente no entusiasmo das massas populares, resultou em uma militarização da economia chinesa que causou um forte sentimento comunitário, típico do que Losurdo chama de "comunismo de guerra", visto anteriormente na Rússia soviética durante a agressão nazista. Acumulada a essa militarização econômica, os chineses passavam a apostar na expansão internacional da revolução socialista, mirando evitar o futuro isolamento do país no cenário geopolítico. Diante desse contexto surge também a Revolução Cultural que:
A Revolução Cultural respondeu a todos estes problemas. Enquanto, no plano interno, estimulando o entusiasmo de massa, promoveria o impetuoso desenvolvimento das forças produtivas, no plano internacional a transformação revolucionária das relações econômico-sociais e da superestrutura política e ideológica conferiria ulterior impulso e ulterior radicalização ao gigantesco levante em curso não só no Terceiro Mundo propriamente dito, mas também no Terceiro Mundo presente no coração da própria metrópole imperialista (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 151).
Caso o plano funcionasse, a China recuperaria o atraso frente o Ocidente capitalista e ainda veria a libertação dos povos das garras do imperialismo. Mas esta estratégia faliu e a China não viu as forças imperialistas ruírem no Terceiro Mundo e muito menos "no Terceiro Mundo presente no coração da própria metrópole imperialista". E, diante de tal fracasso estratégico, se viu na China uma repetição da disputa entre Stálin versus Trotski, mas envolvendo Mao e Lin Piao. Mesmo diante do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural, a China não cresceu como o esperado e a distância para países como a Inglaterra, permanecia intacta.

Diante de tal fracasso, os chineses reformulam um novo pacto social, liderado por Deng Xiaoping. E esse pacto passava por uma transformação na forma de lidar com os EUA, país que então impediu a retomada chinesa de Taiwan. Um novo tipo de relacionamento com os ianques não era mais mera opção, mas sim uma necessidade, frente o distanciamento dos soviéticos. Além disso, o chamado "campo socialista" dava claros sinais de esgotamento e, acumulado a tudo isso, enfrentar abertamente os EUA era sofrer com o monopólio científico e tecnológico que se concentravam no ocidente capitalista; então sob comando e influência norte-americana. Assim,
Compreende-se assim a polêmica desenvolvida por Deng Xiaoping contra a Revolução Cultural, acusada não só de incapacidade em desenvolver as forças produtivas, mas também de um desvio populista que a levou a perseguir o ideal de "um ascetismo universal e um grosseiro igualitarismo", duramente criticado pelo Manifesto do partido comunista (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 154-155).
Mas, diferente de Kruschov, Xiaoping não critica Mao ao ponto de manchar sua imagem perante as massas populares chinesas. Ele segue respeitando sua contribuição, mas apenas modifica o objetivo. Se para Mao "só o socialismo pode salvar a China", Deng acredita que "só o socialismo pode desenvolver a China". Em suma, "Para o Mao de 1949 o marxismo-leninismo era a verdade finalmente encontrada da arma ideológica capaz de assegurar a revolução anticolonial e antifeudal; para Deng esta arma é um marxismo-leninismo libertado de suas incrustações populistas e pauperistas" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 155).

As mudanças impostas por Deng, foi chamada por ele próprio de "segunda revolução" que dá impulso à causa do socialismo. Se tal visão já encontra desconfiança na própria China, o ocidente trata de liquidar a questão taxando sem qualquer análise mais acurada o país de restaurar o capitalismo. Tais críticas foram vistas durante a NEP russa, liderada por Lênin. Para Losurdo, "Nem é menos superficial a "evidência da restauração do capitalismo": ela perde de vista o fato de que também na China de hoje há um descompasso entre o quadro econômico e o quadro político, e esquece a distinção, que Mao já tinha conseguido fazer vigorar, entre expropriação econômica e expropriação política da burguesia"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 156).

Restaurado o capitalismo na China, o ocidente trata de analisar o que acontece no país como uma expressão do nacionalismo e não do socialismo. Diante de tal ideia, Losurdo aponta três erros. São eles: 01) ignora o peso que a questão nacional sempre teve no processo da Revolução Chinesa; 02) remove o nexo entre a emancipação nacional e a emancipação social que, curiosamente, constitui um elemento primordial do marxismo-leninismo; 03) misturar e/ou confundir o nacionalismo que preza pela dignidade nacional com o nacionalismo de tipo agressivo. Sobre esse último erro, vale destacar o seguinte trecho:
Em terceiro lugar, aquela argumentação não define ou define de forma bastante incorreta a categoria de nacionalismo. Quem são os nacionalistas? Há uma diferença entre a defesa da independência e dignidade nacional e um nacionalismo exaltado e agressivo? Apesar das superficiais semelhanças ou assonâncias, defrontamos-nos com duas posturas radicalmente diferentes: a primeira é universalizável enquanto a outra não o é. O reconhecimento e a defesa da dignidade de uma nação são perfeitamente compatíveis com o reconhecimento e a defesa da dignidade das outras nações  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 157-158).
Dito isso, o autor desenvolve um pouco sobre a essência do nacionalismo de tipo agressivo. Para isso ele cita três presidentes dos EUA (Bush pai, Bush filho e Clinton), o diplomata Henry Kissinger e Adolf Hitler. O que unem todas as expressões nacionalistas dessas figuras? É, basicamente, a ideia da existência de um "povo eleito". Para Bush filho, por exemplo, "Nossa nação é eleita de Deus e tem o mandado da história para ser um modelo para o mundo"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158). Bill Clinton, afirma que os EUA "deve continuar a guiar o mundo"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158). E se fomos mais longe, Bush pai enxergava a situação de modo semelhante: "Vejo a América como líder, como a única nação com um papel especial no mundo" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158). Já para Kissinger, "a liderança mundialé inerente ao poder e aos valores americanos" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158). Por fim, Hitler dizia que "Não pode haver dois povos eleitos. Nós somos o povo de Deus" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158). O que une tais figuras? É a ideia de povo eleito, cuja missão é nortear o resto do mundo. Essa ideia vai de encontro ao universalismo e gera conflitos internacionais. Mas sobre a comparação entre Hitler e os presidentes dos EUA, adverte Losurdo:
Ainda que radicalmente diferentes sob tantos outros aspectos, as duas ideologias aqui confrontadas apresentam um ponto em comum: inviabiliza qualquer universalização. Nisto consiste a essência do nacionalismo, ou do "hegemonismo" constantemente criticado nas intervenções dos dirigentes chineses (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 158).
Em suma, o posicionamento dos dirigentes chineses vão em oposição a esse nacionalismo agressivo e gestador de conflitos. É com base em um nacionalismo emancipador que a China vem conseguindo reduzir as distâncias entre ela e as potências capitalistas ocidentais. Para Deng, o socialismo é o norte que o PCC não pode desconsiderar. Internamente, Losurdo observa que o PCC apresenta um conflito entre duas correntes ideológicas que são assim descritas pelo autor italiano: "Poderíamos dizer que, no âmbito de uma participação comum em uma luta de emancipação, uma corrente nacional que vê concluído o processo revolucionário uma vez alcançados os objetivos nacionais (modernização, recuperação da integridade territorial e renascimento da China), contrapõe-se a uma corrente com objetivos bem mais ambiciosos, que remetem à história e ao patrimônio ideal do movimento comunista" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 159).

A análise acurada do processo revolucionário chinês, leva em consideração que o Grande Salto para Frente e a Revolução Cultural, representam uma breve ruptura com um processo contínuo baseado na ideia de longa duração. Logo, Losurdo enxerga as interpretações que taxam a China como capitalista, como juízos superficiais. Encerrando o capítulo, ele mais uma vez recorre as ideias de Gramsci que acreditava no seguinte: "Para que uma revolução possa considerar-se concluída, não é suficiente uma nova classe conquistar ou consolidar o poder; é necessário também que ela encontre uma forma política relativamente estável de gestão do poder" (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 160). Remetendo a Revolução Francesa, foi preciso um período de 1789 a 1871 para que a nova classe dominante (no caso, a burguesia) consolidasse sua dominação no âmbito político, econômico e social. Até lá, os franceses viveram sob várias formas de governo que foram da monarquia constitucional até a república. Transferindo esse raciocínio para o caso chinês, encerra Losurdo:
No que diz respeito à China, a novidade surgida da revolução está ainda à procura não só da forma política, mas também de conteúdos econômicos-sociais em que deveria encontrar expressão estável. Estamos em presença de um processo de longa duração e em pleno desenvolvimento, o qual já conseguiu resultados extraordinários, mas seus ulteriores desenvolvimentos e seu êxito são totalmente imprevisíveis (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 160).
XI. A esquerda, a China e o imperialismo - 11.1 "A China crucificada"; 11.2 Cultura liberal e celebração da superior "raça européia"; 11.3 "Só o socialismo pode salvar a nação chinesa"; 11.4 Os Estados Unidos, Dalai Lama e os massacres na Indonésia; 11.5 A CIA e Hollywood convertem-se ao budismo!; 11.6 O Tibet e a luta entre progresso e reação; 11.7 Um olhar sobre os "dissidentes"; 11.8 A esquerda, a autodeterminação e a democracia; 11.9 Do retorno de Hong Kong à pátria-mãe ao bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado; 10.10 O movimento comunista e a tragédia e farsa das "excomunhões"; 10.11 Era uma vez a esquerda...

Losurdo inicia este último capítulo, lamentando as errôneas leituras da China feita pela esquerda. Uma esquerda que esquecia a tragédia que havia atingido o grande país asiático, tragédia que desnudava à hipocrisia do ocidente liberal. Diferente do que criou a ideologia que acompanhou a cruzada neocolonialista na China, esse povo de origem milenar chegou a ganhar elogios de pensadores iluministas como Voltaire e Leibniz. Esses pensadores chamavam a atenção para a ausência de conflitos sangrentos na China, motivados por razões religiosas. Enquanto os chineses desenvolviam um forte espírito laico, os europeus se encontravam imersos em sangrentos conflitos religiosos e uma sociedade em que a aristocracia usufruía de privilégios que não se viam no gigante país asiático. Apesar da presença aristocrática, a China era marcada pela ocupação de cargos administrativos com base em concursos públicos.

Toda essa glória e impetuosidade da China, começa a ser ruída a partir da Guerra do Ópio, desenvolvida pelos britânicos. Os ingleses se interessaram em obter produtos chineses como a seda, a porcelana, as ervas medicinais etc., negociando em troca seus produtos manufaturados. Mas, suas roupas de lã, não receberam uma maior valorização do imperador chinês. Com isso, a Inglaterra pagava em prata pela aquisição desses produtos, reduzindo suas reservas. Qual o caminho encontrado pelos imperialistas britânicos para ganhar o mercado chinês? Simples, destruir o país através da comercialização do ópio, advindo da Índia. As várias resistências dos chineses ao produto, foram logo destroçadas. Era o início da ruína de uma civilização milenar, assim descrito por Losurdo:
Um povo de civilização antiquíssima vem a ser sistematicamente violentado, saqueado, humilhado. O seu corpo, o seu território veêm-se, um após outro, desmembrados pela matilha dos cães colonialistas e imperialistas, que se tornam sempre mais numerosos e sempre mais ávidos: à Grã-Bretanha unem-se, em feroz concorrência recíproca, França, Rússia, Portugal, Japão, Estados Unidos, Alemanha, Itália. Ninguém quer faltar a esse banquete, que se preanuncia fabuloso  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 162).
O desmembramento territorial ocorre simultâneo aos saques imperialistas e a China observa a desintegração do seu patrimônio. No contexto da revolta dos Boxers, as forças estrangeiras chegam a se unir com o intuito de derrotar a resistência nativa, mantendo a esfoliação do país. Os acontecimentos em consequência da Guerra do Ópio, são apoiados por históricos intelectuais liberais como John Stuart Mill e Alexis Tocqueville. Segundo Losurdo,
Assistimos assim à ruptura com a grande cultura iluminista, que havia remetido à China para pôr em discussão o eurocentrismo e ganhar um ponto de observação que permitisse um olhar para Europa de fora e com uma certa consciência crítica. Essa tentativa genial e generosa transforma-se agora num terrível ato de acusação dirigido contra os iluministas, expostos por Tocqueville ao escárnio público por terem considerado como um "modelo" "aquele governo imbecil e bárbaro, que um punhado de europeus dominava a seu bel-prazer" (O Antigo Regime e a Revolução, III, 3)  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 165).
Neste contexto, o mundo enxerga a escravização da mão-de-obra chinesa, então comparada constantemente aos negros. Essa escravização em benefício da raça branca de senhores civilizados, foi bastante justificada por outros pensadores como Nietzsche e Renan.
E assim, para dar um exemplo, as companhias estadunidenses procederam à dificílima construção da linha ferroviária destinada a consolidar a conquista do Far West mediante a importação da China de 10.000 coolies. A Guerra da Secessão terminara: para citar Engels, procura-se substituir a escravidão negra formalmente abolida pela "escravidão camuflada dos coolies hindus e chineses". E, como os negros, também os chineses, que, a despeito de tudo, conseguem melhorar suas condições, tornam-se nos EUA o alvo do ódio racial e de horríveis massacres  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 166).
Diante de tal cenário desolador, emerge em 1949 o PCC de Mao Tsé-tung, prometendo as massas populares à reconstrução da China; iniciando pela luta contra o desmembramento territorial que sofreu o país. Mas o principal obstáculo da China revolucionária é a atuação norte-americana que deseja reviver os tempos da "China crucificada", tendo em suas mãos o controle de Taiwan.

Além de Taiwan, a China também sofreu com o desmembramento do Tibet, caso que Losurdo dedica uma maior atenção no capítulo. Assim como no caso de Taiwan, Losurdo aponta o despreparo da esquerda em lidar com o caso do Tibet. O reconhecimento do Tibet como parte da China não tem início com Mao Tsé-tung e a Revolução Chinesa; pelo contrário, ela já tem mostras na China republicana de Sun Yat-sen. O interessante, aponta o autor, é que os EUA só começou a incentivar o movimento separatista do Tibet após a vitória dos revolucionários comunistas em 1949; visando tornar o Tibet um bastião do anticomunismo na região. Antes, sob domínio de Chian Kai-sheck, os ianques não contestavam a integração tibetana ao território chinês.

A revolta tibetana em 1959 não tem como objetivo se preocupar com o povo tibetano, mas sim desestabilizar o poder central em Pequim. Assim sendo, "Efetivamente, ao imperialismo britânico, sucede, após a segunda guerra mundial, o estadunidense: o separatismo tibetano é agora chamado a servir "aos interesses geopolíticos dos EUA", constrangendo Mao a dispersar suas forças já limitadas e assim criando condições para uma "troca de regime em Pequim""  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 171). A revolta antichinesa no Tibet é malsucedida e seu principal líder, o monge Dalai Lama, foge para a Índia. É após esse fracasso político que a ideologia imperialista trata de santificar o líder dessa revolta, como bem analisa Losurdo no seguinte trecho:
Agora, esse mesmo personagem ergue-se à glória dos altares: transforma-se em líder da não-violência, um modelo vivo de nobreza moral e de santidade. A transfiguração envolve o budismo tibetano enquanto tal, apresentando como um conjunto de exercícios espirituais e de doutrinas e de técnicas de sublimes elevações acima das misérias deste mundo. A indústria cinematográfica estadunidense trabalha a pleno ritmo para difundir esse mito  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 172).
Para isso, esquecem do passado de teor racista que por séculos tratou como inferior o povo tibetano e sua cultura. Sobre isso,
Durante séculos, a cultural ocidental olhou com desprezo o budismo tibetano, considerando sinônimo de despotismo oriental, por causa da centralidade por ele conferida a um dito deus-rei, sobre o qual se exerce o desprezo de autores entre si tão diversos como Rousseau, Herder, Hegel. Entre os séculos XIX e XX, os lama são considerados "uma encarnação de todos os vícios e de todas as corrupções, não apenas dos lama mortos". Quando, posteriormente, a Grã-Bretanha se prepara para a conquista, procura justificá-la em nome da necessidade de levar a civilização para "esta última fortaleza do obscurantismo", a esse pequeno povo miserável  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 173).
Losurdo admite o forte teor racista que os imperialistas tratam o Tibet, mas não esquece para as ações asquerosas da teocracia tibetana que muitos do ocidente, preferem omitir. O forte sistema de castas no Tibet era exemplificado na hora da morte: enquanto os aristocratas eram cremados, os demais viravam alimento para os abutres. Essa estrutura desigual foi bastante combatida pela Revolução Cultural, porém, sua forma violenta de lidar com o problema, serviu para a unificação do Tibet em torno das tradições. Mas o cerne da questão é que, agora, os tibetanos viraram super-humanos; enquanto os chineses, subumanos.

E diante disso, certa esquerda esquece da situação tibetana pré-revolucionária e do rígido sistema de castas que marcava à região. Esquece que as mudanças após a Revolução Chinesa, abalaram fortemente o feudalismo e à servidão que mergulhava o Tibet no atraso. As reformas impostas a partir da ascensão do PCC ao poder, promoveu ao povo tibetano o acesso a direitos humanos nunca conhecidos em sua história. Losurdo aponta erros da China no trato com o Tibet, mas também deixa claro os avanços ocorridos, principalmente, após o fim da Revolução Cultural.
É verdade, existe também uma questão de direitos nacionais. Em seu tempo, desencadeando uma luta indiscriminada contra cada forma de "obscurantismo" e atraso, a Revolução Cultural tratou o Tibet à maneira de uma gigantesca Vendéia a ser reprimida ou catequizada com uma pedagogia muito coercitiva, posta em ação por um "iluminismo" intolerante e agressivo proveniente de Pequim e dos demais centros urbanos habitados pelos han. Mas hoje esses erros de extremismo e universalismo agressivo foram corrigidos. A recuperação dos monastérios e da herança cultural tibetana prossegue vigorosamente. Mesmo formulando críticas, a revista estadunidense já citada reconhece que, na região independente tibetana, 60 a 70% dos funcionários são de etnia tibetana; reconhece estar em vigor a prática do bilinguísmo, mas também exige que a preferência seja dada à língua tibetana  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 176).
Mesmo diante de tais avanços, como explicar a campanha anti-chinesa?  Se no plano internacional, o caso tibetano visa desmembrar um gigante país asiático; no plano nacional, o objetivo passa pela resistência de uma aristocracia tibetana que reage ao processo de modernização por qual passa a região. Losurdo lembra que, analisando o perfil dos chamados dissidentes, temos indivíduos fundamentalistas no plano religioso e conservadores no plano social. O Dalai Lama não foge disso, pois sua intenção é unificar em um Estado tibetanos de diferentes regiões do globo, passando por países como China, Nepal e Índia. Curiosamente, "Celebrado como um campeão da não-violência, o Dalai Lama vem a ser condecorado em 1989 com o prêmio Nobel da paz. Entretanto, quando a Índia procede ao rearmamento nuclear, o mais importante sustentáculo desta política acaba sendo... o prêmio Nobel da paz!"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 177).

Mas, ao menos, Dalai Lama representa a totalidade do povo tibetano? Para Losurdo, não. Até livros insuspeitos de comunismo como o Livro negro do comunismo, admitem esse fato. E "Na verdade, com a "libertação pacífica" do Tibet em 1951, a derrubada do antigo regime nessa região e sua transformação político-social confrontaram-se de fato com uma incansável resistência dos grupos mais reacionários e das classes privilegiadas, mas também puderam contar com bases consistentes no âmbito da sociedade tibetana"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 177). Pontua Losurdo que "até tibetanos" puderam ser encontrados nas guardas vermelhas da Revolução Cultural. Mas por que tanto apoio de parte da esquerda ao Tibet e sua principal figura, Dalai Lama?
Não há dúvida de que hoje a situação no Tibet claramente melhorou no que tange ao desenvolvimento econômico, à liberdade religiosa e aos direitos culturais e nacionais dos habitantes daquela região. Mas não é isso que interessa a uma determinada esquerda que no Terceiro Mundo, longe de apreciar o esforço para sair do retrocesso e da miséria, projeta ali a nostalgia e a idolatria a uma sociedade pré-moderna, cujos cidadãos sejam "pobres, mas belos": uma sociedade que, como certos monastérios agora inseridos nos itinerários turísticos, deveria permanentemente servir como lugar de férias e de periódica regeneração espiritual do peso de uma opulência não obstante irrenunciável e, ao contrário, firmemente mantida  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 179).
Assim como o Taiwan e o Tibet, outro artifício político e ideológico utilizado pelos imperialistas são os chamados "dissidentes" como Wei Jingsheng que faz uma verdadeira cruzada "civilizatória", contra os "bárbaros" chineses. Como bem aponta Losurdo, tais dissidentes são professadores do "pensamento único ocidental" e não desrespeitam o PCC, mas o povo chinês de um modo geral. Seja qual artifício utilizado, o fato é que a China permanece de pé, constituindo-se a última fronteira a ser conquistada pelos imperialistas. Por isso que
Através de um bombardeio multimediático (ameaças de guerra comercial e de guerra propriamente dita), os EUA querem impor à China a mesma "democracia" que conseguiram exportar para a ex-União Soviética: ascensão ao poder de uma verdadeira e própria máfia; domínio incontestável de um autocrata, ladrão entre os ladrões, e pronto a bombardear inclusive o Parlamento; miséria em massa e assustadora diminuição da duração média da vida; recolonização de um enorme território reduzido à condição de Terceiro Mundo  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 183).
O caminho que os imperialistas buscam trilhar é o da fragmentação do vasto território chinês, criando "várias Chinas". Hong Kong, Tibet, Taiwan e Chingiang (que vem encontrando um considerável índice de crescimento econômico, assim como o Tibet) são pontos estratégicos que os imperialistas buscam utilizar-se em benefício próprio; visando desestabilizar o PCC. Sobre o argumento da autodeterminação dos povos e seus limites no caso chinês, aponta Losurdo:
Emerge claramente a instrumentalidade da palavra de ordem da "autodeterminação", agitada contra a República Popular da China pelo imperialismo e acompanhada de modo subalterno pela "esquerda" imperial. Não que esteja ausente o problema da autodeterminação; ele está, ao contrário, assumindo dimensões macroscópicas. Mas o que está ameaçado não é o direito à autodeterminação dos "dissidentes", que são "quatro (em número)", e nem mesmo aquele da população uigure de Chingiang, que se opõe, na sua maioria, às manobras secessionistas e é a sua primeira vítima. Não, o que está ameaçado é o direito à autodeterminação de um povo que soma um quinto ou um quarto da humanidade  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 185).
Vencido o projeto de fragmentação da China, regiões dissidentes como o Tibet logo seriam transformados em colônias ou protetorados, facilmente domináveis. Seriam presa fácil para a dominação e exploração imperialista, retornando aos nebulosos tempos da "China crucificada". Além do mais,
Desmembrar e empurrar para trás o país mais populoso da terra significaria para os EUA a consagração definitiva do seu domínio planetário imperial, do seu direito de intervir em Cuba, na Coréia, em Montenegro, na Rússia, no Iraque, em cada ângulo do mundo, do seu direito a condenar à morte por inanição, mediante embargo, qualquer povo que ousasse rebelar-se ou simplesmente exprimir um pouco de mau-humor em relação ao soberano de Washington  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 186).
Semelhante ao caso da autodeterminação dos povos, exige de países como a China (e também de Cuba) a adoção do pluripartidarismo aos moldes ocidentais. Pergunta Losurdo: devemos fazer coro a esse pedido, mesmo diante de exemplos desastrosos de recuos como o da Nicarágua Sandinista? Prosseguindo no questionamento, conclui o autor:
Como poderiam ser consideradas "livres" eleições impostas em um país colocado sob a constante ameaça de um ataque nuclear (em termos comerciais, mais, indiretamente, também militares)? Os "dissidentes" resultariam enormemente favorecidos não só pela superpotência multimediática e financeira do imperialismo mas, ainda mais, pelo fato de que eles poderiam apresentar-se como o único grupo apreciado por Washington e, portanto, como o único grupo capaz de salvar a população do "ataque nuclear" (de tipo comercial) e da morte por inanição  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 188).
Os dirigentes chineses respondem a tais pressões de forma exemplar, segundo o autor italiano. Pois não repetem erros grosseiros das experiências da Revolução Cultural e, ao mesmo tempo, considera importante a abertura para liberdades formais, garantidas por lei. Daí deriva uma série de reformas, lideradas pelo PCC, que visam dar uma nova cara a democracia e participação política na China. Atos extremistas como o visto na Praça Celestial em 1989, fazem parte de um contexto de ruína da URSS e do campo socialista, necessitando da direção chinesa um comportamento que preserve o país de tragédias posteriores, ou seja, em caso de vitória dos imperialistas. Entretanto,
Os progressos realizados no encaminhamento da democracia de base nas aldeias ou na difusão através do imenso país do princípio do governo da lei são reconhecidos mesmo pela imprensa ocidental menos cega pelo anticomunismo; assim como, com os dentes cerrados, é reconhecida a enorme extensão dos direitos humanos resultante do processo de saída do subdesenvolvimento. Hoje, de acordo com documentos oficiais de organismos da ONU, a duração da vida na China é cerca de dez anos mais elevada do que na Rússia  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 189).
Por fim e se encaminhando para o final do livro, Losurdo aponta para a necessidade da esquerda, internamente, repensar o papel da China internacionalmente. E esse repensar é colocado em pauta com a exposição de dois erros reproduzidos pela esquerda, se tratando da China. O primeiro se refere a insatisfação com que jornais como o Il Manifesto, abordaram o retorno de Hong Kong ao domínio chinês. A insatisfação também foi vista pelo conservador Chris Patten, último governador britânico de Hong Kong, fazendo o jornal italiano de esquerda se igualar a qualquer diário liberal e neocolonialista.

Já o segundo erro que expõe a necessidade da esquerda repensar à China, foi visto por um grande expoente do partido Refundação Comunista, Ramon Mantovani. Tratando a China como um país aonde o capitalismo foi totalmente restaurado, Mantovani se esquece de se solidarizar com os chineses que, segundo Losurdo, sofreram um ataque deliberado e intencional de sua embaixada em Belgrado (atual capital da Sérvia). Também se esquece de elogiar à frieza dos dirigentes chineses que poderiam jogar o mundo em um conflito mundial, respondendo justamente a um ataque intencional. No mais, Losurdo questiona qual o problema da China querer inserir-se na Organização Mundial do Comércio (OMC)? Se tal intenção representa a restauração capitalista no país, o que dizer do caso cubano que há anos luta pelo fim do embargo econômico, capitaneado pelos EUA? O direito de Cuba em participar do comércio internacional sem empecilhos da maior potência capitalista do mundo, também seria um exemplo de que o capitalismo foi restaurado na ilha caribenha?

Pelo contrário, a entrada dos chineses na OMC mostra a face de uma luta travada no âmbito de uma globalização que não perdoa isolamentos. Trata-se de uma luta difícil, complexa e contraditória? Sem dúvidas, garante Losurdo. Mas contar como restaurado o capitalismo no país por essa ação, seria simplificar uma realidade extremamente complexa. Segue o autor:
Basta folhear a imprensa estadunidense para tomar ciência da permanente polêmica contra a República Popular da China também sobre o terreno da economia. Ao invés de resignar-se com seu atraso, ela pretende vincular os contratos que assina com o Ocidente à importação de tecnologia avançada; ao invés de liquidar em bloco a economia estatal e coletiva, faz de tudo para reestruturá-la e recuperá-la, mesmo quando lhe restringe a área, de modo que ela possa enfrentar com sucesso a concorrência mundial; ao invés de abandonar-se aos mecanismos de mercado, procura de todo modo transferir recursos ao Norte-Oeste e às regiões menos desenvolvidas, empenhando-se para fazê-las decolar; ao invés de converter-se finalmente ao neoliberalismo, ela faz avalanca sobre a despesa pública e sobre obras de utilidade pública para manter alto o ritmo de desenvolvimento, não obstante a grave crise que incidiu sobre o Sudeste asiático; repelindo todas as exigências, ela continua a opor-se à liberalização selvagem dos mercados financeiros (graças à qual o Ocidente conseguiu colocar em crise os chamados "tigres asiáticos" e firmar o controle sobre os centros nervosos da sua economia): eis algumas das acusações recorrentes que vêm endereçadas à República Popular da China; desgraçadamente - insiste a imprensa estadunidense - aquele grande país asiático continua a ser dirigido por um partido comunista!  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 194).
Enfim, o argumento da restauração capitalista na China pode ser contestado com base nas ações dos inimigos desse grande país asiático. Mas indo além, Losurdo observa o problema central existente no movimento comunista: ele não conseguiu observar o êxito da revolução socialista em um país desenvolvido, como pensava Marx e Engels. Diante de tal cenário, três caminhos eram possíveis e todos foram descritos e analisados no decorrer da obra. O primeiro buscava na expansão da revolução, visando conquistar principalmente os países capitalistas desenvolvidos; o segundo visava desenvolver o socialismo no país em a revolução foi inicialmente vitoriosa.

Nenhum desses caminhos foi seguido pela experiência chinesa que optou por um terceiro, tendo o seguinte objetivo: "depois da vitória da revolução, a tarefa principal do novo poder popular consistia no desenvolvimento das forças produtivas obsoletas"  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 195). Essa visão triunfou na China em 1979, através da ascensão de Deng Xiaoping. Em troca do não êxito da revolução socialista em nenhum país de capitalismo avançado, busca-se desenvolver as forças produtivas ao ponto de igualar ou ultrapassar esses países. E dentro da conjuntura do mundo globalizado, nada disso pode ser feito através do isolamento. A radicalização levaria a fortes represálias por parte do mercado capitalista, pondo em risco tanto o desenvolvimento das forças produtivas, quanto a construção para o socialismo. Mas, infelizmente:
Desgraçadamente, nenhum daqueles que na esquerda falam da completa restauração do capitalismo na China leva em conta as contradições e as dificuldades reais enfrentadas pelo movimento comunista no curso da sua história e as contradições e as dificuldades reais que emergem da teoria e da prática do desenvolvimento das forças produtivas. Seria necessário proceder a balanços históricos, a reflexões e refundações teóricas, a análises concretas da realidade atual, dos processos de desenvolvimento, das relações de força, mas essa tarefa, quando é enfrentada com espírito crítico e sem preconceitos, sem subserviência a quem quer que seja, resulta terrivelmente difícil e trabalhosa. É mais fácil e mais rápido recorrer à excomunhão  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 197).
E se essa excomunhão, outrora foi feita pelos PCUS ao Partido Comunista Iugoslavo; hoje em dia é realizado por "pequenos partidos e grupelhos minoritários" (adjetivos do próprio Losurdo) contra um partido que dirige cerca de um quarto ou um quinto da humanidade. Por isso, era uma vez uma esquerda preocupada em analisar dialeticamente o caso chinês, entendendo sua importância no combate as forças imperialistas ocidentais. O livro, escrito para às esquerdas e visando sua autocrítica do passado (com o intuito de construir um novo futuro), é assim encerrado por Domenico Losurdo:
Uma esquerda digna desse nome deve saber recuperar sua memória histórica e sua capacidade de análise política e geopolítica. A tragédia infligida ao povo chinês a partir da guerra do ópio é um episódio particularmente repugnante nos anais do colonialismo e do imperialismo e é um episódio cuja conclusão é reposta em questão por obra dos Estados Unidos, que claramente identificaram na República Popular da China o seu inimigo principal, o obstáculo principal à realização do seu objetivo de domínio e homologação mundial  (LOSURDO, Domenico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 198).