sábado, 14 de janeiro de 2023

O Estado e a Revolução

  • Sobre o autor: Vladimir Lênin foi um político e teórico marxista, responsável por liderar a Revolução Russa em 1917. Suas ideias, produzidas no início do século XX, serviram como atualizadoras da teoria marxista. Essa atualização foi tão expressiva que Lênin acabou desenvolvendo uma corrente política/teórica dentro do marxismo: o leninismo. Responsável pela criação da União Soviética (URSS) e do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Lênin foi Presidente do Conselho do Comissariado do Povo da URSS, liderando o país socialista até sua morte. Dentre as suas principais obras, temos: a) Esquerdismo, doença infantil do comunismo; b) Que Fazer?; c) Imperialismo: fase superior do capitalismo. 


O Estado e a Revolução - Vladimir Lênin - Expressão Popular


Apresentação - Florestan Fernandes - Feita pelo sociólogo Florestan Fernandes, essa apresentação faz uma interessante análise sobre a obra. O primeiro ponto destacado por Florestan foi a capacidade de Lênin aliar reflexão teórica com militância política, tendo em vista que O Estado e a Revolução foi escrito em meio a agitação que antecedeu a Revolução Russa. Para Florestan, "nunca mais apareceu alguém com a envergadura teórica de Lenin e tão capaz de ligar criadoramente a teoria com a prática política" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 11). Outro ponto que marca a obra é seu forte teor polêmico. As polêmicas envolvendo esse escrito tem relação com as disputas e críticas severas que Lênin teceu a Social-Democracia (representada por teóricos como Karl Kautsky, Eduard Bernstein etc) e o Anarquismo. Ao realizar uma análise da interpretação de Karl Marx/Friedrich Engels sobre o Estado, Lênin visa delimitar a visão marxista sobre o Estado, diferenciando-se de sociais-democratas e anarquistas. Segundo Florestan, a obra "se volta para restabelecimento da verdadeira doutrina de Marx e Engels sobre o Estado e o papel da ditadura do proletariado na revolução socialista (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 10)

Outro ponto destacado por Florestan é a capacidade renovadora da obra, trazendo as reflexões de Marx/Engels à luz do século XX. Assim sendo, Lênin destaca três pontos que provam a importância da obra: a) sistematização da teoria marxiana do Estado; b) desmarcar o campo do marxismo, diferenciando-o de outras concepções políticas; c) junção da teoria com a práxis revolucionária. Finalizando essa apresentação, o sociólogo paulista, buscando refutar a ideia de que a obra era avançada demais para o contexto atual, responde:

Muitos poderão pensar que um livro como este só será necessário e útil quando existirem condições maduras para a tomada do poder revolucionário pelas classes trabalhadoras. Até lá, seria melhor manter o livro à distância das massas, dos quadros e das vanguardas do movimento socialista. No entanto, o que cria o quê? São as classes trabalhadoras que criam as condições de uma revolução social ou, vice-versa, estas que criam as classes trabalhadoras? Pensar dentro de tal esquema seria o mesmo que subjugar o movimento operário a uma ótica estreita, estanque e determinista, cega para a história produzida pelos homens. A revolução proletária não é como uma fruta madura e não basta erguer a mão para apanhá-la (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 15)

Dessa forma, Florestan acredita na importância e atualidade da obra que seria responsável por ajudar a educar as massas para o socialismo; levando esses trabalhadores ao conhecimento da tarefa dos revolucionários na tomada do poder, destruição do Estado capitalista e preparação para a transição socialista. O desemburguesamento do proletário só será possível através de uma educação crítica e anticapitalista, campos que a presenta obra de Lênin se encaixa perfeitamente. Por último, Florestan ainda defende a relevância da obra para a conjuntura nacional (a apresentação foi escrita em 1978). No caso, "o livro poderá desempenhar um papel deveras importante no despertar de uma consciência proletária socialista, sem a qual a pressão operária e o protesto sindical estão condenadas ao malogro"  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 16). A obra poderá servir como uma crítica as ilusões constitucionais, representadas por uma fé no Estado e na democracia burguesa. Vale salientar que em 1978 ainda vivíamos sob a Ditadura Militar, apesar do regime constituído ilegalmente em 1964 já dar mostras de enfraquecimento. Era um período de reorganização da esquerda brasileira e dos partidos/movimentos sociais por ela liderada. Assim, Florestan alertava sobre a "fé supersticiosa no Estado" e a necessidade de romper essa visão dentro de uma conjuntura de redemocratização e reorganização.  

Prefácio à 1° edição - Nesse breve prefácio, Lênin traça o roteiro da obra e seus objetivos. Primeiro ele destaca a importância da 1° Guerra Mundial, chamada de guerra imperialista, responsável pelo desenvolvimento do capitalismo monopolista de Estado. Diante dos horrores causados por esse conflito, o revolucionário russo considera a revolução proletária universal uma questão atual e urgente, diante de sua maturação. Mas antes se fazia necessário discutir o que fazer após o processo revolucionário e isso significava não só um resgate da obra de Marx/Engels, como uma crítica ferrenha a Social-democracia, adjetivada pelo autor de "oportunismo". Sendo assim, Lênin oferece o roteiro da obra:

Primeiro, passemos em revista a doutrina de Marx e Engels sobre o Estado, detendo-nos mais demoradamente nos pontos esquecidos ou desvirtuados pelo oportunismo. Em seguida, estudaremos especialmente o representante mais autorizado dessas doutrinas desvirtuadas, Karl Kautsky, o chefe mais conhecido dessa Segunda Internacional (1889-1914) que tão tristemente faliu durante a guerra atual  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 20).

Ao seguir esse roteiro, Lênin acredita que as massas poderão compreender melhor "o que devem fazer para se libertarem do jugo capitalista em futuro próximo"  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 21)

Capítulo 01 - As classes sociais e o Estado

1.1 O Estado é um produto do antagonismo irreconciliável das classes -   Lênin inicia a obra colocando seu principal objetivo: buscar depurar a teoria de Marx/Engels de interpretações oportunistas. Ou seja, ele se coloca como um intérprete da teoria marxiana, colocando outras interpretações como equivocadas e contrarrevolucionárias. Dessa forma, ele começa essa primeira parte do capítulo afirmando que o marxismo vinha passando por um processo de pacificação e deturpação, liderado por intelectuais e políticos pequeno burgueses. Essa pacificação se desenvolveu após a morte de Marx e tem como objetivo retirar sua natureza revolucionária, tornando sua teoria aceitável para a ordem burguesa, na medida em que não busca superá-la. Diante desse cenário, afirma o revolucionário russo: "Em tais circunstâncias, e uma vez que se logrou difundir tão amplamente o marxismo deformado, a nossa missão é, antes de tudo, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado"  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 26).

Essa depuração do marxismo será realizada utilizando trechos das obras de Marx/Engels, o que passa confiança a empreitada ambiciosa. Dessa forma, Lênin inicia sua missão utilizando reflexões e trecho da obra clássica "A origem da família, da propriedade privada e do Estado" de Engels. A citação exposta faz Lênin chegar a seguinte conclusão, sobre a concepção marxista do Estado: 

O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as conciliações de classes são inconciliáveis  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 27).

Diante dessa conclusão sobre a interpretação marxista do Estado, Lênin afirma que intelectuais burgueses e pequeno burgueses deturpa Marx ao interpretar que suas reflexões levam a ideia de que o Estado é o órgão de conciliação das classes e não da inconciliação. Visando mostrar a interpretação correta, Lênin afirma que: "Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes"  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 27). Assim sendo, a teoria marxista é contrária as visões que colocam o Estado como produto da conciliação das classes e não da submissão de uma classe por outra. 

Encerrando essa primeira parte do capítulo, Lênin acusa Karl Kautsky como o deformador mais sutil do marxismo naquela conjuntura. São as ideias de Kautsky que inspiraram a Social-Democracia, aquela que Lênin busca se contrapor em toda a obra. A sutileza da deformação desenvolvida pelo social-democrata é que ele não nega que o Estado é o produto da inconciliação das classes onde uma se sobrepõe sobre outra. Porém, apesar de aceitar esse pressuposto basilar, Kautsky "esquece" ou "omite" que "a libertação da classe oprimida só é possível por meio de uma revolução violenta e da supressão do aparelho governamental criado pela classe dominante"  (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 28). Tal "esquecimento", criticado por Lênin, faz sentido num contexto onde Kautsky e os sociais-democratas por ele liderados buscavam substituir a revolução violenta por uma transição pacífica ao socialismo. Em suma, são a essas deformações que Lênin se dirige e critica, tendo em vista que a essência revolucionária do marxismo não abdica da transformação violenta e radical da sociedade capitalista. 

1.2 Forças Armadas, prisões etc - Lênin, citando Engels, coloca as forças armadas como a consequência direta do desenvolvimento do Estado. Essas forças armadas corresponderiam a um poder público desenvolvido em sociedade, mas que dela se afasta cada vez mais. Elas estão presentes em todos os Estados e criam seus tentáculos, como as prisões e instituições com funções coercivas. Em suma, as forças armadas se constituem como um conjunto de homens armados que detém a sua disposição prisões e formas repressivas diversas. 

Mas qual a necessidade desse conjunto de homens armados? Representantes das classes dominantes, ao justificar a existência das forças armadas, alegam que suas raízes remontam das complicações da vida social e da diferenciação das funções sociais. Porém, alerta Lênin: "Essas alegações parecem "científicas" e tranquilizam admiravelmente o bom público, obscurecendo o principal, o essencial: a cisão da sociedade em classes irreconciliavelmente inimigas" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 30). Logo, o Estado seria o resultado da divisão entre classes sociais que desenvolvem interesses antagônicos e irreconciliáveis. Esses interesses divergentes fazem as classes dominantes criarem corpos de homens armados que detém em suas mãos as armas. Essas armas, se fossem liberadas para todos os membros da sociedade sem o mínimo de controle, poderiam ser utilizadas para numa eventual luta armada entre classes hostis. Desta forma, a luta entre exploradores (classes dominantes) e explorados (classes dominadas) se configuram em Lênin da seguinte forma: 

Forma-se o Estado; cria-se uma força especial, criam-se corpos armados, e cada revolução, destruindo o aparelho governamental, nos mostra uma luta de classes descoberta, põe em evidência como a classe dominante se empenha em reconstituir, a seu serviço, corpos de homens armados e como a classe oprimida se empenha em criar uma nova organização do mesmo gênero, para pô-la ao serviço, não mais dos exploradores, mas dos explorados (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 30).

É desta forma que, citando Engels, Lênin afirma que o poder público oriundo do Estado se fortalece na medida em que se agrava os conflitos entre as classes sociais; historicamente hostis e irreconciliáveis. Esse mesmo poder público cresce e se fortalece à medida em que esses Estados se tornam mais populosos e expressivos. Os atritos entre esses Estados que desaguam na Primeira Guerra Mundial, são usados por Lênin como exemplo desse fortalecimento e expansão do poder público. Agora esses Estados competem entre si por espaço, formando uma competição entre potências espoliadoras. Assim o autor dá atualidade aos princípios marxianos, mostrando como o Estado se apresentava naquela conjuntura em que ele estava inserido. No caso, a conjuntura da expansão imperialista. 

1.3 O Estado, instrumento de exploração da classe oprimida -  Segundo as reflexões leninistas, o Estado e seu poder público se mantém ativo através do financiamento realizado por intermédio dos impostos. A cobrança dos impostos é necessária e contribui, diretamente, para o desenvolvimento e manutenção do poder público e dos funcionários que esse poder abarca. Sendo assim, esses funcionários que representam o Estado, surgem através da sociedade civil e acima dela busca se situar. E quem coloca esses funcionários nessa posição privilegiada? 

São as classes dominantes, aquelas que detém o controle sobre o Estado e se configura como a classe social mais poderosa e economicamente dominante. Entretanto, citando Engels, Lênin coloca que em situações excepcionais é possível verificar uma certa independência desses funcionários em relação as classes dominantes. Mas essa certa independência, além da excepcionalidade, só pode ser observada em períodos de intensa luta de classes. 

Por fim, Lênin acredita que nem mesmo avanços como o sufrágio universal retira do Estado sua essência exploradora e ligada as classes dominantes. Ele considera o sufrágio como resultado de uma maturidade da luta dos trabalhadores, mas adverte que ela por si só não significa o fim do Estado como instrumento de dominação da burguesia. Inclusive, citando Engels mais uma vez, ele chega a afirmar que o sufrágio é resultado dessa instrumentalidade burguesa. E cutucando a Social-Democracia dentro e fora da Rússia, ele encerra: 

Os democratas pequeno-burgueses, do gênero dos nossos socialistas-revolucionários e mencheviques, e os seus irmãos, os social-chauvinistas e oportunistas da Europa ocidental, esperam, precisamente, "mais alguma coisa" do sufrágio universal. Partilham e fazem o povo partilhar da falsa concepção de que o sufrágio universal, "no Estado atual", é capaz de manifestar verdadeiramente e impor a vontade da maioria dos trabalhadores (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 34).

1.4 "Definhamento" do Estado e a revolução violenta - Concluindo esse primeiro capítulo, Lênin detalha as diferenças entre Estado burguês e Estado proletário. O Estado burguês é o representante oficial da atual classe dominante: a burguesia. Porém, citando Engels, o autor mostra que essa instituição sempre esteve à serviço da classe exploradora em questão. Pegando os diversos períodos e épocas históricas é possível perceber que existiu um Estado escravagista, servindo aos proprietários de escravos; um Estado nobre, servindo a nobreza feudal e, por fim, o Estado burguês já mencionado. Por outro lado, o Estado proletário surge após a queda do Estado burguês e tem como característica inicial a transformação dos meios de produção em sua propriedade. Ao transformar os meios de produção em propriedade do Estado, os proletários abolem as distinções de classe e, consequentemente, seus antagonismos. Desta forma, o proletário se destrói como proletário já que passa a inexistir as distinções de classe. O desenvolvimento dessa nova sociedade, em que as distinções de classe são extirpadas, geram a falta de necessidade do Estado. Afinal, qual o intuito de manter uma instituição gerada historicamente a partir das distinções e antagonismos entre as classes? Sem essas distinções e antagonismos, o Estado proletário perde sua utilidade. Assim resume Lênin este complexo raciocínio: 

O primeiro ato pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade - a posse dos meios de produção em nome da sociedade - é, ao mesmo tempo, o último ato próprio do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais se vai tornando supérflua daí por diante e desaparece automaticamente. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção. O Estado não é "abolido": morre (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 36).

Após a exposição dessas reflexões, em que é possível perceber a diferença entre Estado burguês e proletário, Lênin segue destacando alguns princípios da concepção de Estado para o marxismo. Esses princípios são enumerados e baseados nas obras de Marx/Engels. Vamos aos pontos: 1) O Estado burguês é abolido, já o proletário, morre. Qual a diferença? O burguês precisa ser aniquilado, pois é um instrumento da burguesia contra as classes exploradas. Seu fundamento de existência é a manutenção de variadas formas de exploração, logo, precisa ser abolido imediatamente. No seu lugar, o Estado proletário, instituição à serviço dos explorados (maioria da sociedade), não precisa ser abolido imediatamente. Esse novo Estado pode morrer definhando e sua utilidade torna-se desnecessária a partir do desenvolvimento histórico que leva a ausência de distinção de classe. Segundo Lênin: "o Estado burguês não "morre"; é "aniquilado" pelo proletariado na revolução. O que morre "depois" dessa revolução é o Estado proletário ou semiestado" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 37).

2) O Estado é uma força especial de repressão, seja ele burguês ou proletário. Sendo ambos instrumentos repressivos, qual seriam suas diferenças? Suas diferenças residem em seus objetivos. Enquanto o Estado burguês objetiva reprimir as classes exploradas, o proletário tem como finalidade combater as classes exploradoras. Dessa forma, afirma Lênin: "Dela resulta que essa "força especial de repressão" do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma "força especial de repressão" da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado)" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 37). 3) O socialismo se define como um sistema transitório em que o Estado definha, até finalmente morrer. Ou seja, "Só a Revolução pode "abolir" o Estado burguês. O Estado em geral, isto é, a plena democracia, só pode "definhar" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 38).

4) Ao afirmar que o Estado morre, Marx/Engels se dirige não só aos anarquistas como também aos oportunistas da Social-Democracia. Segundo Lênin, tal ideia foi concentrada sobre os ombros dos anarquistas, mas na verdade abarca também sociais-democratas que buscam prolongar a existência do Estado. 5) A derrubada do Estado burguês e conseguinte construção do Estado proletário só pode ser realizada através de uma revolução violenta. Dessa forma, Lênin reivindica o papel histórico da violência, debatido por Marx/Engels. Entretanto, esse princípio básico é escondido pelos oportunistas da Social-Democracia. Esses setores escondem a necessidade histórica de abolir o Estado burguês bruscamente e de forma violenta, tendo em vista a consequente reação das classes exploradoras. Assim, "Este só pode, em geral, ceder lugar ao Estado proletário (ditadura do proletariado) por meio da revolução violenta e não por meio do "definhamento" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 40). Quem deve definhar até sua morte é apenas o Estado proletário, pois seu fundamento não reside na exploração dos explorados. Encerrando o capítulo, afirma Lênin: 

A essência de toda a doutrina de Marx e de Engels é a necessidade de inocular sistematicamente nas massas essa ideia da revolução violenta. É a omissão dessa propaganda, dessa agitação, que marca com mais relevo a traição doutrinária das tendências social-chauvinistas e kautskistas. A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem uma revolução violenta. A abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e qualquer Estado, só é possível pelo "definhamento" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 41).

Capítulo 02 - A Experiência de 1848-1851

2.1 Às vésperas da revolução -  Lênin, tomando como base citações de Marx e Engels, traz um importante conceito para a teoria marxista do Estado: a ideia de ditadura do proletariado. Ele trata a ditadura do proletariado como uma das ideias mais relevantes do marxismo e critica o esquecimento desse conceito por parte dos social-democratas. O que seria a ditadura do proletariado em Lênin? Para o bolchevique, seria a transformação do proletariado em classe dominante. A ditadura do proletariado seria capaz de destruir a ditadura da burguesia, subjugando essa minoria exploradora aos interesses da maioria explorada. Diz Lênin: 

A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx ao Estado e à revolução socialista, conduz fatalmente a reconhecer a supremacia política, a ditadura do proletariado, isto é, um poder proletário exercido sem partilha e apoiado diretamente na força das massas em armas. O derrubamento da burguesia só é realizável pela transformação do proletariado em classe dominante, capaz de dominar a resistência inevitável e desesperada da burguesia e de organizar todas as massas trabalhadoras exploradas para um novo regime econômico (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 46).

Como podemos perceber, a ditadura do proletariado é responsável pela derrubada da ditadura da burguesia e consequente construção de um novo regime econômico, pautado nos interesses da maioria outrora exploradas. Existe uma necessidade dessa ditadura do proletariado ser apoiada pela "força das massas em armas", tendo em vista a resistência que a burguesia organizará com o intuito de preservar seus privilégios. No caso, o recurso as armas se faz necessário para garantir a hegemonia política da maioria explorada. Afirma Lênin: "O Estado é a organização especial de uma força, da força destinada a subjugar determinada classe. Qual é, pois, a classe que o proletariado deve subjugar? Evidentemente, só a classe dos exploradores, a burguesia" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 45)

Dito isso, a ditadura é do proletariado pois essa seria a única classe social organizada ao ponto de conseguir desenvolver uma resistência contra a burguesia. O proletariado, apesar de não ser a única explorada pelos burgueses, torna-se uma classe protagonista no desenvolvimento de uma nova sociedade. Sobre tal protagonismo proletário, Lênin diz: 

A derrocada da dominação da burguesia só é possível pelo proletariado, única classe cujas condições econômicas de existência a tornam capaz de preparar e realizar essa derrocada. O regime burguês, ao mesmo tempo em que fraciona, dissemina os camponeses e todas as camadas da pequena burguesia, concentra, une e organiza o proletariado. Em virtude do seu papel econômico na grande produção, só o proletariado é capaz de ser o guia de todos os trabalhadores e de todas as massas que, embora tão exploradas, escravizadas e esmagadas quanto ele, e mesmo mais do que ele, não são aptas para lutar independentemente por sua emancipação (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 46).

Após discutir o conceito de ditadura do proletariado, sua importância e necessidade, Lênin toca em outra questão a ser mencionada: o papel da vanguarda revolucionária. Tal vanguarda seria responsável pela construção da ditadura do proletariado, sendo líderes políticos desse processo. A vanguarda teria no partido revolucionário seu palco de ação e estaria com a missão histórica de conduzir as massas proletárias ao socialismo. Sobre essa vanguarda revolucionária, podemos citar: 

Educando o partido operário, o marxismo forma a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, capaz de dirigir e de organizar um novo regime, de ser o instrutor, o chefe e o guia de todos os trabalhadores, de todos os exploradores, para a criação de uma sociedade sem burguesia, e isso contra a burguesia (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 46-7).

Em suma, nesta primeira parte do capítulo Lênin discute importantes conceitos de sua teoria: a ideia de ditadura do proletariado, o protagonismo proletário e por último o papel educativo e dirigente que a vanguarda é responsável. 

2.2 A experiência de uma revolução - Novamente citando Marx, o autor chega a seguinte conclusão: todas as revoluções burguesas na Europa, incluindo a realizada na França, aperfeiçoaram o Estado quando se faz necessário destruir e quebrar tal máquina governamental. Essa quebra só será possível transformando o proletariado em classe dominante, ou seja, via a construção da ditadura do proletariado que no dia seguinte a sua edificação já comece a definhar em busca de um objetivo final: uma sociedade sem Estado, ou seja, sem antagonismo de classe. 

Lênin critica Kautsky, social-democrata, por reproduzir que a ideia de destruição e aniquilamento do Estado é característica específica do anarquismo. Essa ideia mentirosa acaba tendo relevância naquele contexto histórico em que os social-democratas procuravam justificar e legitimar a participação de seus países na Primeira Guerra Mundial, considerada por Lênin como uma guerra imperialista. A tarefa dos verdadeiros marxistas é atuar politicamente pela destruição do Estado, não pelo seu aperfeiçoamento. Essa tarefa teria ainda mais importância diante do novo contexto de desenvolvimento do imperialismo que seria responsável pelo seguinte processo: 

O imperialismo - época do capital bancário, época dos gigantescos monopólios capitalistas, época em que o capitalismo dos monopólios se transforma, por via de crescimento, em capitalismo de monopólios de Estado - mostra, em particular, a extraordinária consolidação da "máquina governamental", o inaudito crescimento do seu aparelho administrativo e militar, ao mesmo tempo em que se multiplicam as repressões contra o proletariado, tanto nos países monárquicos quanto nos mais livres países republicanos (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 53).

3. Como Marx expunha a questão em 1852 - Em 1852, Marx deixa claro que não foi ele que criou a ideia de luta de classes. Pelo contrário, segundo o mesmo, foram teóricos burgueses que reconheceram a existência da luta de classes. Sua distinção em comparação a esses autores é que, além de reconhecer luta de classes como um motor do processo histórico, acredita que seu desenvolvimento levará a ditadura do proletariado e que tal ditadura nada mais significa que um processo transitório para uma sociedade onde o Estado e as classes sociais sejam extintas. 

Sendo assim, Lênin afirma: só é marxista aquele que reconhecer a luta de classes e, junto a isso, defender a necessidade da ditadura do proletariado. Segundo Lênin:

Quem só reconhece a luta de classes não é ainda marxista e pode muito bem não sair dos quadros do pensamento burguês e da política burguesa. Limitar o marxismo à luta de classes é truncá-lo, reduzi-lo ao que é aceitável para a burguesia. Só é marxista aquele que estende o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado. A diferença mais profunda entre o marxista e o pequeno (ou grande) burguês ordinário está aí. É sobre essa pedra de toque que é preciso experimentar a compreensão efetiva do marxismo e a adesão ao marxismo (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 54).

Ao não reconhecer a necessidade da ditadura do proletariado, Kautsky é tratado por Lênin como um ex-marxista  que falsifica de forma oportunista a teoria marxista. Na verdade, a luta de classes levará a uma ditadura (do proletariado) responsável pela transição do capitalismo ao comunismo. Durante essa ditadura do proletariado, a burguesia e suas resistência são duramente aniquiladas e a luta de classes pode chegar a formas encarniçadas. Isso porque "O Estado dessa época deve ser, pois, um Estado democrático (para os proletários e os não-possuidores em geral) inovador e um Estado ditatorial (contra a burguesia) igualmente inovador" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 55). Por último, Lênin coloca claramente a bipolaridade entre ditadura da burguesia x ditadura do proletariado: 

As formas dos Estados burgueses são as mais variadas; mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 55).

Capítulo 03 - O Estado e a Revolução: a experiência da Comuna de Paris (1871) análise de Marx

3.1 Onde reside o heroísmo da tentativa dos comunardos - Apesar de apontar suas limitações, Marx (e o próprio Lênin) admitem a importância histórica da Comuna de Paris e afirmam que sua experiência foi mais valiosa do que centenas de programas e argumentos. Porém, apesar de reconhecer os comunardos, o marxismo aponta seu principal equívoco: a não destruição do Estado burguês. Logo, não é suficiente apenas passar para outras mãos a máquina burocrática e militar do Estado burguês. Pelo contrário, se faz necessário destruí-lo e construir um novo Estado que em seguida definhe rumo a uma sociedade sem classes. Essa é a principal condição para o sucesso de uma revolução popular. 

A referência ao termo "popular" é importante, pois se faz necessário pontuar o que significa "povo" em Lênin. Segundo o teórico marxista, povo seria a união de duas classes sociais oprimidas pela burguesia: o proletariado, classe protagonista, e o campesinato que se torna aqui um importante e necessário aliado na luta por uma sociedade socialista. Com as palavras de Lênin, temos o seguinte: 

A revolução capaz de arrastar a maioria do movimento só poderia ser "popular" com a condição de englobar o proletariado e os camponeses. Essas duas classes constituíam, então, "o povo". Essas duas classes são solidárias, visto que a "máquina burocrática e militar do Estado" as oprime, as esmaga e as explora. Quebrar essa máquina, demoli-la, tal é o objetivo prático do "povo", da sua maioria, dos operários e dos camponeses; tal é a "condição prévia" da aliança livre dos camponeses pobres e do proletariado. Sem essa aliança, não há democracia sólida nem transformação social possível (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 61).

3.2 Pelo que deve ser substituída a máquina do Estado, depois de destruída? - A pergunta que dar início ao tópico não foi respondida por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Visando não cair no utopismo, Marx e Engels esperaram experiências concretas para só então pensar numa resposta. A Comuna de Paris foi a experiência que os dois esperavam. De forma correta, os comunardos substituíram antigas instituições por outras novas. Ocorreu uma mudança qualitativa como, por exemplo: redução de todos os salários administrativos ao nível do salário operário, elegibilidade e amovibilidade absoluta de todos os empregos, supressão da polícia e exército permanente etc. 

Entretanto, faltou aos comunardos o principal: a expropriação da burguesia. Sem essa expropriação, a burguesia continua a deter recursos que podem ser organizados numa resistência contrarrevolucionária, como foi o caso em questão. Sobre essa ausência, pontuou Lênin: 

Elegibilidade absoluta, amovibilidade, em qualquer tempo, de todos os empregos sem exceção, redução dos vencimentos ao nível do salário operário habitual - essas medidas democráticas, simples e evidentes por si mesmas, solidarizando os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem, ao mesmo tempo, de ponte entre o capitalismo e o socialismo. Essas medidas reformistas são de ordem puramente governamental e política e, naturalmente, não atingem todo o seu significado e todo o seu alcance senão com a "expropriação dos expropriadores" preparada ou realizada, isto é, com a socialização da propriedade privada capitalista dos meios de produção (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 65).

3.3 Supressão do parlamentarismo - Lênin discute neste tópico sua crítica ao parlamentarismo, crítica falseada pela social-democracia preocupada em obter postos no Estado burguês. Essa mesma social-democracia, falsificando o marxismo, limitou a crítica ao parlamentarismo aquela realizada pelos anarquistas. Entretanto, Lênin pontua a existência de uma crítica marxista ao parlamentarismo, que se diferencia da reproduzida pelo anarquismo. Ao marxismo coube a ideia de que, diante de conjunturas não revolucionárias, é possível utilizar o parlamentarismo burguês de modo tático e jamais limitador. Mas, ao mesmo tempo, destroça a farsa que representa esse parlamentarismo que em resume assim se manifesta na prática: 

Decidir periodicamente, para um certo número de anos, qual o membro da classe dominante que há de oprimir e esmagar o povo no Parlamento, eis a própria essência do parlamentarismo burguês, não somente nas monarquias parlamentares constitucionais, como também nas repúblicas mais democráticas (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 66).

O parlamentarismo burguês não pode ser combatido com a supressão arbitrária das instituições representativas e de elegibilidade. Pelo contrário, a crítica marxista foca na manutenção dessas instituições, mas que transformem concretamente as assembleias representativas em órgãos políticos que trabalham verdadeiramente, executando funções legislativas e executivas ao mesmo tempo. Em suma, significa manter instituições representativas mas sob ocupação e protagonismo dos proletários. Dessa forma, "O socialismo simplifica as funções da administração do "Estado", permite que se suprima a "hierarquia", reduzindo tudo a uma organização dos proletários em classe dominante" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 69). Ainda segundo Lênin, nada do que foi pontuado acima significa utopismo. Pelo contrário, se defendendo dessa acusação ele pontua: 

Não somos utopistas. Nunca "sonhamos" poder dispensar bruscamente, de um dia para outro, toda e qualquer administração, toda e qualquer subordinação; isso são sonhos anarquistas resultantes da incompreensão do papel da ditadura proletária, sonhos que nada têm em comum com o marxismo e que na realidade não servem senão para adiar a revolução socialista até que os homens venham a ser de outra espécie. Não, nós queremos a revolução socialista com os homens tais como são hoje, não podendo dispensar nem a subordinação, nem o controle, nem os "contramestres" nem os "guarda-livros" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 70).

3.4 Organização da unidade nacional - Criticando Bernstein, outro teórico importante para a social-democracia que aproxima Marx de Proudhon, Lênin pontua as diferenças entre esses dois autores. Por enquanto que Proudhon é defensor do federalismo, Marx é assíduo defensor do centralismo. Não o centralismo burguês que depende exclusivamente da burocracia e do militarismo para funcionar, mas o centralismo proletário consciente, democrático e que unifique a nação em torno dos interesses populares. Sobre o centralismo proletário de Marx, questiona Lênin: 

Ora, se o proletariado e os camponeses mais pobres se apossam do poder político, organizando-se livremente em comum e coordenando a ação de todas as comunas para ferir o capital, destruir a resistência dos capitalistas, restituir a toda a nação, à sociedade inteira, a propriedade privada das estradas de ferro, das fábricas, da terra etc., não será isso centralismo? Não será isso o centralismo democrático mais lógico e, ainda melhor, um centralismo proletário? (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 74).

3.5 Destruição do Estado parasita - Em tempos de crescente falsificação e oportunismo social-democrata, Lênin afirma o elementar da teoria de Marx: sua defesa pela destruição do Estado burguês (de caráter parasitório) e consequente construção da ditadura do proletariado como transição para uma sociedade sem classes. Sendo assim, refutando o oportunismo dos falsificadores, Lênin diz: 

De toda a história do socialismo e da luta política, Marx concluiu que o Estado está condenado a desaparecer, e que a forma transitória do Estado em vias de desaparecimento, a forma de transição do Estado para a ausência do Estado, será o "proletariado organizado como classe dominante". Quanto às formas políticas do futuro, Marx não se aventurou a descobri-las. Limitou-se à observação exata, à análise da histórica francesa e à conclusão que sobressaía do ano de 1851, isto é, que caminhamos para a destruição da máquina de Estado burguesa (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 76).

Ao reafirmar o compromisso político e teórico de Marx em fazer o Estado burguês desaparecer, Lênin dialoga criticamente com uma leitura social-democrata que omitia tais posicionamentos do autor e forjava um marxismo alinhado aos seus interesses mesquinhos de mera ocupação desse Estado parasita. 

Capítulo 04 - Esclarecimentos Complementares de Engels

4.1 O "problema da habitação" -  A questão da habitação, levantada por Engels e trazida por Lênin, toca no debate da necessidade das expropriações no Estado proletário. Essas expropriações são necessárias, mas só podem ser feitas corretamente por um Estado de novo tipo. Essas expropriações incluem casas, fábricas e propriedades fundiárias da burguesia que deverão ser repartidos entre os trabalhadores despossuídos. 

4.2 Polêmica com os anarquistas - Trazendo citações detalhadas de Marx e Engels, Lênin mostra o teor da crítica marxista ao anarquismo. Os marxistas se igualam aos anarquistas no desejo de extinguir as classes sociais e o Estado. Entretanto, os marxistas entendem que se faz necessário desenvolver um Estado proletário pós-revolução com o objetivo de destruir a resistência da burguesia. Sem o emprego desse novo Estado, diferente do Estado burguês, torna-se impossível resistir a consequente resistência contrarrevolucionária orquestrada pelos burgueses. Concluída a tarefa de destruir a resistência burguesa, o Estado proletário começa a caminhar para seu desaparecimento, ou seja, estamos diante de um Estado em vias de extinção. Segundo Lênin: 

O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 81).

Após debater as semelhanças e diferenças entre marxismo e anarquismo no tocante o Estado, Lênin direciona sua crítica aos anarquistas "antiautoritários" (influenciados por Proudhon) e também aos oportunistas da social-democracia. Com relação aos proudhnianos, críticos do exercício da autoridade, Lênin exclama: 

Reclamam que o primeiro ato da revolução social seja a supressão da autoridade. Esses senhores já terão visto alguma revolução? Uma revolução é, certamente, a coisa mais autoritária que há, um ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra, com auxílio dos fuzis, das baionetas e dos canhões, meios por excelência autoritários; e o partido que triunfou tem de manter a sua autoridade pelo temor que as suas armas inspiram aos reacionários (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 82).

Já com relação aos sociais-democratas, Lênin aponta a crítica equivocada que esses desenvolvem contra o anarquismo. Por conta de seu oportunismo, esses setores não invocam uma parte essencial na concepção marxista do Estado: a sua necessidade de desaparecer, sendo o Estado proletário apenas uma transição para uma sociedade sem Estado e classes sociais. 

4.3 Carta a Bebel - Tomando como base a carta a Bebel, escrita por Engels em 1875, Lênin reforça a crítica engelsiana a ideia de "Estado popular" ou "Estado popular livre". Tais termos entram em contradição com o marxismo, já que só poderá existir plena liberdade com a completa extinção do Estado. Se existe Estado é porque ainda existem as classes sociais e antagonismos a serem solucionados. 

4.4 Crítica do projeto do programa de Erfurt - Aqui Lênin discute o programa de Erfurt, criticado por Engels em 1891. O autor acredita que muitas ideias desenvolvidas por Engels, podem ser perfeitamente associadas a social-democracia protagonista da Segunda Internacional. 

4.5 O prefácio de 1891 à Guerra Civil de Marx - Neste prefácio de Engels, escrito em 1891, Lênin afirma existir toda a visão negativa do Estado para o marxismo. Segundo o bolchevique, "Engels acentua, mais uma vez, que, não só numa monarquia como também numa república democrática, o Estado continua a ser Estado, isto é, conserva o seu caráter distintivo fundamental, que é o de transformar os empregados, órgãos e "servidores da sociedade" em senhores da sociedade" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 96). Sendo assim, seja numa monarquia ou república, o marxismo continua considerando o Estado como uma máquina de opressão de uma classe sobre outra, porém, Lênin adverte que "Uma forma de opressão e de luta de classes mais ampla, mais livre, mais franca, facilitará enormemente ao proletariado a sua luta pela abolição das classes em geral" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 98).

4.6 A eliminação da democracia, segundo Engels - Finalizando o capítulo, Lênin afirma que o objetivo do marxismo é suprimir o Estado, as classes sociais e, consequentemente, a democracia. Sobre a supressão da democracia, Lênin esclarece: 

À primeira vista, essa afirmação parece estranha e ininteligível; alguns poderiam mesmo recear que nós desejássemos o advento de uma ordem social em que caísse em desuso o princípio da submissão da minoria à maioria, que, ao que se diz, é o princípio essencial da democracia. Mas, não! A democracia não se identifica com a submissão da minoria à maioria, isto é, a organização da violência sistematicamente exercida por uma classe contra a outra, por uma parte da população, contra a outra (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 100).

E continua:  

Nosso objetivo final é a supressão do Estado, isto é, de toda violência, organizada e sistemática, de toda coação sobre os homens em geral. Não desejamos o advento de uma ordem social em que caducasse o princípio da submissão da minoria à maioria. Mas, em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele tomará a forma do comunismo e que, em consequência, desaparecerá toda necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão de um homem a outro de uma parte da população à outra. Os homens, com efeito, habituar-se-ão a observar as condições elementares da vida social, sem constrangimento nem subordinação (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 101).

Sendo o comunismo um novo estágio do desenvolvimento humano, onde outro homem seria forjado, não se teria mais necessidade de qualquer aparato governamental ou de qualquer Estado, inclusive, uma república de tipo democrática. Afinal, estamos diante de uma nova etapa da vida humana com novas ideias, comportamentos, práticas e conceitos. 

Capítulo 05 - As condições econômicas do definhamento do Estado

5.1 Como Marx expõe a questão - Recorrendo ao que Lênin chamou de "teoria da evolução", Marx teria colocado a necessidade histórica de um período de transição do capitalismo para o comunismo. Para isso ele aplica essa "teoria da evolução" sobre o capitalismo contemporâneo, chegando a conclusão de que esse sistema tende a falência e uma nova sociedade deverá ser levantada: no caso, a sociedade comunista. Defendendo Marx, Lênin diz: "Marx não se deixa seduzir pela utopia, não procura inutilmente adivinhar o que não se pode saber. Põe a questão da evolução do comunismo como um naturalista poria a da evolução de uma nova espécie biológica, uma vez conhecida a sua origem e a linha de seu desenvolvimento" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 104-5). Essa aplicação científica do evolucionismo, levaria a percepção da necessidade de um período transitório. 

5.2 A transição do capitalismo para o comunismo - Esse período de transição política se mostra através da construção da ditadura do proletariado, ou seja, o Estado proletário desenvolvido pós-revolução. Tal ditadura, seria um contraponto ao Estado e a democracia burguesa que na prática tem a seguinte natureza: 

A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista; no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua sempre a ser, mais ou menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores fundada na escravidão. O escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem por tal forma acabrunhados pelas necessidades e pela miséria, que nem tempo têm para se ocupar de "democracia" ou de "política"; no curso normal e pacífico das coisas, a maioria da população se encontra afastada da vida política e social (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 106-7).

Porém, a transição da hipócrita democracia burguesa para o comunismo não é uma tarefa fácil. Pelo contrário, Lênin coloca como uma tarefa árdua e que só poderá ser realizada através de uma ditadura do proletariado responsável por criar condições de resistência aos capitalistas exploradores. Sobre essa ditadura e seu papel de resistir a burguesia, o bolchevique pontua: 

Ao mesmo tempo em que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres, a do povo e não mais apenas a da gente rica, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. Devemos reprimir-lhes a atividade para libertar a humanidade da escravidão assalariada, devemos quebrar sua resistência pela força; ora, é claro que onde há esmagamento, onde há violência, não há liberdade, não há democracia (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 108).

Mas essa ditadura do proletariado não significa a superação do Estado. Tal superação só será possível no comunismo, estágio ulterior onde tanto o Estado quanto as classes sociais serão extintas e uma nova sociedade se construirá. Sobre a extinção do Estado na sociedade comunista, temos: 

Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, só então é que "o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade". Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 109).

Logo, apenas no comunismo será possível alcançar o fim do Estado e uma democracia perfeita, tão perfeita que se tornará supérflua e tenderá a extinção numa sociedade não fundada em conflitos e divisões. Até chegar neste estágio superior, existirá violência contra os exploradores: "Compreende-se que a realização de uma tarefa semelhante - a repressão sistemática da atividade de uma maioria de exploradores por uma minoria de exploradores - exija uma crueldade, uma ferocidade extrema: são necessárias ondas de sangue através das quais a humanidade se debate na escravidão, na servidão e no salariato" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 110).

Essa violência é exercida de uma maioria de explorados sobre uma minoria de exploradores, sendo necessário ainda a presença do Estado. Mas não o Estado burguês anterior, sim outro modificado, transitório e em vias de definhamento. Já sobre o comunismo e sua concepção em Lênin, temos: 

 Finalmente, só o comunismo torna o Estado inteiramente supérfluo, porque não há mais ninguém a coagir (ninguém no sentido social, não de classe), não há mais luta sistemática a levar por diante contra uma certa parte da população. Não somos utopistas e não negamos, de forma alguma, a possibilidade e a fatalidade de certos excessos individuais, como não negamos a necessidade de reprimir esses excessos. Mas, em primeiro lugar, não há para isso necessidade de um aparelho especial de pressão; o povo armado, por si mesmo, se encarregará dessa tarefa, tão simplesmente, tão facilmente, como uma multidão civilizada, na sociedade atual, aparta uma briga ou se opõe a um estupro (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 111).

5.3 Primeira fase da sociedade comunista - A primeira fase da sociedade comunista, também chamada de socialismo, ainda traz consigo resquícios da velha sociedade capitalista e por isso é considerada por Marx como uma fase inferior. Nesta primeira fase, a propriedade privada dos meios de produção passam das mãos da burguesia para o proletariado. Ou seja, saem das mãos de uma minoria exploradora para serem administradas pela sociedade inteira. Além disso: 

Cada membro da sociedade, executando uma certa parte do trabalho socialmente necessário, recebe um certificado constatando que efetuou determinada quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns públicos, uma quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 112).

Nesta primeira fase ainda existirá injustiças e desigualdades, "mas o que não poderia subsistir é a exploração do homem pelo homem, pois que ninguém poderá mais dispor, a título de propriedade privada, dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 113). Além das injustiças e desigualdades, o Direito burguês permanece parcialmente vigente. Isso porque: 

O Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há mais classes e em que, por conseguinte, não há mais necessidade de esmagar nenhuma classe. Mas o Estado ainda não sucumbiu de todo, pois que ainda resta salvaguardar o "direito burguês" que consagra a desigualdade de fato. Para que o Estado definhe completamente, é necessário o advento do comunismo completo (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 114).

5.4 Fase superior da sociedade comunista - Lênin inicia essa parte conceituando superficialmente o que seria essa fase superior. Para ele, a fase superior do comunismo significaria a extinção do Estado, das classes sociais, da divisão do trabalho e iria superar os problemas que a simples expropriação dos capitalistas não é capaz de solucionar. Porém, em nenhum momento, o autor afirma quando se chegará a tal fase superior. Sobre essa indefinição, diz o autor: 

Assim, não temos o direito de falar senão do definhamento inevitável do Estado, acentuando que a duração desse processo depende do ritmo em que se desenrolar a fase superior do comunismo. A questão do momento e das formas concretas desse definhamento continua aberta, pois que não temos dados que nos permitam resolvê-la (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 116).

Essa fase superior será alcançada, segundo Lênin, quando o princípio "De cada um conforme a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades" for finalmente posto em prática. Ou seja, quando "o trabalho se tiver tornado tão produtivo, que toda a gente trabalhará voluntariamente, conforme a sua capacidade" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 116). Aos intelectuais burgueses que acusam o marxismo de utopia, Lênin adverte que em nenhum momento tal concepção teórica buscou profetizar ou adivinhar como seria ou quando seria construído definitivamente a fase superior do comunismo. O pouco que se prevê, se faz de acordo com "uma produtividade do trabalho muito diferente da de hoje, assim como um homem muito diferente do de hoje" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 116)

Debatido isso, Lênin avança e reforça a diferença entre socialismo e comunismo. O socialismo, estágio inicial do comunismo, ainda carrega consigo resquícios da velha sociedade capitalista como o Estado, o Direito burguês etc. Se trata de um período inicial, transitório em que: 

Todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado, personificado, por sua vez, pelos operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só truste universal de Estado. Trata-se apenas de obter que eles trabalhem uniformemente, que observem a mesma medida de trabalho e recebam um salário uniforme (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 121).

Já o comunismo seria a fase desenvolvida, quando todo o antagonismo e resquícios do capitalismo fossem finalmente superados historicamente. Quando finalmente a democracia, marcada pela igualdade formal, se transformaria numa igualdade real baseada em: ""De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades." Por que etapas, por que medidas práticas e humanidade atingirá esse objetivo ideal, não o sabemos nem podemos sabê-lo" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 119).

Capítulo 06 - Vulgarização do marxismo pelos oportunistas

6.1 Polêmicas de Plekhanov com os anarquistas - Neste último capítulo, Lênin foca em adversários políticos que consideram como oportunistas. São os representantes da social-democracia, responsáveis pela condução da Segunda Internacional. O primeiro a ser criticado é Plekhanov. No seu escrito intitulado "Anarquismo e socialismo" de 1894, segundo Lênin, Plekhanov teria graves limitações que escondem o essencial do marxismo no tocante ao Estado. Além disso, não leva em consideração o desenvolvimento do marxismo pré e pós-Comuna, levando consequentemente a um oportunismo e uma crítica frágil ao anarquismo. 

6.2 Polêmica de Kautsky com os oportunistas - Lênin mostra a frágil crítica que Kautsky desenvolveu contra Bernstein. Ao criticar Bernstein, Kautsky a todo instante coloca em segundo plano uma tarefa que é essencial no marxismo: a destruição do Estado burguês via um processo revolucionário e o consequente desenvolvimento da ditadura do proletariado como período transitório para o comunismo. Se observa então as raízes do que viria a ser tornar a traição de Kautsky.  Mesmo criticando oportunistas como Bernstein, o filósofo tcheco-austríaco mostraria toda sua fraqueza teórica. 

6.3 Polêmica de Kautsky com Pannekoek - Descrevendo a crítica de Pannekoek a Kautsky, a quem considerava representante de um "radicalismo passivo" que oscilava entre o marxismo e o oportunismo, Lênin mostra as fraquezas de Kautsky e as razões de seus desvios. Kautsky, falsificando a obra de Marx, não reconhece o elementar, ou seja, que "A revolução consiste em que o proletariado destrói o "aparelho administrativo" e o aparelho do Estado inteiro, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados" (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 135). Kautsky defende a conservação de um Estado que deve ser destruído. Estaria aberto o caminho que levaria esse autor ao oportunismo. Sobre esse oportunismo, representado pela Segunda Internacional, Lênin afirma no penúltimo parágrafo do livro:

Essa circunstância nos autoriza a concluir que a Segunda Internacional, na imensa maioria de seus representantes oficiais, caiu completamente no oportunismo. A experiência da Comuna não só foi por ela esquecida, como deturpada. Longe de sugerir às massas operárias que se aproxima o momento em que elas deverão destruir a velha máquina do Estado, substituí-la por uma nova e fazer da sua dominação política a base da transformação socialista da sociedade, sugeriram-lhe precisamente o contrário, e a "conquista do poder" foi apresentada de tal forma que mil brechas ficaram abertas ao oportunismo (LÊNIN, Vladimir. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 140).

 

 

 

 

 

 

  

 

 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Manuscritos Econômico-Filosóficos


  • Sobre o autor: Karl Marx foi um filósofo, economista e historiador nascido em 1818 na antiga Prússia. Faleceu em 1883 aos 64 anos de idade. A obra de Marx exerceu forte influência sobre acontecimentos políticos do Século XX, como: a Revolução Russa de 1917, a Revolução Chinesa de 1949, a Guerra Fria etc. Além desses acontecimentos, Marx influenciou uma geração de intelectuais como Sartre, Althusser, Florestan, Mariátegui entre outros. Suas reflexões abarcam diversas áreas do conhecimento como a Economia, a Sociologia, a História e a Filosofia. Junto com Friedrich Engels, buscou entender os mecanismos da sociedade capitalista, propondo o Socialismo como alternativa para esse sistema, visto por ele como fracassado. Entre suas principais obras, temos: a) O Manifesto do Partido Comunista; b) A Ideologia Alemã; c) O 18 Brumário de Luís Bonaparte. 


Manuscritos Econômico-Filosóficos - Karl Marx - Editora Martin Claret


Capítulo 6 - Terceiro Manuscrito

Propriedade privada e trabalho - Marx busca debater a relação existente entre propriedade privada e trabalho. Para isso, ele critica três correntes econômicas: o mercantilismo, a fisiocracia e à economia política inglesa. Para ele quando tratamos à propriedade privada como detentora de uma essência subjetiva, devemos ter em mente que esta essência não seria outra coisa a não ser o trabalho. É o trabalho que forma à propriedade privada como sujeito, como pessoa e como atividade para si própria. 

Dito isso, ele admite a importância da economia política inglesa em reconhecer a centralidade do trabalho, não enxergando à propriedade privada como uma expressão externa do homem. E mais, os economistas clássicos (Marx faz referência direta a Adam Smith), conseguem ver à propriedade privada "como um produto da indústria moderna e uma força que acelerou e intensificou o dinamismo e o desenvolvimento da indústria, até fazer deste um poder da consciência" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 131). Ao contrário da "economia política esclarecida" (termo utilizado pelo próprio autor), o "sistema monetário e mercantilista" não conseguiu captar a essência subjetiva da propriedade privada, pois a tratavam de forma objetiva e por isso exerciam um papel semelhante aos católicos. Por outro lado, os protestantes desta história (por isso, inovadores) era a economia política. E Marx trata os economistas clássicos como Smith da seguinte forma: 
Engels tem, assim, razão ao chamar a Adam Smith o Lutero da economia política. Assim como Lutero distinguiu na religião e na fé a essência do mundo real, tendo-se contraposto ao paganismo católico; assim como ele eliminou a religiosidade externa enquanto fazia da religiosidade a essência interna do homem, da mesma maneira que negava a distinção entre o sacerdote ee o leigo porque transferiu o sacerdote para o coração do leigo; assim também fica eliminada a riqueza externa ao homem e independente dele (podendo portanto adquirir-se e conservar-se a partir de fora) (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 131-132).
Em suma, conclui Marx: 
Quer dizer, a sua objetividade externa e mecânica é eliminada, pelo fato de a propriedade privada ser incorporada ao próprio homem e de este se reconhecer como a sua essência (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132).
Porém, apesar de no primeiro momento admitir os avanços da economia política sobre a essência subjetiva da propriedade privada, ele tece fortes e contundentes críticas a esses mesmos economistas. Isso porque ao, aparentemente, reconhecer o homem os economistas políticos acabam o negando de forma diferente da vista pelos mercantilistas. Logo, "O que antes era ser-externo-a-si-mesmo, a exterioridade real do homem, transformou-se agora em simples ato de objetividade, de alienação" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132). Apesar de reconhecer a autêntica essência da propriedade privada, o trabalho, eles se baseiam em ideias frágeis que ao libertar o homem das amarras da objetividade o transforma prisioneiro novamente mas agora  do processo de alienação que esses economistas clássicos não conseguiram identificar e criticar. 

É por isso que Marx afirma que "ao mesmo tempo em que mostra com maior unilateralidade, portanto, com maior claridade e lógica, que o trabalho é a única essência da riqueza; demonstra ainda que semelhante doutrina, em contraste com a concepção original, tem consequências antagônicas ao homem" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 132). Por último, Marx também tece críticas aos fisiocratas e um deles é citado diretamente: o francês François Quesnay. Ele considera a fisiocracia como um pensamento transitório do mercantilismo para a economia política inglesa, representada por Adam Smith. 

Apesar de tentarem se desprenderem da propriedade feudal (e da sua lógica), os fisiocratas tratam à terra como única fonte de riqueza, porém, através de uma linguagem econômica e não feudal. Apesar desta linguagem econômica inovadora, à terra e à agricultural permanecem sendo encaradas como as únicas fontes de riqueza; a terra aqui não é ainda encarada como capital, mas em comparação com os mercantilistas (que consideravam os metais preciosos como os únicos meios de riqueza), os fisiocratas focam suas reflexões em um elemento natural e universal (à terra). Resumindo o avanço e os limites da fisiocracia, afirma Marx: 
E é só pelo trabalho, pela agricultura, que a terra existe para o homem. Por consequência, a essência subjetiva da riqueza situa-se já no trabalho. Mas, ao mesmo tempo, a agricultura é o único trabalho produtivo (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 133).
Os economistas clássicos vieram para mostrar aos fisiocratas que à agricultura não era o único meio exclusivo de produzir riqueza. Sendo assim, essa agricultura não diverge de nenhuma outra indústria, pois se une a essas pelo fator trabalho, visto como a essência e fonte da riqueza. E Marx segue, "A fisiocracia nega a riqueza específica, externa, puramente objetiva, ao declarar que o trabalho constitui a sua essência. Mas, logo a seguir, o trabalho reduz-se para ele à essência subjetiva da propriedade agrária (baseia o seu raciocínio neste tipo de propriedade que, do ponto de vista histórico, aparece como predominante)" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134).

Após criticar mercantilistas, economistas clássicos e fisiocratas Marx expõe sua visão sobre a subjetividade da propriedade privada. Para ele, a forma objetiva de realização da propriedade privada seria representada pelo capital industrial, pois "só neste estágio é que a propriedade privada pode consolidar o seu domínio sobre o homem e torna-se, na forma mais geral, o poder histórico-mundial" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134-135). Em suma, o desenvolvimento da indústria levaria a sua sobreposição sobre a propriedade agrária. E, por fim, Marx deixa isso claro no seguinte trecho: 
É evidente que, logo que se percebe a essência subjetiva da indústria, que se constitui enquanto indústria, em oposição à propriedade agrária, também esta essência inclui em si a oposição. Com efeito, assim como a indústria incorpora a propriedade de raiz abolida, assim também a sua essência subjetiva engloba a essência subjetiva a última (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 134).
Propriedade privada e comunismo - Nesta parte dos Manuscritos, Marx busca pensar num novo modelo societário aonde à propriedade privada seria extinta. Para Marx, "o comunismo é a expressão positiva da eliminação da propriedade privada e, antes de tudo, a propriedade privada universal" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 135). Esse seria o seu comunismo, porém, Marx admite a existência de outros comunismos que ele chama pelo adjetivo de rude. Uma das críticas que Marx direciona para esse comunismo rude é que ele considera à mulher como um tipo de propriedade privada que, após o advento do comunismo, seria socializada assim como à propriedade. O casamento tornaria à mulher como propriedade privada, porém, ao aboli-la essas mulheres agora se organizam como comunidade de mulheres tornando-se uma propriedade comunitária. Sobre essa proposta, ele diz: "Pode afirmar-se que a ideia da comunidade de mulheres é o mistério aberto deste comunismo ainda inteiramente rude e impensado" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 136).

Criticado esse comunismo de tipo rude, Marx começa a descrever o que ele pensa de comunismo e como seria esse tipo novo de sociedade. Segundo sua formulação sobre o comunismo, ele seria: 
O comunismo é a eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana e, desta forma, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem. É, deste modo, o retorno do homem a si mesmo como ser social, ou melhor, verdadeiramente humano, retorno esse integral, consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 138).
Sobre essa última parte em que Marx diz que o comunismo "assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior", já podemos enxergar a diferença para o comunismo rude que ele critica, pois esse preza "pelo retorno à antinatural simplicidade do indivíduo pobre e carente, que não só não ultrapassa, mas nem sequer atingiu ainda a propriedade privada" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 136). O comunismo em Marx seria, segundo suas próprias palavras, "o decifrar do enigma da História" pois conseguiria resolver diversos problemas como: o conflito entre essência e existência, o conflito entre objetivação e auto-afirmação, o conflito entre liberdade e necessidade e, por fim, o conflito entre indivíduo e espécie. 

A propriedade privada a ser eliminada tem sua expressão material e perceptível, porém, também contém uma expressão sensível que é representada pela religião, família, Estado, Direito, moral, ciência etc., vistos por Marx como particularidades da propriedade privada material e que respeitam as suas leis gerais de funcionamento. É por este motivo que "A eliminação positiva da propriedade privada, tal como a apropriação da vida humana, constitui portanto a eliminação positiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da religião, da família, do Estado etc., à sua existência humana, ou seja, social" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 139). No comunismo, logo, se excluiria tanto a alienação religiosa (vista na esfera da consciência) quanto a alienação econômica (vista na esfera da vida real ou material). 

O comunismo seria responsável por produzir um novo homem que produziria a si próprio e os outros homens e "assim a sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é por ele produzida" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 139). É por isso que, para Marx, a sociedade significa para o homem a união com a natureza. Buscando resolver a dualidade entre indivíduo e sociedade, Marx diz que o espírito social e a atividade social (para ele unidos, como vimos acima) não são vistos apenas em atividades direcionadas diretamente para a comunidade. 
Mesmo nos momentos em que eu sozinho desenvolvo uma atividade científica, uma atividade que raramente posso levar ao fim em direta associação com outros, sou social, porque é como homem que realizo tal atividade. Não é só o material da minha atividade - como também a própria linguagem que o pensador emprega - que me foi dado como produto social. A minha própria existência é atividade social. Por conseguinte, o que eu próprio produzo é para a sociedade que o produzo e com a consciência de agir como ser social (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 140).
O que nós pensamos genericamente e abstratamente, afirma Marx, tem relação direta com a comunidade real que nos rodeia. O que pensamos e como agimos se liga ao que está acontecendo ao nosso redor e é por isso que espírito social (o pensar e/ou refletir) e à atividade social (o agir) estão totalmente imbricados. Ainda sobre essa dualidade entre indivíduo e sociedade: 
Antes de tudo, é importante evitar que a "sociedade" se considere novamente como uma abstração em antagonismo com o indivíduo. O indivíduo é o ser social. A manifestação e sua vida - mesmo quando não surge diretamente na forma de uma manifestação comunitária, realizada juntamente com outros homens - constitui, assim, uma expressão e uma confirmação da vida social (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 140).
O homem pensa de acordo com a sociedade em que está inserido, apesar também ser sujeito ativo na transformação desta mesma sociedade. Ou seja, "Como consciência genérica, o homem ratifica a sua vida social real e reproduz no pensamento apenas a sua existência real" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 141). O homem é um ser social com possibilidade de transformar à realidade, porém, apenas dentro das condições sociais em que se encontra. Segue Marx: 
Embora se revele como indivíduo particular, e é exatamente esta peculiaridade que dele faz um indivíduo e um ser comunal individual, o homem é igualmente a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade como pensada e sentida. Ele existe ainda na realidade como a intuição e o espírito real da existência social, como uma totalidade da manifestação humana da vida (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 141).
Dentro desse debate sobre o que é o homem, Marx acusa a propriedade privada de alienar o homem, tornando o objeto que ele produz através do seu trabalho um objeto estranho e não-humano. A manifestação da sua vida, o trabalho, na verdade, significa a desrealização de sua vida. Ainda sobre as nefastas consequências da propriedade privada, Marx critica: 
A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc., ou melhor, quando é utilizado. Embora a propriedade privada entenda todas estas formas diretas de propriedade como simples meios de vida, a vida à qual servem de meios é a vida da propriedade privada - o trabalho e a criação de capital (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142).
A conclusão que Marx chega é que os homens se encontra na completa miséria, pois "todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ter" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142). O objetivo do comunismo é superar essa busca pelo ter, desenvolvida pela propriedade privada. Assim sendo, 
A supressão da propriedade privada constitui, deste modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. Mas só é esta emancipação porque os referidos sentidos e propriedades se tornaram humanos, tanto do ponto e vista subjetivo como objetivo. O olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se transformou em objeto humano, social, criado pelo homem para o homem (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 142).
Diante de tal cenário, a necessidade e o prazer perdem seu caráter egoísta, transformando o homem subjetivamente através de um processo objetivo. Esse processo que retira o homem da alienação é visto por Marx de um ponto de vista objetivo e subjetivo. No objetivo, os objetos produzidos passam a ser a objetivação do homem que passa a se reconhecer em tais objetos e não vê-los como estranhos a si. Logo, "Os objetos confirmam e realizam então a sua individualidade, eles são os seus próprios objetos, quer dizer, o homem torna-se pessoalmente o objeto" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 143). E qual sua repercussão na subjetividade? 

Marx diz que a subjetividade do homem e do não-homem (aqui visto como o homem alienado pela lógica que mantém viva à propriedade privada), são diferentes. Após a abolição da propriedade privada e consequente advento do comunismo, os sentidos do homem passam por uma transformação, mas não só os cinco sentidos mais também o que ele chama de "sentidos espirituais" que alargam toda a sensibilidade humana. E essa mudança se faz necessária, porque: 
O homem sufocado pelas preocupações, com muitas necessidades, não tem qualquer sentido para o mais belo espetáculo; o comerciante de minerais vê apenas o seu valor comercial, e não a beleza e a natureza própria do mineral; encontra-se desprovido do sentido mineralógico. Portanto, a objetivação da essência humana, tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessária para humanizar os sentidos do homem e criar a sensibilidade humana correspondente a toda a riqueza do ser humano e natural (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 144).
Apesar de mencionar essa parte subjetiva da transformação do homem, Marx deixa claro que essa mudança só será possível através da vida real, pois não se trata de mero problema de conhecimento. Esse problema tem uma materialidade, uma faceta econômica que a filosofia, segundo ele, não conseguia enxergar. É nesta parte do texto que ele advoga pela união entre as ciências naturais, vista como aquelas que penetrou na vida prática do homem através do desenvolvimento da indústria apesar das consequências nefastas dessa, com a filosofia. Para Marx, "A ciência natural acabará um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrará em si a ciência natural; haverá apenas uma única ciência" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). 

Isso porque, segundo ele, ambas tratam de objetos semelhantes: a natureza e o homem, visto como expressão desta natureza. Logo, "O homem é o objeto direto da ciência natural, porque a natureza imediatamente perceptível constitui, para o homem, a experiência humana direta dos sentidos" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). Por outro lado, "Mas a natureza é o objeto direto da ciência do homem. O primeiro objeto do homem - o próprio homem - é natureza, sensibilidade, e as capacidades humanas sensíveis particulares, que unicamente encontram a realização objetiva nos objetos naturais, só podem alcançar o auto-conhecimento na ciência do ser natural" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146). Em suma, "A realidade social da natureza e a ciência natural humana, ou a ciência natural do homem, são expressões idênticas" (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 146).

Ademais, o comunismo seria um estágio em que o homem finalmente teria condições de ser senhor de si. E é desta forma que Marx, encerrando o texto, define o papel do comunismo para o homem:
O comunismo constitui a fase da negação da negação e é, por consequência, para o seguinte desenvolvimento histórico, o fator real, imprescindível, da emancipação e reabilitação do homem. O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objetivo da evolução humana - a forma da sociedade humana (MARX, Karl. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 148).





 
 
 
 

 

 

 

 


 

 



 


 

  
 

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A Formação das Nações Latino-Americanas

 

  • Sobre a autora: Maria Ligia Prado é uma historiadora paulista, especializada em História da América Latina, com enfoque no século XIX. Prado graduou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP), em 1971. Pela mesma instituição, conquistou os títulos de mestre e doutora. Atualmente é professora titular da USP, onde leciona a disciplina de História da América Independente. Entre suas obras, estão: a) O Populismo na América Latina; b) A América Latina no Século XIX: telas, tramas e textos; c) Reflexões sobre a Democracia na América Latina. 



A Formação das Nações Latino-Americanas - Maria Ligia Prado - Editora Atual



Introdução - A autora coloca nesta introdução sua perspectiva ao abordar a formação das nações latino-americanas. Segundo a mesma, existiriam duas perspectivas equivocadas. A primeira trata os países da região de forma homogênea, ou seja, considera-os parte integrante de um mesmo tronco histórico-social. Esta abordagem levaria a um desconhecimento das particularidades de cada país. Por outro lado, existiria uma perspectiva contrária que se limita a enumerar a diversidade da região, sem apontar uma linha de comunicação entre esses países. Buscando se diferenciar desses dois caminhos, Ligia Prado insiste na existência de uma particularidade histórica dentro da região, porém, visa elaborar reflexões generalizadas que busquem interligar as trajetórias dessa diversidade de países. Afinal, apesar de conterem sua especificidade, esses países estão situados na mesma região e por isso contém similaridades. Para a realização deste exercício, a autora se utiliza de uma análise comparativa entre os países analisados. Não podendo abarcar todos os países latino-americanos, a obra foca em alguns como: Colômbia e México (analisados no capítulo 2); Argentina, Chile e Paraguai (analisados no capítulo 3); Cuba e Nicarágua (analisados no capítulo 4); e o Brasil (analisado no capítulo 5). No primeiro capítulo, a autora faz um debate sobre o processo de colonização, visto na América Espanhola e Portuguesa. 

01) O sistema colonial que a independência veio destruir 

A pergunta a ser respondida pela autora é a seguinte: o que veio a independência política destruir? Seu objetivo no capítulo é analisar, brevemente, as características gerais da colonização na América Espanhola e Portuguesa. Começando pela América Espanhola, sua base era representada pela autoridade máxima do rei da Espanha, então visto nas colônias através das figuras dos vice-reis (quatro no total), dos governadores e dos corregedores. Todos esses eram os braços e as pernas do monarca em solo americano e estavam na região sob suas ordens e nomeação. Também existia a presença do Conselho das Índias e da Casa de Contratação de Sevilla, entidades que atuavam institucionalmente como desmembramentos da Coroa Espanhola. O Conselho ajudava o rei em suas funções legislativas, executivas e judiciárias sendo um órgão administrativo da coroa; já a Casa de Contratação, com sede em Sevilla e depois transferida para Cádiz, foi uma empresa monopolista estatal espanhola que tinha como função administrar os negócios da coroa no chamado "Novo Mundo". A partir de 1764, a administração colonial passou por mudanças que visaram uma maior eficiência. Com isso, foi adotado o sistema de intendências, extinguindo as figuras dos governadores e corregedores. Os novos intendentes tinham funções semelhantes aos cargos extintos, mas agora concentrados num único cargo. A ação fez a coroa espanhola centralizar mais poder em suas mãos, enfraquecendo as liberdades municipais. 

O sistema de intendências foi acompanhado de um aumento dos impostos nas colônias, mas também foram vistas flexibilizações por parte da coroa espanhola. Entre essas flexibilidades, estavam: a quebra do monopólio de Cádiz, então concentradora dos negócios envolvendo as colônias, sendo permitido que nove portos espanhóis mantivessem relações comerciais com a América; na América, o sistema de porto único foi derrubado, sendo permitido a comercialização em outros vinte; por fim, estabeleceu-se oficialmente o comércio entre colônias. Porém, 
Entretanto, o comércio com outras nações continuava interditado. Esta era uma das principais aspirações dos produtores e comerciantes criollos (filhos de espanhóis nascidos na América), que acreditavam ser o comércio livre a alavanca fundamental para o crescimento da economia, ou melhor dizendo, para o crescimento de seus lucros. Havia ainda outras proibições, como as relativas às atividades manufatureiras, sempre que estas colidissem com os interesses metropolitanos (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 8). 

Diante deste cenário, os criollos foram aqueles que se levantaram contra o sistema colonial espanhol. Eles se indignavam com o fato dos espanhóis terem privilégios nas colônias, principalmente por estes estarem nos principais postos administrativos, seja no Estado, Exército ou Igreja. Sendo assim, "Vendo a eles fechadas as portas das carreiras administrativa e política, esses setores se radicalizaram e passaram à crítica ao sistema colonial, transformando-se assim em importantes figuras do processo de emancipação" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 9). Ligia Prado ainda aponta o privilégio vivido por duas instituições: o Exército e a Igreja. Sobre os militares, ela pontua: 

Os militares possuíam um foro particular que os livrava da submissão à Justiça comum, ainda que fossem réus de crime. A esse foro militar só estavam afeitos os oficiais e suboficiais, e não a soldadesca (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 9-10).

Esses oficiais e suboficiais eram, em sua maioria, espanhóis e a soldadesca era composta majoritariamente por indivíduos nascidos na colônia; fato que evidencia bem para quem se direcionava os privilégios do sistema colonial. A Igreja Católica foi outra instituição que gozou de alto privilégio, destacando-se sobretudo por sua riqueza. Suas altas rendas eram obtidas de três formas: a) através do arrecadado de suas propriedades rurais ou urbanas, então inumeráveis; b) através de dízimos, cobrado pela Coroa sob ordem papal; c) através das chamadas capelanias e censos, sendo a primeira uma renda perpétua deixada para uma igreja (ou convento) em troca de missas e a segunda eram rendas obtidas através de propriedades da Igreja concedidas a terceiros em troca de renda anual. Explorando bem essas três vias de arrecadação, a Igreja Católica se tornou a instituição mais rica da América Espanhola, sendo consequentemente um dos elos de apoio do sistema colonial. Inclusive, a relação entre coroa e clero era vista claramente por intermédio do padroado, direito outorgado pelo papa que permitia o rei espanhol nomear bispos, arrecadar impostos (como os dízimos, citados acima) e até criar dioceses e paróquias. Assim como o Exército, a Igreja também tinha um foro especial que a diferenciava do restante da sociedade. Entretanto, a autora deixa claro a existência de cisões dentro do clero, sendo os setores mais baixos mais sensíveis a posições contestadoras e críticas. 

Por sua vez, os índios e mestiços sofriam na pele uma situação oposta. Segundo mostra Ligia Prado, os índios "Estavam isentos de pagar os dízimos à Igreja na maior parte da América espanhola, mas eram obrigados a pagar um tributo individual ao rei" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 11). Já os mestiços, chamados em várias regiões de "castas", sofreram com um enorme estigma social por sua origem "ilegítima" e foram proibidos de usarem armas, ouro, seda e até de receberem as ordens religiosas. Tanto índios quanto os mestiços, passavam por um problema semelhante: a escravidão por dívida. Essas dívidas eram contraídas facilmente, através de um pequeno empréstimo do patrão. Caso não conseguisse pagar sua dívida, não só seria escravizado, como poderia fazer os seus filhos doarem essa dívida como herança. Além de índios e mestiços, em geral trabalhadores rurais, os chamados obrajes (manufaturas) reuniam trabalhadores que eram tratados como verdadeiros prisioneiros. A América Espanhola também foi palco da escravidão negra, apesar desses estarem mais concentrados no trabalho doméstico, situação bem diferente da vista no Brasil. A mão-de-obra negra foi mais presente no Caribe, sendo um dos elos principais do comércio açucareiro na região. 

Os homens preocupados com a destruição do sistema colonial, receberam forte influências das ideias produzidas na Europa, principalmente dos franceses que tinham seus escritos presentes clandestinamente na região. Segundo Prado, os ideais desses homens eram o seguinte: 

As ideias de liberdade, de igualdade jurídica, da legitimidade da propriedade privada, da educação como remédio para os grandes males, da necessidade do império da lei, do progresso e da felicidade geral do povo estavam todas presentes nos projetos desses líderes liberais (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 13-14).

Dentre esses homens, guiados pelo ideal de liberdade, a autora cita: Bolívar, San Martín, Mariano Moreno, Bernardo de Monteagudo, José Cecílio del Valle etc. Entre os anos de 1810 e 1820, esses homens lutaram contra um inimigo em comum: a Espanha e seu sistema colonial. Adiante, a autora descreve rapidamente alguns objetivos e ideias desses libertadores. Para Simón Bolívar, liberdade significava a destruição do sistema colonial espanhol e a consequente formação de nações livres que pudessem, entre outras ações, comercializar com quem tivesse interesse. Como um criollo, Bolívar buscava a liberdade econômica e independência política. Já para Jean Jacques Dessalines, líder da revolução haitiana, liberdade representava o rompimento com a França e a extinção da escravidão num país marcado pela exploração da mão-de-obra negra. Já para os líderes mexicanos Miguel Hidalgo e José María Morelos, liberdade significa a desvinculação da Espanha, mais a partilha de terra para os oprimidos. Ambos defendiam, inclusive, que as terras da Igreja fosse dividida entre os mais pobres. Apesar de tantos anseios, o que marcou o processo de independência na América Espanhola foi a lógica do "independência primeiro, reformas depois". 

Com a vitória desses processos libertadores, a América se tornava livre do jugo espanhol e os criollos tornavam-se os novos setores dominantes na região. Finamente caía o monopólio real e se abria o comércio e a economia, agora sem a intervenção metropolitana. O Estado foi reorganizado, visando os interesses dos criollos, e dentro desta nova conjuntura ações como o fim do foro especial do Exército e da Igreja e quebra do monopólio colonial foram realizadas. Em suma, a autora assim resume a vitória desses processos libertadores e o Estado que se fundava a partir de então: 

Esse Estado esteve sempre preocupado com a manutenção da ordem social; os setores mesmo divergentes das classes dirigentes sempre se aliaram, sustentando o Estado, em momentos em que a ordem instituída foi ameaçada pelos de abajo. As constantes revoltas de índios, de camponeses e de escravos contribuíram para o fechamento autoritário do Estado. Entretanto, algumas concessões foram feitas. Aboliu-se o tributo indígena e acabaram-se, ou melhor, aplainaram-se as distinções de castas. A escravidão negra foi abolida, mais cedo ou mais tarde, nos países independentes, tendo permanecido apenas (além do Brasil) nas ilhas de Cuba e Porto Rico, ainda sob o domínio espanhol (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 17-18).

Sobre a América Portuguesa, resumida ao caso brasileiro, Ligia Prado busca diferencia-la da experiência hispânica e tece uma importante comparação entre essas duas experiências que pode ser vista no seguinte trecho: 

A colonização da América portuguesa guarda características bastante particulares no contexto latino-americano. A importância da produção do açúcar nos dois primeiros séculos da colônia não se comparava à riqueza dos metais preciosos explorados em algumas regiões da América espanhola, como México e Peru. Essa diferença substancial marcou muito fortemente, desde cedo, as formas assumidas pelas duas colonizações. Ao lado disso, na América espanhola a presença vigorosa das culturas pré-colombianas exigira um empenho e um rigor na conquista e na evangelização inteiramente desconhecidos no Brasil. A Coroa espanhola, deve-se acrescentar, era ainda mais poderosa e mais rica que a de Portugal. A organização institucional de Portugal se exerceu em moldes menos rígidos que os conhecidos na América espanhola. Do ponto de vista administrativo, havia uma centralização excessiva em Lisboa de todas as decisões sobre a colônia, com uma estrutura burocrática rígida, mas um tanto ineficiente (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 18).

O sistema colonial português, assim como o espanhol, desenvolveu uma forte política movida a monopólios e privilégios durante todo o período colonial. A diferença entre as duas experiências seria, segundo a autora, uma maleabilidade no caso português. O poder local, visto através dos latifundiários, era exercido através do Senado da Câmara que tinha sede nas vilas e cidades da colônia. Diferente dos hispânicos, a propriedade da terra garantia acesso a privilégios e riquezas, sendo um pré-requisito para a participação da política local. Os chamados "homens bons", eram os dominadores na política local. Sobre a relação com a Igreja, ela teve uma expressão menor em comparação a América Espanhola. Era uma instituição menos rica, apesar do padroado também existir. Também diferente do caso hispânico, o clero manteve uma relação íntima com os latifundiários locais, sendo comum o filho mais novo desse proprietário ser posto para a carreira eclesiástica. E seguindo o caso espanhol, o Exército na América Espanhola beneficiava os "bens nascidos".

Também seguindo os espanhóis, a Coroa Portuguesa foi protagonista de algumas reformas que visaram uma maior eficiência da máquina colonial. Entretanto, as manufaturas permaneciam sob rígido monopólio metropolitano. A manutenção desse e outros privilégios, fizeram os colonos se rebelarem contra o sistema colonial português, acusado de corrupto e ineficiente. Esses colonos reivindicavam pautas como: comércio livre, fim dos privilégios para os nascidos em Portugal, diminuição de impostos etc. A vinda da família real portuguesa foi um marco no processo de independência do Brasil, pois representou a abertura da então colônia (depois transformada em Reino Unido de Portugal e Algarves) para o comércio exterior, em particular, a Inglaterra. A abertura do comércio para os ingleses representava o fim do pacto colonial. Inicialmente, os colonos locais não desejavam uma ruptura abrupta de Portugal, desejando uma monarquia dual que concedesse direitos como a liberdade de comércio. Mas com a intenção portuguesa de recolonização, os setores locais se unificaram em torno da independência que conquistaram em 1822. A independência brasileira colocou no poder D. Pedro I, o sucessor do trono português, mostrando que o processo rompeu timidamente com o sistema colonial. Apesar da conquistada liberdade comercial alcançada, três pilares construídos durante o período colonial foram mantidos, foram eles: a escravidão, o poder dos proprietários de terras e o regime monárquico. 

02) A Igreja e o Estado Nacional 

Neste segundo capítulo, a autora debate a formação dos Estados mexicano e colombiano, onde a divisão ficou marcada entre conservadores (apoiados pela Igreja) e liberais (defensores da independência). Mas quem eram esses dois atores políticos? Eles tiveram extrema importância no século XIX e foram protagonistas nas disputas que acarretaram nos processos de independência da América Espanhola. Os conservadores se caracterizavam como aqueles que, em aliança com o clero e o Exército, defendiam o sistema colonial e suas estruturas como o foro especial e a política orientada pela fé. Defendiam a monarquia como regime política ideal, unindo desta forma Estado e Igreja. Eram a favor de uma educação religiosa e, consequentemente, contrários a ideia de um Estado laico. Enquanto que os liberais foram aqueles que defenderam arduamente o Estado laico e a consequente separação entre Estado e Igreja, assim como defendiam o fim do foro especial. O clero basicamente era o responsável pela divisão dessas duas forças políticas. 

Começando pelo México, a autora analisa a situação do país após seu processo de independência. Os mexicanos viviam uma forte crise econômica, com a agricultura passando por um processo de estagnação. Existia também a ausência de infraestrutura, como estradas e ferrovias, que possibilitassem o escoamento das mercadorias com facilidade. Enfim, o país vivia um período conturbado, causado pela transição de colônia para nação independente. O projeto conservador, capitaneado pela força da rica e poderosa Igreja, defendia a construção de uma monarquia forte e coesa. Lucas Alamán foi o principal ideólogo do conservadorismo mexicano da época. Já José Luis Mora foi o principal ideólogo do liberalismo mexicano. As disputas entre esses dois atores políticos duraram cerca de 50 anos no México, tendo os conservadores a hegemonia política inicial, apenas afetada em 1854 coma Revolução de Ayutla; responsável por colocar os liberais no poder. Sobre esta revolução, diz a autora: 

Ayutla abriu um período de reformas para o México. Em 1855, a Lei Juárez aboliu os foros militares e eclesiásticos; em 1856, pela Lei Lerdo, os bens da Igreja eram desamortizados (desamortizar é sujeitar ao direito comum os bens de mão-morta, que são bens inalienáveis, isto é, intransferíveis), acontecendo o mesmo com as terras das comunidades indígenas. Em 1857, jurava-se uma nova Constituição vigente até 1917 (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 26).

A Constituição de 1857 tornava o México um Estado federativo e guiado por três poderes (executivo, legislativo e o judiciário). Foi um texto constitucional que garantiu as ideias liberais, como o direito a propriedade privada. Após seu estabelecimento, as disputas entre liberais e conservadores desembocaram numa guerra civil, onde os últimos tomaram o poder através de Maximiliano, imperador austríaco. Com o acirramento da oposição liberal, Maximiliano foi deposto e fuzilado, sob ordens de Benito Juárez. Nesta época de guerra civil, as relações entre a Igreja e os liberais se atenuaram, pois os últimos nacionalizaram os bens eclesiásticos sem indenização, como uma resposta ao envolvimento do clero na reação conservadora. Com a derrota dos conservadores, os liberais intensificaram seu projeto que foi visto através do desenvolvimento da propriedade individual onde, na prática, incentivou o desenvolvimento do latifúndio já que "essas reformas foram alvissareiras para os grandes proprietários, que puderam comprar as terras camponesas a preço vil e ainda passaram a dispor de mão-de-obra, agora "livre" dos meios de subsistência e apta a lhes vender sua força de trabalho"  (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 28). 

Em meio a guerra civil entre conservadores e liberais, o México ainda foi palco de rebeliões populares (como a Revolução Mexicana de 1910) e conflitos contra outros países (como os EUA e a França, durante a passagem de Maximiliano no país). A estabilidade política e o crescimento econômico só chegaria no país através do governo de Porfirio Díaz, importante liberal responsável pela derrota de Maximiliano e da reação conservadora. Díaz estabeleceu no país um regime ditatorial que encerrou os conflitos internos e proporcionou a consolidação do Estado mexicano. Seu governo durou até a já citada Revolução de 1910, responsável pela Constituição de 1917. No mais, o projeto vencedor no México foi o liberal que acabou consolidando a subjugação da Igreja ao Estado. As reformas feitas pelos liberais foram essenciais para o desenvolvimento do capitalismo no México, organizando o mercado de trabalho. Tudo isso foi feito com vários custos, entre eles a desapropriação do camponês índio de suas terras comunais, transformando a terra em propriedade individual e consequentemente, em mercadoria.

Durante o predomínio da ditadura de Porfirio Díaz, o positivismo ganhou bastante relevância no México, sendo suas ideias introduzidas na construção do Estado nacional. Em suma, "A vitória dos liberais pedia uma ideologia que garantisse a ordem social sempre ameaçada pelos de abajo e ao mesmo tempo justificasse e sustentasse a ditadura porfiriana. Essas ideias também deveriam dar espaço à existência do anticlericalismo e indicar o lugar subalterno da Igreja, vista diante do Estado como uma instituição do passado"  (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 31). O governo de Díaz, desta forma, consolidou à vitória do projeto dos liberais. 

A Colômbia seguiu um caminho inverso. Os colombianos tiveram sua independência consolidada em 1819, sendo formada a chamada República Gran Colômbia. Após isso, houve o desmembramento desta república e a constituição de três países diferentes: a Colômbia, a Venezuela e o Equador. Tendo os comerciantes criollos como protagonistas do processo de independência, a Colômbia manteve a escravidão em suas primeiras Constituições e, além do mais, buscou de imediato desestruturar as terras indígenas com o intuito em atender as demandas dos grandes proprietários de terras. Esses novos dominadores, passaram a ocupar os mais altos cargos administrativos do Estado colombiano e desenvolveram uma forte centralização no Poder Executivo. Desta maneira, "A Constituição restringia a cidadania, a nacionalidade e o sufrágio, exigindo que certas funções, como a de presidente da República ou a de senador, fossem preenchidas por homens que tivessem certo nível de renda"  (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 33). Neste cenário, os conservadores (ligados ao grandes proprietários de terras escravagistas, pela Igreja, pelo Exército e por altos burocratas) defendiam os interesses do clero e a permanência da escravidão. Já os liberais tinham em suas propostas a separação entre Estado e Igreja, a abolição da escravidão, liberdade de pensamento, redução do poder do Executivo, fim do foro especial etc. Assim como no caso mexicano, eram propostas políticas que não se comunicavam e que tinham na Igreja seu elo divisor. 

Em 1849, através de José Hilario López, os liberais colombianos chegam ao poder e colocam em prática uma série de medidas. Entre essas medidas: diversificação das exportações, proporcionando desenvolvimento econômico; descentralização das rendas públicas, afetando diretamente na força exercida pelo Poder Executivo; expulsão dos jesuítas, afetando os interesses da Igreja; e, por fim, a abolição da escravidão que contrariava os proprietários de terras. López também foi responsável pela separação entre Estado e Igreja, tornando laico o Estado colombiano em 1853. Todas essas medidas foram respondidas pelos conservadores que, liderados pela Igreja, buscava lutar contra o fim de seus privilégios. O exemplo citado pelos conservadores, como Miguel Antonio Caro, era o Equador que em 1869 promulgou uma Constituição que colocava como cidadão apenas os declarados católicos. As medidas liberais iniciadas por López, foram mantidas pelo governo de Tomás Cipriano Mosquera que desamortizou os bens da Igreja. Em suma, 

O liberalismo desse período representava os interesses básicos da burguesia comercial, e assim as medidas implantadas propunham uma liberalização do comércio, sobretudo o internacional, e a organização de um Estado laico que pusesse em prática a inserção da economia colombiana no âmbito internacional (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 36).

O Estado liberal começou a entrar em crise a partir da década de 1870, por conta de uma grave crise econômica causada a decadência da produção do tabaco; um dos principais produtos de exportação. A estagnação econômica levou o país a uma guerra civil, onde os conservadores saíram vitoriosos, através do projeto chamado de Regeneração. Liderado pelos fazendeiros de café, em aliança com o clero, este novo projeto visava uma centralização política que garantisse uma infraestrutura de exportação. O governo Rafael Nuñéz, foi responsável pelo retorno do catolicismo como religião oficial, assim como devolvia a Igreja os bens nacionalizados que estavam sob propriedade estatal; perdoando os bens adquiridos por indivíduos. A religião voltava a invadir a educação, retornando inclusive as universidades. Diante deste cenário, Ligia Prado assim resume a formação do Estado colombiano, que contou com a vitória política dos setores conservadores: 

De forma muito diferente da ocorrida no México, na Colômbia as ideias positivistas pouco penetraram. Ideologicamente, a Igreja foi a vencedora e em nome dela propunham-se o progresso material e o advento da "civilização e das luzes". As classes proprietárias viram na Igreja conservadora a única força ideológica capaz de manter a ordem social. É importante frisar que até hoje a influência da Igreja na Colômbia é extraordinária e que ela se destaca, no quadro das Igrejas da América Latina, como uma das mais conservadoras e tradicionais (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 37).

03) O caudilhismo e o Estado Nacional 

O vice-reinado do Rio da Prata continha uma heterogeneidade e complexidade que resultou em processos políticos específicos. A região abarcava o que conhecemos hoje como Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e norte do Chile. A Argentina se dividia, basicamente, em três polos: Buenos Aires; região a margem do Rio Paraná como Santa Fé e Corrientes; e o interior,  como Córdoba, Tucumán etc. O Uruguai, sofreu com as ambições territoriais de Brasil e Argentina. Neste capítulo, Ligia Prado foca na formação dos Estados nacionais na Argentina, Chile e Paraguai. 

A Argentina foi marcada pelo fenômeno do caudilhismo. Após conquistar sua independência sob forte atuação de Buenos Aires, o país viveu uma fragmentação representada pelo conflito entre as três regiões que descrevi acima. Buenos Aires se interessava pela construção de um Estado liberal, com três poderes e com um sistema representativo. Porém, defendia uma centralização focada na cidade, o que contrariava os interesses das outras regiões e desenvolvia uma disputa regionalista no país que perdurou décadas. Após a independência conquistada em 1816, sob liderança de San Martín, a Argentina organizou uma Constituição em 1819 que alicerçava o poder de Buenos Aires. Mas já em 1820, a cidade foi deposta do poder por caudilhos do litoral, vigorando no país uma forte autonomia das províncias. Apesar da rápida tentativa de unificação pelo governo Bernardino Rivadavia, a Argentina retrocedeu e teve como característica o poder autônomo de suas províncias, desconhecendo um Estado organizado e alicerçado com bases nacionais. Esse poder provinciano, permitiu o poderio dos caudilhos que são assim conceituados pela autora: 

Ainda que muitas vezes fosse um grande fazendeiro, o caudilho confundia-se, pela sua vida rude e pelas qualidades pessoais de coragem e destreza, com seus seguidores, aos quais, no entanto, tratava com indiscutível autoridade. Os caudilhos representavam sempre interesses regionais; portanto, eram, em sua grande maioria, ardorosos defensores do federalismo como forma de organização política. As ideias liberais, ao lado de uma postura mais urbanizada e ilustrada, passaram a ser sinônimos de estrangeirismo e exótica imposição. Os caudilhos tinham apoio popular, como mostra a composição das tropas irregulares conhecidas como montoneras (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 41).

Neste período de predomínio dos caudilhos, um deles se destacou: tratou-se de Juan Manoel de Rosas que conseguiu dividir o cenário político argentino entre rosistas e anti-rosistas. Após várias disputas entre caudilhos, entre eles José Maria Paz (representante das províncias do interior e que seria derrotado em 1831), Estanislao López (representante de Santa Fé, aliado de Rosas e morto em 1838) e Juan Facundo Quiroga (representante de La Rioja e assassinado em 1835), Rosas conseguiu o controle do país. O poder sob Rosas era exercido de forma autoritária, sem Constituição, leis estabelecidas e em nome dos interesses de Buenos Aires. A política externa da Argentina foi delegada por todas as províncias a Rosas, tornando-se este um caudilho com poderes excepcionais. Sua política era baseada em pactos políticos, sem construção de uma Constituição. O período Rosas foi marcado por uma brutal repressão aos adversários políticos, muitos enviados para o exílio. E foi no exílio que se construíram as figuras que iriam derrubá-lo, entre elas, Domingo Faustino Sarmiento. 

Crítico do caudilhismo rural, Sarmiento colocava em Rosas a responsabilidade sob o atraso em que vivia a Argentina, colocando como necessária sua derrubada. Sarmiento era um liberal que desejava colocar a Argentina sob os trilhos da civilização, se impondo ao caudilhismo rural e antiliberal. Região pouco valorizada pela Coroa Espanhola, a Argentina foi marcada pela pouca força da Igreja na região, tornando-a um ator político secundário. Porém, por conta de suas ideias liberais, Sarmiento recebeu oposição do clero que passou a defender os interesses dos caudilhos. Rosas e Sarmiento acabaram desenvolvendo uma luta política que divide até hoje os políticos argentinos, sendo o primeiro reivindicado por setores nacionalistas e o segundo por setores liberais. O fato é que Rosas foi derrubado após uma árdua luta armada que envolveu o governador de Entre Ríos, o caudilho do Partido Blanco do Uruguai e até o Brasil. Desta forma, "os vitoriosos propuseram a formação de um Estado nacional com elementos de unidade e elementos de federação" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 45). 

Apesar da derrota de Rosas, a unidade foi afetada, pois Buenos Aires decidiu se separar das demais províncias. A Constituição aprovada à revelia de Buenos Aires, tornava a Argentina um Estado liberal, republicano e federal com um projeto nacional anti-rosista. Buenos Aires só se vincula ao restante do país em 1860, após longos e complexos conflitos. A unificação total do país só seria de fato consolidada após Bartolomé Mitre, político de Buenos Aires, vencer as eleições presidenciais, fato que ocorreu em 1862. Mitre foi responsável pela transformação de Buenos Aires em capital federal do país. Após uma grave crise econômica, decorrente dos anos de conflitos internos, a Argentina só viria viver sua prosperidade econômica nos anos de 1880 "quando a produção do trigo e posteriormente a criação de gado para exportação da carne transformaram a Argentina - que então recebia enormes contingentes de imigrantes - num país rico e próspero (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 47). Enfim, assim a autora encerra a análise sobre o caso argentino: 

Concluindo, pode-se dizer que os anos que vão das lutas pela independência à consolidação do Estado, na década de 1860, foram tempos de submissão total ao caudilhismo localista e eleição de certos interesses econômicos - os da agropecuária - como sendo os interesses nacionais. Foram esses segmentos das classes proprietárias que se apossaram do aparelho do Estado para pôr em prática o projeto econômico-social a eles mais conveniente. A Argentina da prosperidade econômica era a Argentina dos pampas úmidos de Buenos Aires e do litoral cerealista (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 47).

Diferente da Argentina, o Chile construiu seu Estado Nacional com mais tranquilidade e estabilidade. Os motivos desta estabilidade são, basicamente, dois. O primeiro é creditado a situação geográfica do Chile, um país pequeno e espremido pelo oceano pacífico e as cordilheiras dos Andes. Mas além da geografia favorável, os chilenos também tiveram a seu favor uma "uniformidade dos interesses econômicos e a eficácia na subordinação dos dominados" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 48). A subordinação dos dominados foi conquistada graças a aliança estável, desde o século XVIII, entre grandes proprietários de terras e comerciantes. Na economia, o predomínio no período colonial foi a produção do trigo, sendo mantida essa hegemonia até depois da independência do país. Porém, lentamente, o eixo econômico do Chile foi se transferindo do trigo para a mineração que acabaria se tornando a principal atividade do país. 

O processo de independência chileno foi conquistado sob liderança de Bernardo O'Higgins, com ajuda do exército de San Martín, e teve menos transtornos que o visto na Argentina. Apesar disso, também existiu no país disputa entre liberais e conservadores, com vitória inicial dos últimos. A hegemonia conservadora, sob liderança de Manuel Prieto e Diego Portales, durou até os anos de 1860 e foi responsável pela construção do Estado Nacional chileno. Sobre o projeto conservador vencedor, pontua a autora: 

Sua proposição de um Estado unitário, centralizado, com poderes excepcionais do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, consagrou-se na Constituição aprovada em 1833. Além disso, pela Constituição, o Executivo tinha direito de decretar o estado de sítio, constituir conselhos permanentes de guerra ou tomar medidas energéticas contra os opositores políticos, no caso, os liberais (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 49).

O Estado centralizado do Chile, recebeu os exilados políticos argentinos, como Sarmiento, sendo considero referência para os políticos anti-rosistas que desejam o fim do domínio caudilho. Entre as ações realizadas pelos conservadores na área econômica, tivemos: "Ao lado da prosperidade da agricultura (centralizada no trigo, principalmente), houve estímulo à produção mineira e às manufaturas têxteis, além da construção de estradas de ferro, abertura de caminhos e uma efetiva proteção à frota mercante" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 49). A forte centralização e autoritarismo do Estado conservador, foi motivo de uma ferrenha oposição liberal, representada pelos setores médios da sociedade chilena, os novos proprietários mineiros que buscavam protagonismo frente à agricultura e os manufatureiros que também faziam frente os proprietários de terras. A vitória liberal foi alcançada sem movimentos golpistas ou violentos, sendo uma passagem pacífica e legal. Sobre a vitória dos liberais e suas ações, pontua Maria Ligia: 

Nesse período deu-se uma virada no eixo mais dinâmico da economia chilena, que passou da agricultura para a mineração. A Guerra do Pacífico, entre o Chile e a aliança Peru-Bolívia (1879-1883), consolidou o domínio da produção mineira, já que com a guerra o Peru perdeu para o Chile suas ricas terras salitreiras (e a Bolívia ficou sem saída para o mar). A economia do país passou a girar em torno da exploração do carvão, do salitre e, posteriormente, do cobre; os capitais nacionais, que haviam sido pioneiros nesses investimentos, começaram então a ser suplantados por capitais estrangeiros, ingleses num primeiro momento e norte-americanos em seguida (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 50). 

No mais, a autora assim encerra sua análise sobre a formação do Estado Nacional chileno: 

Concluindo, o que caracterizou a formação do Estado Nacional chileno foi a ausência do caudilhismo e a precoce organização de um Estado forte e centralizado, que traduzia exatamente a uniformidade dos interesses econômico-sociais dominantes. Sua articulação com os centros econômicos mundiais levou os anos 80 a um embate entre interesses nacionais anteriormente consolidados e interesses internacionais (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 51).

Por fim, Maria Ligia analisa a formação do Estado paraguaio. Durante o período colonial, o Paraguai foi uma área secundária na visão dos espanhóis colonizadores e, com isso, teve sua organização social dominada basicamente pelos jesuítas. Os jesuítas comandavam as chamadas reduções, áreas onde os trabalhadores paraguaios (de origem indígena em sua maioria) colhiam erva-mate, principal produto da região. Esses religiosos dominavam a economia local e, consequentemente, também exerciam forte influência ideológica exercida com base numa férrea disciplina que proporcionou uma considerável prosperidade econômica na região. Porém, os jesuítas foram expulsos de toda a América Espanhola em 1767, após atritos com a Coroa e as suas terras passaram para as mãos do Estado espanhol. Mas em 1811, o Paraguai acompanhava os acontecimentos vistos no Vice-Reinado do Rio da Prata e declarava sua independência do jugo espanhol. 

O líder do país passava a ser Gaspar Rodríguez de Francia, contrário a aproximação com Buenos Aires. A primeira ação de Francia no poder foi isolar o Paraguai, demarcando bem suas diferenças com os argentinos. Ele exerceu o poder de forma autoritária e centralizada, com base no Consulado francês. Em 1814 Francia foi declarado ditador e, dois anos depois, Perpétuo. Desta forma, ele exerceu o poder de forma centralizada, sem uma Constituição, sem divisão dos poderes e com base exclusivamente na sua figura pessoal. Desta forma, "Em 1815, Francia nacionalizou os bens da Igreja; em 1824, suprimiu as comunidades religiosas, confiscando-lhes os bens, que passaram para o domínio do Estado. Em 1830, decretou o fim dos dízimos eclesiásticos" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 53). Além da política, Francia também centralizada a economia do país. Criou as estâncias da pátria, terras estatais arrendadas aos camponeses, e estabeleceu uma sólida aliança com o Exército; principal instituição do seu governo. 

Após o falecimento de Francia, Carlos Antonio López assumiu o Paraguai e procurou introduzir medidas modernizadoras, buscando resolver antigos problemas com os países vizinhos. Com a morte de Antonio López, assumiu seu filho, Francisco Solano López, que buscou dar continuidade à política do seu pai. Por conta de seu alto poderio militar, o Paraguai representou uma ameaça para seus vizinhos, fazendo a Argentina de Mitre declarar guerra ao país com o intuito de garantir a segurança do território argentino. O Brasil, que também acumulava atritos com os paraguaios por conta da navegação dos rios Paraná e Paraguai, resolveu entrar no conflito ao lado dos argentinos. O Uruguai também entrou no conflito contra os paraguaios, formando a Tríplice Aliança. Além desses três países, a Inglaterra participou do embate como financiadora. Desta forma, o Paraguai teve que enfrentar as forças militares de três países, mais o financiamento de uma potência européia. Estava assim formada os fatores que levariam a Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, e que foi o conflito bélico mais destrutivo visto na América Latina. O Paraguai foi destroçado, tendo no final sua população resumida por mulheres, idosos e crianças. Como resumo do caso paraguaio, mostra a autora: 

O Estado paraguaio, organizado de forma autoritária e centralizado na figura do ditador, traduzia, de um lado, a ausência de uma classe proprietária poderosa, que poderia ter imposto uma direção diversa ao processo político do país; e, de outro, reagia de forma defensiva a seus vizinhos, especialmente Buenos Aires [...] O fato de a Coroa e depois o Estado paraguaio possuírem terras em grande quantidade resultou na configuração de um poder extraordinário, que, entretanto, se desmoronou diante da força militar superior dos inimigos externos (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 56).

04) O imperialismo e o Estado Nacional

Neste quarto capítulo, a autora trabalha com a formação dos Estados Nacionais em Cuba e na Nicarágua; países afetados diretamente pela ingerência imperialista. Por conta desta ingerência, Ligia Prado afirma que é um equívoco tratar o imperialismo como uma força poderosa externa que tudo domina. Caso tudo conseguisse dominar, não teríamos nesses dois países analisados a experiência de revoluções (não analisadas no capítulo) de natureza anti-imperialista. Essas duas revoluções mostram, com clareza, que a ingerência imperialista na região não é aceita de modo passivo pelos agentes políticos locais. 

Mas analisando o caso cubano, a autora mostra que o país foi um dos últimos a se libertar da dominação espanhola, juntamente com Porto Rico. Os cubanos chegaram a organizar um processo de independência em 1868, mas este foi fracassado, graças a não adesão dos grandes proprietários de terras ao movimento. Motivo: a independência ameaçava a existência da escravidão, de quem esses proprietários se beneficiavam, numa região dominada economicamente pela produção do açúcar. Porém, a abolição da escravidão em Cuba foi conquistada na década de 1880, apesar da contrariedade desses setores. Desta forma, nada mais impedia o processo de independência no país que finalmente estourou em 1895, sob liderança de José Martí. Crítico da dominação espanhola e também norte-americana em Cuba, Martí morreu antes do início da luta armada que levou Cuba à independência política da Espanha. Os EUA participaram ativamente desta luta, contrários aos espanhóis. Mas os norte-americanos não participaram do processo de independência cubano à toa, como bem demonstra Maria Ligia no seguinte trecho: 

Os Estados Unidos tinham em Cuba, desde o começo do século XIX, grandes interesses em termos do comércio do açúcar. Esses interesses aumentaram com o correr do século XIX, surgindo investimentos diretos também na esfera da produção, com a compra de terras e a montagem de usinas. Até a revolução socialista, os Estados Unidos foram o principal mercado consumidor desse produto (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 59).

Finalizado o processo de independência cubano, desenvolveu-se no país uma corrente que passou a defender a anexação do novo país aos EUA. Essa corrente foi duramente criticada por liberais cubanos, como José Antonio Saco. E mais, existia nos EUA uma corrente que defendia o mesmo em nome do chamado "Destino Manifesto". Cuba não foi anexada oficialmente aos EUA, porém, na Constituição cubana foi colocada a Emenda Platt que "votada e aprovada pelo Congresso cubano em 1901, que no parágrafo terceiro consagrava o princípio da intervenção legal do governo dos Estados Unidos nos assuntos internos de Cuba" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 61). Além da Emenda Platt, os EUA solidificaram seu domínio na ilha caribenha através do Tratado de Arrendamento de Bases Navais e Militares, assinado em 1903. No mesmo ano, também foi assinado o Tratado de Reciprocidade, "pelo qual os Estados Unidos impuseram tarifas preferenciais a seus produtos no mercado cubano, vencendo assim a concorrência alemã, em contrapartida à preferência dada a alguns poucos produtos cubanos no mercado norte-americano" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 61). Nesse mesmo período, o inglês tornou-se língua obrigatória nas escolas cubanas, assim como o estudo da história dos EUA. O dólar se tornou moeda corrente no país caribenho que só criaria sua moeda nacional em 1915. 

No século XX, os investimentos norte-americanos em Cuba aumentaram, ganhando seu ápice nos anos de 1920. Segundo Maria Ligia: 

Em 1930, quando os investimentos norte-americanos estavam de modo geral suplantando os ingleses, Cuba concentrava os valores mais altos desses capitais. Nesse ano os Estados Unidos investiram 644 milhões de dólares no Brasil, 709 milhões no México, 807 milhões na Argentina e 1 bilhão e 66 milhões em Cuba (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 62-3).

Apesar de todo esse aparato norte-americano na ilha, Cuba conseguiu desenvolver uma atuante oposição, engajada em movimentos sociais e que se colocaram contrários aos governos instituídos. A futura Revolução Cubana, em 1959, é a prova de que os países que sofrem ingerências imperialistas não assimilam passivamente este processo de dominação e criam suas redes de resistência.  

Sobre o caso nicaraguense, a autora deixa claro que a América Central é bastante diversa e os processos de independência na região não aconteceram de forma unificada. Região pobre, acabou recebendo pouca atenção da Coroa Espanhola que não conseguiu tornar a América Central um todo unificado e integrado. A Nicarágua acabou se diferenciando de vários países da região por conta de sua localidade geográfica que permitia a construção de um canal, ligando os oceanos Atlântico ao Pacífico. Diante da independência, conquistada em 1821, este era a situação do Estado Nacional nicaraguense: 

Um Estado débil, mal-estruturado, sem um exército organizado e que traduzia a ausência de projetos político-ideológicos sustentados por uma classe ou uma fração de classe nacional. Essa fraqueza do Estado espelhava, na realidade, a fragilidade da economia nicaraguense, alicerçada em uma tradicional produção de anil e na criação de gado para o mercado regional bastante restrito (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 65).

Após um longo período de domínio conservador, os liberais chegaram ao poder na Nicarágua, através de José Santos Zelaya; responsável pela introdução do país na então modernizadora cultura do café. Zelaya "pôs em prática uma série de medidas liberais, como a desamortização das terras eclesiásticas e a desarticulação da propriedade comunal indígena" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 65). Ele também foi responsável pela abertura de estradas de ferro, abertura de portos sendo responsável pela formação da infra-estrutura da economia nicaraguense. Por ser crítico as intervenções inglesas no país, Zelaya foi minado e deposto por intermédio de um golpe conservador em 1909, com apoio de ingleses (principais consumidores do café nicaraguense) e norte-americanos. Com a queda de Zelaya, os EUA introduziu seus interesses sobre a Nicarágua. Segundo a autora: 

Ao lado do setor cafeeiro, que Santos Zelaya representava, encontrava-se um setor mais tradicional, o dos criadores de gado. Os interesses dos cafeicultores não foram suficientemente fortes para imporem-se nacionalmente como os dominantes. Essa falta de unidade num conjunto já muito débil possibilitou a penetração aberta e direta do domínio norte-americano (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 66).

A intervenção norte-americana na Nicarágua foi direta com direito a presença militar no país centro-americano. As tropas norte-americanas permaneceram no país entre 1912 a 1933, acumulado a um controle direto dos EUA das alfândegas, do Banco Nacional, das estradas de ferro e das linhas de vapores do governo nicaraguense. O desembarque das forças militares dos EUA, também fez a Nicarágua assinar um tratado que permitia os norte-americanos construírem no país um canal. Mas a dominação ianque gerou revolta no país e essa revolta foi unificada em torno Augusto César Sandino. O Sandinismo foi responsável pela construção de um guerrilha, contrária as intervenções estrangeiras no país. Assim, 

Da mesma forma que Cuba, a Nicarágua sofreu ingerência direta dos Estados Unidos. A rebeldia contra essa ingerência indevida esteve sempre presente na história nicaraguense, com Zeledón em 1912, Sandino em 1928, a Frente Sandinista a partir de 1961 [...] A oposição aos interesses norte-americanos passava fundamentalmente por uma oposição interna a certos setores dominantes. A derrubada de Somoza, liderada pelas classes populares, representou a derrubada de interesses externos e internos convergentes (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 67).

05) O regime monárquico e o Estado Nacional 

Por último, Maria Ligia debate o caso brasileiro em particular neste capítulo final. Como já foi pontuado no primeiro capítulo, o Brasil alcançou sua independência mantendo pilares construídos durante o período colonial. Institucionalmente falando, a Constituição de 1824, garantiu oficialmente a permanência de privilégios, vistos através da permanência da escravidão e a garantia da grande propriedade. Além do mais, a Constituição de 1824 foi extremamente autoritária e centralizadora, criando um quarto poder (o Moderador) que, basicamente, garantia poderes amplos ao monarca. O Senado era vitalício e o voto censitário, completando a lista de privilégios intocados. Sobre este quarto poder: "O Poder Moderador conferia ao imperador poderes excepcionais, como o de dissolver a Câmara, nomear e demitir ministros, suspender magistrados, e constituía para seus adeptos "a chave de toda organização política"" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 68-9). 

O Período Regencial, vivenciado a partir de 1831, deu esperanças de aberturas liberais no país. O Conselho de Estado, criado por D. Pedro I, foi extinguido e as Assembleias Provinciais ganharam mais autonomia e relevância política. Porém, foi um período marcado por conflitos sociais. Entre eles: a Cabanagem, no Pará; a Sabinada, na Bahia; e a Balaiada, no Maranhão. Além dessas, ocorreu uma revolta mais grave para os interesses dominantes: a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, que durou longos 10 anos. Essas revoltas mostravam o descontentamento com o Império e a resposta para isso foi o chamado Golpe da Maioridade, que adiantou a posse de D. Pedro II, então com apenas 15 anos de idade. Sobre o Segundo Reinado, pontua a autora: 

O Estado que se consolidava com o novo imperador fazia uso, através de reformas político-administrativas (1841-1842), dos velhos meios para impor autoridade. Voltava o Conselho de Estado, fortalecia-se o Poder Moderador, reforçava-se o Exército. A representação política permanecia elitista e censitária e a conciliação dos dominantes tornava segura a exploração dos dominados. Salvava-se a unidade territorial, sustentava-se a escravidão como instituição e garantia-se a propriedade da terra nas mãos dos grandes fazendeiros, com a Lei de Terras de 1850 (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 71).

Na prática, o Segundo Reinado tornou-se uma continuação do Primeiro, mantendo sua natureza centralizadora e autoritária que se reproduzia através do enfraquecimento da autonomia das províncias e fortalecimento do Poder Moderador.  Assim como nos países hispânicos, a oposição entre conservadores e liberais, também foi vista no Brasil. Porém, esses dois atores políticos tiveram suas peculiaridades no país, começando pela Igreja que, diferente do caso hispânico, não representou um marco divisor consolidado entre esses dois blocos. Pelo contrário, o clero em diversas ocasiões estiveram aliados aos liberais, situação incomum nos nossos vizinhos. E isso ocorreu porque, "a Igreja do Brasil, tanto na colônia como, depois, no Império, esteve firmemente subordinada ao Estado. Assim, não se podem alinhar tão marcadamente e definir posições liberais ou conservadoras tomando a Igreja como parâmetro" (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 72). 

Durante o Primeiro Reinado, os liberais lutavam principalmente pela redução do poder absoluto do imperador. Desejavam uma maior participação do Poder Legislativo e das províncias. O exército, por exemplo, deveria estar subordinado ao Legislativo e não ao imperador. Outras críticas reproduzidas eram: os privilégios concedidos aos portugueses, a falta de liberdade de pensamento e a consequente perseguição aos opositores. Também se posicionaram contra o Senado vitalício, o Conselho de Estado e ao fortalecimento do Poder Moderador. Porém, com o tempo, os liberais passaram a adotar medidas cada vez mais conservadoras sendo, em sua maioria, defensores da monarquia constitucional como regime político. Por que essa defesa dos liberais a monarquia? Explica Ligia Prado: 

A unidade territorial aparecia como uma extraordinária conquista, que precisava ser preservada a qualquer preço. Em nome dela, muitas concessões ao conservadorismo foram feitas. O exemplo republicano da América espanhola, com o caudilhismo e a fragmentação, atemorizava não apenas os proprietários rurais, mas também os setores urbanos liberais, mais intelectualizados. Unidade e monarquia vinham juntas; para salvar uma, era preciso sustentar a outra (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 73).

As revoltas durante o período regencial, ampliaram ainda mais o movimento dos liberais brasileiros em torno dos conservadores. As diferenças entre conservadores e liberais no Brasil não ficaram muito nítidas, como a vista na América Espanhola. Se os conservadores defendiam a monarquia, os liberais a consideravam um "acidente útil", visando evitar a fragmentação do país. Mas quem compunha os partidos liberais e conservadores? Baseada nas reflexões de José Murilo de Carvalho, a autora defende a seguinte ideia sobre a composição desses partidos: 

Para ele, o Partido Conservador representava uma coalizão de burocratas e proprietários rurais, e o Partido Liberal uma coalização de profissionais liberais e proprietários rurais. As medidas centralizadoras defendidas pelos conservadores respondiam às aspirações dos fazendeiros de áreas agrário-exportadoras de colonização mais antiga, como Pernambuco, Bahia e, principalmente, Rio de Janeiro. As áreas "mais novas", como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, tinham seus fazendeiros preferencialmente no Partido Liberal, que eram favoráveis a medidas descentralizadoras (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 76).

Resumindo a formação do Estado Nacional brasileiro, afirma Ligia: 

O regime monárquico, a manutenção da unidade territorial, a subordinação da Igreja e das Forças Armadas ao Estado, a fluidez ideológica dos partidos políticos traduziam a força e a coesão dos interesses escravistas dominantes. Estes foram capazes de estabelecer uma "transição pacífica" da Colônia ao Império, feita sem grandes perturbações sociais e de modo a manter intactos seu poder e vigor e a sufocar todas as manifestações contestadoras da ordem vigente. As tentativas de reforma acabaram sendo sempre mais brandas e tênues do que a sua proposição inicial, já em si tímida (PRADO, Maria Ligia. São Paulo: Atual, 1994, p. 77).

Por fim, a autora pontua que o mito do império detentor da ordem e unidade foi responsável por um certo preconceito dos brasileiros aos países da América Espanhola, sofredores dos males da fragmentação e do caudilhismo.  

Considerações Finais

Nas considerações finais, Maria Ligia coloca a importância da ideologia liberal nos processos de independência política na América Latina. Mas também mostra o fracasso do ideal liberal que, buscando evitar a inserção dos dominados na política, optaram pela via do autoritarismo como meio de manter seus privilégios. Diante deste autoritarismo, as massas dominadas demonstraram fraqueza e imaturidade política, sucumbindo as rédeas dos dominadores. Essa imaturidade, lembra a autora, não significou passividade. O que ocorreu foi a falta de uma canalização das exigências dos de baixo. Os liberais não enfrentaram apenas as revoltas populares, também se viram contra os conservadores, como nos casos mexicano e colombiano. Cuba e Nicarágua, mostram a ingerência externa e o poder do imperialismo na região, colocando em dúvida a ideia de um Estado Nacional soberano e autônomo. Na Argentina, o projeto liberal só conseguiu êxito após a queda de Rosas; e no Brasil, os grupos liberais entraram em aliança com os conservadores em nome da permanência da escravidão, da monarquia e da unidade nacional. 

Nesta disputa entre liberais e conservadores, o Positivismo exerceu importante papel no caso mexicano e brasileiro. Porém, não teve a mesma força no caso colombiano, onde a Igreja conseguiu manter sua hegemonia ideológica sobre a sociedade. Em suma, a autora coloca que seu objetivo foi analisar as especificidades na formação dos Estados Nacionais latino-americanos, focalizando nas lutas sociais e conflitos políticos que os envolveram. Ela acredita que esta abordagem é mais frutífera que outras, como a da dependência ou da herança colonial, que tratam a América Latina de forma genérica e sob esquemas pré-construídos.